Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
intro.
Quando alguém me pergunta qual a imagem mais recorrente que tenho de São Paulo, a tendência é citar a chuva.
Não é que eu abrace o clichê da "terra da garoa". Possivelmente há mais dias de sol nessa cidade do que parece; é meio como "Londres nublada", um mito que ficou marcado na cabeça de muitos e se perpetuou.
Mas, de fato, há algo com a chuva em São Paulo que deve explicar essa percepção.
Pensava nisso enquanto subíamos pela escada rolante, pela primeira vez em mais de um ano e meio. Dois lances de escadas, até chegar a uma praça - sim, exatamente uma praça, com pedras portuguesas, 5 andares de altura acima da avenida.
Chegando até o parapeito, dava para ver as últimas quadras da Avenida Paulista, coberta pela névoa de uma fina garoa. No asfalto, carros não circulavam; já há algumas semanas a avenida voltou a ser novamente usada exclusivamente por pedestres no domingo, uma grande ocupação espontânea de espaço público, que estava paralisada desde o começo da pandemia.
Olhávamos a avenida de cima, bem menos cheia do que o normal, por conta do frio e da garoa incessante. Mas, ainda assim, era uma boa introdução a São Paulo, para alguém que vem de fora e não conhece muito da cidade e, ao mesmo tempo, uma boa reintrodução para quem já vive aqui há bastante tempo.
E foi exatamente isso o que aconteceu: nosso sobrinho, Kai, estava em São Paulo, em visita, hospedado conosco por uma semana. Paula e eu, após um ano e meio de pandemia, devidamente vacinados com duas doses, estávamos com menos receio de sair às ruas.
Um encontro e um reencontro com essa cidade que é difícil, dura e, algumas vezes, mais fria do que essa tarde chuvosa de outubro.
1.
Estávamos no Instituto Moreira Salles (IMS), no final da Avenida Paulista. A vista dessa praça tem se tornado bem característica da cidade e é responsável por parte da popularidade do Instituto. A programação, gratuita, é sempre boa - já vi muita coisa ali, desde exposições de Robert Frank e Irving Penn, até Millôr.
Quando a Revolução vier, lembrem-se dos Moreira Salles - talvez coisas como o IMS os tire da fila do fuzilamento lento e incompetente que vai ser reservado aos outros banqueiros e herdeiros.
😬
Estou brincando, claro: no Brasil, Revolução só acontece pelo lado errado, como em 1964. Os Moreira Salles poderiam até colocar preços obscenos nas exposições ou posicionar um franco-atirador na praça do IMS que, ainda assim, seriam considerados democratas e altruístas em comparação com os atuais ocupantes do governo federal.
Uma das primeiras exposições do Instituto foi The Clock, de Christian Marclay, obra ganhadora do Leão de Ouro na Bienal de Veneza, em 2011. Era um looping infinito de imagens em vídeo, durante 24 horas - milhares de cenas de cinema e TV, fazendo referência ao horário exato em que você as via. Por exemplo: você entrava na obra às 3h da manhã, e o que passava na tela era uma edição de cenas de filmes com referência a essa hora. Íamos lá várias vezes, nos horários mais improváveis, muitas vezes depois de ir de bar em bar misturando drinques e outras bebidas irresponsavelmente. Hoje não é possível algo assim: as restrições para tempos de Covid impuseram um sistema de reserva de horário para ver exposições e somos comedidos a aglomerações em bar. Por enquanto.
Mas essa retomada do IMS, mesmo que aos poucos, mostra o quanto a vida volta ao normal, ainda que com novas formas de comportamento e de um jeito bem menos natural.
E não era só ali - há muito mais na Paulista para se ver. Por toda a extensão da avenida formou-se, nas últimas décadas, um corredor de cultura - centros culturais e exposições constantes, em geral gratuitas ou bem acessíveis. É uma demonstração de como é possível transformar a vocação de uma via importante da cidade e, mais ainda, de como se democratiza o acesso à cultura.
Em um trecho de pouco mais de dois quilômetros e meio, agrupam-se:
IMS
Masp
Centro Cultural Fiesp (não se preocupe, não tem nada a ver com pato amarelo ou camisas pretas, as exposições são ótimas e tem um jardim de Burle Marx nos fundos, um dos grandes segredos da Paulista)
Sesc Paulista
Instituto Cultural Itaú
Casa das Rosas (fechado para restauração, mas o café funciona ainda)
Japan House (com exposições ótimas e um restaurante melhor ainda, uma versão mais simples do Aizomê)
E tudo isso sem contar ainda o Parque Trianon, cinemas, teatros e livrarias.
