Sai maluco, todo ano isso
No último texto do ano, o que pode ser mais clichê do que uma retrospectiva?
Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
O que pode ser pior do que listas de melhores no final do ano? 🤔
Uma retrospectiva, claro.
E mais ainda: uma retrospectiva de mim mesmo. 😬
Comecei o Locked Groove logo no início do ano, apesar de o primeiro post ter saído só em junho. Esse tempo foi uma fase de testes, de descobrir formatos. Escrevi alguns textos, apaguei muitos, salvei parte, retrabalhei, abandonei várias ideias, tive várias outras diferentes. Pouca coisa dessa primeira fase restou. Talvez um dia, quando não fizer a mínima ideia do que escrever, faça um B-sides e outtakes.
Alguns textos sobreviveram, de forma bem diferente do que eram no início, por serem atemporais. Outras ideias ficaram datadas logo e abandonei.
E foi interessante ver as reações aos textos: muita gente falou espontaneamente do que gostou mais, alguns comentaram, deram likes, indicaram para amigos.
De cara, deu para perceber que textos sobre músicas foram os menos lidos. Sim, eu sei: é que falo de coisas muito idiossincráticas, um gosto pessoal demais. Mas não tenho como falar de outra maneira sobre o assunto - o bom de não ter compromisso com uma linha editorial (ou com o gosto alheio) dá nisso. Falo sobre o que eu quiser.
Foram 30 posts, passando por cidades como Oaxaca, Berlim, Barcelona, São Paulo…alguns drinques, alguns posts sobre música, literatura, madrugadas, histórias antigas, shows. Até deu para falar sobre política - e aqui não é o lugar onde você vai encontrar isenção e comedimento. Como dizia um célebre editor do Notícias Populares nos anos 1960, isentão é o defunto lá no cemitério.
Ou quem votou no Amôedo no primeiro turno de 2018, quem pode saber?
Algumas pontas soltas ficaram, claro. Barcelona, por exemplo, aparece em alguns textos espalhados. Um dia, vou fazer um texto só sobre a cidade, e aí coloco na ordem certa a cronologia das viagens que fiz a Barcelona. Por enquanto, fica como teaser.
E não só a cidade catalã: há muitos lugares que ficaram de fora, que rendem boas histórias. E vai ter mais, já que, se de fato estivermos superando essa fase de reclusão e isolamento, a primeira coisa que queremos fazer é viajar de novo, conhecer novos lugares, fazer coisas novas.
E na música, falei de Bowie, Lou Reed e Beastie Boys, algumas obsessões que tenho. É tanto assunto que ainda vou escrever de novo sobre os suspeitos de sempre, mesmo que o post sobre o Velvet Underground tenha sido o que teve menos leitores em todos os textos que fiz. Update importante, aliás: o documentário de Todd Haynes que recomendei sobre o Velvet Underground está no shortlist para o Oscar - na peneira final, tem chance de ficar entre os 5 escolhidos. Vai ganhar algum prêmio? Não sei. O filme é menos imediato do que outros documentários, até porque não trata de astros mega conhecidos - mas vale cada minuto.
Aproveitando o embalo: de cinema falei pouco, apesar de ter um post inteiro sobre a Mostra de Cinema. Só vi um filme em sala de cinema no ano inteiro, e foi como reencontrar um mundo que parecia estar só na lembrança. Vi The French Dispatch, de Wes Anderson, numa sessão de meio de tarde - algo que faço de tempos em tempos, para lembrar que a vida é mais do que empregos chatos. Aliás, isso me faz pensar em uma história que sempre quis encaixar em algum texto: de quando saí de um dos empregos mais chatos que já tive, em uma multinacional, anos atrás. No dia seguinte ao pedido de demissão, fui até o Parque do Ibirapuera, sem horário para nada. Numa sessão do antigo CineMAM, no Museu de Arte Moderna, vi Acossado, de Godard (na verdade, único filme dele que eu gosto de fato). Ao sair da sala, dei de cara com aquele sol de final de tarde de outono, emendei uma caminhada de volta para casa - morava ali perto ainda - e pensei em como havia tomado a decisão certa.
Em 2022, quero entrar muito em salas de cinema - talvez uma na sequência da outra, na Mostra de Cinema de São Paulo, por exemplo. Mas não tive do que reclamar nesses últimos dois anos: mesmo no streaming tem muita coisa boa para ver, de qualquer forma, e também revi grandes filmes em 2020 e 2021. O Mubi sempre foi certeiro: maratonei Wim Wenders, Wong Kar Wai, Louis Malle - a maratona que vale a pena, e não de séries meia-boca.