Por falar nisso: a Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, só está esperando alguém apagar as luzes, depois de catastrófica expansão conduzida pelo herdeiro criado a leite com pêra e MBA; mas a Martins Fontes, algumas quadras mais para a frente, continua vibrante - e 2 minutos dentro dela já fazem esquecer de meses de isolamento.
Morei em uma rua paralela à Paulista durante alguns anos e vi a transformação pela qual a avenida passou, com a expansão do metrô e com a criação do bilhete único: políticas públicas bem direcionadas que, por mais que tenham falhas, levaram um público que não pensava sequer que poderia estar naquele lugar se não fosse a trabalho. Alguns anos depois, a ocupação espontânea da avenida, que começou nessa época, levou o Poder público a criar novas políticas de uso para as largas pistas de asfalto.
Muito bem recebido por quem vive de fato a cidade, o programa Paulista Aberta, que existe desde 2014, foi oficializado pela prefeitura em 2016 e é continuamente realizado desde então. É uma das poucas batalhas vencidas contra quem tem horror a gente na rua - no sentido de gente que chega de metrô ou ônibus, que se diverte com shows de mágica, com bandas tocando, compra de vendedores ambulantes e passa um domingo divertido, em um lugar diferente do que aqueles que normalmente frequentam e são como turistas em sua própria cidade, felizes. Ou de gente que mora ali perto mesmo e que se dispõe a caminhar até a Paulista para aproveitar um dos poucos espaços livres da cidade, com a cabeça aberta para viver um dia de turista, com essa democratização do espaço público.
2.
Gente na rua, mas em outro sentido, é o que há cada vez mais no Centro.
Pequenos vilarejos de tendas se formam em praticamente todas as ruas principais do Centro Histórico. No Pateo do Collegio, local de fundação de São Paulo, tendas e mais tendas se amontoam perto do Impostômetro, o imbecil placar da Associação Comercial de São Paulo - um escárnio, cuja intenção não é defender o uso correto dos impostos, e sim, a redistribuição de dinheiro entre quem já tem. Ninguém da ACSP, aparentemente, quer chamar a atenção para o excesso de impostos e seu mau-uso - mesmo que tivéssemos serviços públicos e proteção social do nível da Escandinávia, reclamariam do mesmo jeito. O único objetivo do placar inventado por essa matilha de hienas é defender que se lucre ao máximo e se pague o mínimo possível de impostos. Cada um por si, na terra da pujança bandeirante.
Mas o que mudou desde a última vez em que saímos à rua antes da pandemia? Além dessa cidade paralela formada por barracas e tendas, a cidade “oficial” está bem diferente. Há infinitamente mais placas de “aluga-se” em frente a comércios. Bares e restaurantes que existiam antes sumiram sem deixar sinal algum e foram substituídos por outros ou, ainda, o imóvel continua fechado - muitas vezes, 2 ou 3 em sequência, com portas cerradas. Os que ainda resistem seguem as normas de ocupação determinadas para a pandemia, que permitem bem menos lugares no estabelecimento. Mas o que chama a atenção não é a degradação do espaço urbano e sim, a sensação de que, por baixo das máscaras, não há muitos sorrisos. E os olhares, por sua vez, parecem muito mais arredios e distantes.
Ícones do Centro desapareceram. A Livraria Francesa, que resistia há décadas em seu bunker subterrâneo, na Barão de Itapetininga, fechou as portas e se mudou para outro bairro. O proprietário, filho do fundador, cansou de esperar uma revitalização do Centro que sempre foi prometida, mas que nunca chega. Na Avenida São Luis, fechou também um hotel que estava lá há anos - e, com ele, cafés e comércios vizinhos. A Biblioteca Municipal deixou de ser 24 horas, como era há até pouco tempo.
O Centro (e a cidade) passou por várias fases, e talvez agora seja mais uma dessas, em um movimento pendular.
Um rápido exemplo: lembro claramente de como o entorno do CCBB tornou-se ‘caminhável’ de novo durante a noite, em algum momento dos anos 2000, e de como a sensação de insegurança ao andar nos labirintos do Centro Histórico havia diminuído consideravelmente. Agora, à primeira vista, o movimento parece ser de retração e a volta ao que era entre os anos 1990 e 2000: quem lembra, sabe que era uma época em que ninguém chegava ao CCBB ou ia embora dele a pé - havia uma van que fazia o traslado dos visitantes a partir de um estacionamento na rua da Consolação. Ou ainda, a terra de ninguém que eram a praça Dom José Gaspar, a Praça da República, os arredores do Teatro Municipal - todos lugares que passamos a ocupar novamente há pouco mais de uma década, e que, agora, estão sob ameaça de novo.