Mas não sejamos injustos: há séries que também valem, se souber procurar. Uma série que aparentemente parece normal, mas vai fundo em assuntos importantes, sem ser chata e pedante, é Atlanta (estava no Netflix, da última vez que chequei). A terceira temporada vem logo mais - nos EUA, estreia em março. E, por mais controverso que seja Donald Glover, claramente é um cara que sabe o que faz e que tem muito a dizer.
E falei também de escritores e livros que gosto. Por exemplo, Rodolfo Walsh, grande nome argentino, ou o texto da semana passada, sobre Eve Babitz, que eu pensava em escrever no futuro e foi antecipado pela morte dela. Quero falar de outros autores, ainda - Joan Didion, talvez?
Não deixei de fazer textos de política e da situação em que estamos, nesse país que decidiu se autodestruir em 2018. Não foi um hecatombe nuclear, que não deixa rastros - foi um lento e incompetente suicídio, com a destruição aos poucos, como alguém que se entrega a um bando de hienas que não acreditam na sorte que tiveram e, por isso mesmo, acabam demorando mais do que o normal com a presa.
E em alguns outros textos voltei o olhar para a cidade também. É algo que tem me ocupado bastante - como São Paulo está sobrevivendo na pandemia. O reencontro com a cidade, de que falei aqui, trouxe aquela sensação de volta à vida, mas também apreensão - o plano de destruição que o Brasil engrenou desde 2013 está cada vez mais forte e teve reflexos fortes na cidade.
O Centro de São Paulo é emblemático desse estágio: tudo o que houve de recuperação e democratização, apesar de ainda serem movimentos tímidos, parece ter retrocedido sob as prefeituras de Doria/Covas/esse-aí-que-ocupa-a-cadeira-agora. Desde 2001 ou 2002, talvez, eu não via a cidade tão degradada, destruída, desesperançada.
Mas a volta a exposições - na Pinacoteca, na Bienal, em lugares menos óbvios como em um ateliê na Rua Fortunato - foi uma das boas coisas nos meses finais de 2021, pós-vacinação. Foi um reencontro com uma vida pulsante e com espaços voltados para o público que nos fazem ter confiança de que vamos voltar, mesmo que de outra forma, a fazer o que fazíamos antes.
Ainda não voltei a ir a shows de música - o último foi em 13 de março de 2020, o maior período de tempo que já fiquei sem ver algo ao vivo. Mas já estou com ingresso para o Primavera Sound no Porto, em Portugal. E vai ter também em São Paulo, Buenos Aires, Santiago. Se trouxer meia dúzia de artistas novos relevantes que estão às dezenas no festival original, vai valer a pena - afinal, quem precisa de mais um evento com Red Hot Chili Peppers, Foo Fighters, Strokes e outras sonolências preferidas de "rádio rock"?
Um ponto que amarra tudo o que tratei nessas newsletters que fiz em 2021: como ocupar todos os espaços, resistir aos tempos sombrios em que vivemos com arte, cultura, conhecimento. Não deixar que a ignorância e o obscurantismo prevaleçam. Não deixar que nomes sejam esquecidos, que histórias sejam apagadas, ou que pensamentos únicos e autoritários prevaleçam.
E isso traz de volta o porquê dessa newsletter, e porque nesse momento.
Foi uma forma de manter a sanidade, talvez. Uma forma de, ainda no distanciamento social, dialogar com pessoas que achei que poderiam se interessar. E, pelas reações, acho que consegui, de alguma forma. Uma amiga falou que, ao ler o que escrevo, imaginou exatamente a forma como eu falaria se estivesse contando aquilo pessoalmente. Elogio bom, esse. E outras reações: desde amigos que compartilham em Instagram ou Twitter, até uma mensagem que apareceu no whatsapp de repente, perguntando se realmente acho Zidane o melhor jogador do mundo (e é Pirlo, na opinião da amiga que mandou a mensagem 😉). Tudo isso foi importante para que eu me mantivesse diligentemente, a cada semana, escrevendo um novo texto, buscando um novo assunto, pensando o que poderia interessar a alguém que me lê.
Em 2022 vai ter mais. Talvez textos mais curtos entremeados com outros mais longos, alguns em partes, formatos diferentes. Mas sempre com algum assunto que valha a pena (ou melhor, que eu ache que vale a pena).
E a contagem regressiva vai começar também; se tudo der certo, serão apenas 365 dias até começar a reconstrução. Mas que vão parecer durar muito mais e vão exigir muita paciência.
Mas não importa. Vamos reconstruir de novo. E de novo. Quantas vezes for necessário. Por isso devemos ocupar todos os espaços, o tempo todo, e não dar espaço para o obscurantismo.
A próxima retrospectiva vai ser mais divertida. Pelo menos, é o que eu espero.