3.
De cima do Farol Santander, o antigo Edifício do Banespa, onde hoje há um café e um mirante, a cidade se expande para todos os lados, em 360º - e só os telhados acinzentados e os puxadinhos malfeitos denunciam a degradação do Centro. Belos prédios podem ser vistos do terraço, incluindo o Edifício Martinelli, que já foi o mais alto dessa metrópole. Nunca havíamos subido ali, mesmo tendo sido aberto ao público há alguns anos - e foi bem ali que deu para entender como é bom ser turista em sua própria cidade, mesmo que seja por pouco tempo.
Turistar em São Paulo significa fazer muito daquilo que você esquece que pode fazer - e ver o que você não lembra que existe. Entregar-se a programas que, na pressa paulistana, você sempre deixa de lado e, aparentemente, não pensa duas vezes em relegar a gente que anda em grupo e parece operar em um ritmo diferente do seu (ei, espera, isso aí foi elitista 🧐).
É fácil deixar de lado uma exposição da NASA, sobre explorações espaciais passadas e futuras, no edifício do antigo Banespa, em detrimento da Bienal e da retomada de exposições presenciais. Mas quem quer ser o Smurf Gênio o tempo todo? Por isso mesmo, fomos visitar e posso dizer que é uma das exposições mais interessantes e divertidas na cidade hoje, descontando o jabá explícito.
Em outra vertente, encontramos diversão também na Bienal de Artes. Um dos programas de que mais gosto, desde sempre, agora em sua 34ª edição e que se mantém sempre essencial.
O Ibirapuera vazio, no meio da semana, trouxe duas sensações estranhas: uma, de tristeza ao ver a marquise totalmente cercada, possivelmente para evitar aglomerações; outra, de que parece cada vez mais um cenário fantasmagórico, futurista no sentido retrô - meio como uma visão de como seria o futuro, no repertório de alguém do passado. Mas, apesar de hoje ser tão anacrônico quanto um show de 3D do Kraftwerk, o polêmico Ibirapuera é um dos lugares mais agradáveis de São Paulo.
Max Bill, escultor e designer suíço, que ganhou prêmio nas primeiras Bienais, perguntado sobre o recém-inaugurado Ibirapuera, disparou: “Esse parque parece ter sido feito por alguém sem coração". Oscar Niemeyer, premiado arquiteto e o alvo da frase, respondeu com elegância: “O Max Bill? Ah, esse é um grande dum filho da puta, só fala merda".
O prédio é um clássico de São Paulo, e Bienal de Artes é boa mesmo quando é ruim - já teve ano em que não me empolguei, mas agora, 2021, fazia tanto tempo que não íamos a exposições que valeria até se fosse uma Bienal feita no piloto-automático (por sorte, não era). E falando em lugares clássicos de São Paulo, a Pinacoteca tem uma exposição bem importante: Enciclopédia Negra, uma mostra de arte casada com o trabalho colossal de Flavio Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz. Vale ter o livro, mas só a exposição já traz muita informação de grandes figuras do Brasil que sofreram apagamento histórico por décadas, por meio do racismo institucionalizado que se disfarça até hoje de "democracia racial”. Um resgate que há tempos era muito necessário.
E o que nos esperava na Luz, quando chegamos à Pinacoteca? A boa e velha chuva paulistana, que não dá trégua, só muda de intensidade. Para uma introdução (e uma reintrodução) a São Paulo, não há clima que faça mais sentido.
após o dilúvio.
A chuva nos acompanhou a semana inteira.
No primeiro dia, da saída do metrô até a Pinacoteca, e da Pinacoteca até o Acrópolis, ali perto. Como falei em outro texto, não importa o que aconteça, ele continua lá sempre, na rua deserta do Bom Retiro após as lojas fecharem, com sua decoração intacta há décadas, com um programa de auditório da TV grega passando sem parar. Chegar à janela da cozinha e pedir meia porção de qualquer uma das comidas ali traz um calor ao coração, ainda mais que essa meia porção parece ter sido pensada para um Titã da Antiguidade, de tão farta que é (no Instagram, food porn de primeira em cada post).
Outro dia e chuva no Ibirapuera, bem leve, na chegada e na saída da exposição, intermitente. Nada que nos impedisse de ir depois da Bienal até a Casa do Porco e escolher uma mesa ao ar livre, aproveitando a surpreendente falta de fila. E aí que percebemos que São Paulo voltou mesmo: uma tempestade repentina de final de tarde nos fez migrar rapidinho para dentro do restaurante, como se as nuvens estivessem apenas esperando que chegassem nossos pratos.
Casa do Porco, o 17º melhor restaurante do mundo, na lista 50Best, mantém a consistência e qualidade e não decepciona. Kai notou que falamos isso de todos os restaurantes onde fomos - o que é bom sinal: há coisas que não mudam porque não precisam mudar mesmo.
Mas um lugar que mudou, e para melhor, foi o Copan, ali perto. Desde a última vez em que estivemos lá, antes da pandemia, houve uma retomada de vida com a nova livraria Megafauna, que está em um ponto tão central que deu outra cara a toda aquela parte entre o Orfeu e o Bar da Dona Onça. Tem um café com mesas na calçada e vitrines bem cuidadas com livros bons, atraindo um bom público. Mais uma chance para que aquele proverbial pêndulo que citei volte a se mover na direção certa.
Mais um dia de tempo nublado durante a caminhada por todo o Centro Histórico, até a Liberdade e o almoço tardio no Takô, ótimo restaurante que resiste bravamente em um trecho completamente apagado da Rua da Glória.
Takô era um clássico nos anos 1990-2000 - ficava aberto até altas horas; se não me engano, de sábado para domingo ficava até 5h da manhã. Comida boa, farta e por um bom preço, frequentado pela colônia japonesa, por boêmios, por orientais baixinhos cercados de garotas de programa, por cozinheiros e chefes que saíam de restaurantes na madrugada (reconheci lá outros sushimen das redondezas em algumas ocasiões), taxistas e até mesmo pelo Sergio Mallandro, que vi lá uma vez, trincadaço de pó ou sei lá o quê. Mas talvez fosse o normal dele, quem poderia saber?
Parecia madrugada, de fato, ao sairmos para a rua escurecida pelas nuvens densas, após duas horas dentro do Takô, onde chegamos embaixo de um princípio de chuva; na saída, as nuvens escuras cobriam todo o céu. Fomos pegos pela onipresente chuva de fim de tarde e nos refugiamos em alguma galeria da Galvão Bueno. Nas ruas da Liberdade, a enxurrada era forte e fez lembrar inúmeras tardes em que fiquei preso ali em alguma marquise ou dentro de uma galeria como aquela. E, por longos minutos, fiquei vendo toda a cena que se desenrolava do lado de fora: o motoboy tentando sair com a moto, o pé totalmente submerso pela água que cobria o meio fio, as pessoas correndo para se abrigar, alguém usando um papelão para se proteger ao andar de uma marquise a outra, as velhinhas com seus guarda chuvas, os donos das lojas botando gente para fora e fechando portas sem cerimônia alguma.
E aí que pensei do papel da chuva nas memórias que tenho de São Paulo e de como, anos antes, ela estava sempre presente em muitas coisas que vivi. E sempre esteve também associada com uma parte da cidade, essa mesma por onde passamos nesses dias com Kai. E lembrei que eu havia chegado em São Paulo com poucos meses mais do que ele tem agora de idade, e bem na época mais forte das chuvas, nos primeiros meses do ano. As imagens vão se encadeando: esperar a chuva passar na saída do metrô; voltar a pé da Bienal, debaixo da chuva fina, no frio; estar em algum cineclube que já viu melhores dias e ouvir a chuva cair no telhado e quase abafar o som do filme; descer escadas de algum clube com música alta na madrugada, tomando o cuidado de não escorregar nos degraus molhados, para chegar até uma pista de dança escura, com estrobos passando de um lado a outro, a vibração dos graves aumentando a sensação de euforia e a certeza de que seriam várias horas ali, antes de sair de novo para encontrar a chuva do lado de fora, talvez já com o dia claro.
E ouvir, madrugada adentro, músicas que pareciam ser só o que importava naquele momento. Feliz.
A associação de ideias com esse clip é boa demais para não se usar aqui. Truque sujo, claro, mas faz sentido para mim: essa é uma das músicas que eu mais ouvia quando cheguei.
Kai é fã também do Jesus and Mary Chain e andou conosco para todos os lados da cidade com seu jeito C-86 generation. Espero que tenha se divertido, apesar de São Paulo ainda não estar 100% de volta ao que já foi.