Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Intro.
Quem lê esse texto fixo aí em cima sabe que madrugada tem muito a ver com o que escrevo: aquelas conversas que vão avançando por horas, tomando caminhos improváveis e, algumas vezes, acelerando irremediavelmente para o mais longe que se possa imaginar da rota original. Quando você menos espera, a conversa está em um ponto em que ninguém sabe como chegou, enquanto toca Whitesnake e algumas posições absurdamente difíceis de Yoga parecem ser o mais indicado para limpar a cabeça e retomar o fio perdido pelo descarrilhamento mental; e, para logo em seguida, fazer mais um drinque ou escolher outro disco.
Madrugadas são memoráveis, sempre foram. Desafio qualquer pessoa que lê essas linhas aqui a pensar em quantas coisas incríveis acontecem no horário comercial; ou contar como é quando coloca umas meias, arruma o edredom e dorme antes de terminar o Fantástico. Fácil, fácil, as histórias de que todos mais se lembram acontecem, muitas vezes, nas madrugadas.
In the wee small hours of the morning.

1.Barcelona
Uma das cidades por excelência para longas madrugadas é Barcelona. Há outras, claro: Buenos Aires, Nova York, Amsterdam, São Paulo, Rio, Londres (essa, cada vez menos, infelizmente) - mas em Barcelona a madrugada é completamente outro bicho em relação à cidade que se conhece durante o dia.
Barcelona é diferente na madrugada por ser uma cidade que vive para fora o tempo inteiro, em que a rua é importante não apenas para os muitos turistas que passeiam pela cidade durante o dia; é importante, também, para quem vive e trabalha lá. Quando lojas, bares, restaurantes e outras atrações lotadas de turistas começam a fechar, a vida noturna de Barcelona está ainda em ebulição. As Ramblas, na madrugada, mostram o quanto a cidade muda - há mais pretos, árabes, “sudacas” (o apelido pejorativo para sul-americanos, especialmente se não são descendentes de europeus), estrangeiros que não estão lá a turismo. É o momento em que os trabalhadores que passam o dia dando duro na indústria do turismo da cidade saem e aproveitam um momento de folga - porteiros, garçons, motoristas de ônibus, vendedores, balconistas. Todos ficam mais tempo nas ruas, principalmente nas noites de verão.
Não é algo excludente: há estrangeiros a passeio também, que querem conhecer e se misturar, ainda mais na semana do Primavera Sound, que atrai um público bem diverso. Alguém já disse que a diferença entre turistas e viajantes é que os primeiros querem viver a sua vida de sempre no lugar em que estão; os outros, querem viver a vida do lugar em que estão. Quando os últimos turistas voltam para seus hoteis, dispostos a acordar cedo no outro dia e não perder o tour pelas atrações da cidade, ainda há muita vida em curso - e há muita coisa que acontece nas madrugadas que eles sequer sonham.
Barcelona é pródiga nessas experiências afterhours - a "perigosa” pista de cacos de vidro da Sala Apolo, como contei aqui, bares em que você só ouve catalão ou espanhol, caminhadas longas por ruas labirínticas. Ou então atravessar a cidade comprando cerveja de vendedores ambulantes e parando em bares no caminho, como fiz com Paula uma vez e que ainda vou contar em outra ocasião.
A melhor forma de conhecer a cidade como essa é evitar caminhos manjados do turismo - nada contra quem gosta da boa e velha segurança dos guias de viagem tradicionais ou dos inevitáveis hypes, mas não é o que espero quando estou em alguma cidade nova.
Aluguei, uma vez, um quarto bem em cima do Mercat de la Boquería, no segundo andar de um antigo palácio outrora nobre e que virou cortiço por anos; agora é já há alguns anos moradia popular para imigrantes - aluguei o quarto no apartamento de uma menina marroquina, e os vizinhos da porta da frente eram uma falante família árabe. Logo no primeiro dia, voltando de um passeio pelas redondezas para esticar as pernas após o longo voo, os ajudei a subir com várias sacolas de supermercado pelas escadas de pedra do antigo prédio. O pai da família, depois, me deu dicas sobre os melhores bares ali da região da Rambla mais famosa de Barcelona, La Rambla de Sant Josep. Com uma piscadinha, falou que não bebia, é óbvio, mas que era impossível não saber quais eram os melhores lugares. E falou para mim que não deveria me preocupar: a região era segura e voltar de madrugada, por ali, era tranquilo.
As madrugadas seguintes provaram que ele estava certo. Por mais que seja uma grande cidade, com muita gente indo e vindo, há um senso de comunidade em volta do mercado, como se todos ali se conhecessem. Árabes conversando entre si e fumando, africanos conversando animadamente e ouvindo música, sentados em cadeiras de plástico no meio do calçadão, com roupas elegantes, como se tivessem se vestido só para ficar por ali na noite quente (e, na verdade, qual a diferença de se vestir para ir ao Palau de la Música ou ficar conversando com amigos madrugada adentro? A satisfação e o prazer da ocasião são iguais).
Nas Ramblas, vários encontros improváveis e doidos: uma menina com sotaque de algum país que conheço na América do Sul deu o braço para mim e caminhou comigo por metros, até eu achar uma brecha para falar que, infelizmente, não iria aproveitar a incrível promoção que ela me oferecia. Em outro dia, conversei com uns moleques bêbados com camisa social para fora da calça, saindo da festa da firma - descobri que trabalhavam na Unilever - e queriam saber onde era algum bar que eu, estrangeiro pouco versado nas ruas dali, tampouco saberia dizer, mas joguei para eles alguma dica que o vizinho árabe havia me recomendado. E havia ainda os onipresentes ingleses, hooliganisticamente rindo alto, gritando, fazendo brincadeiras violentas entre si, tropeçando e falando palavrões, gritando “Oi!” para táxis que não paravam, todos com cabelos curtos de recruta e pele absurdamente rosada, não sei se pela bebida ou por falta de protetor solar.
Mas a madrugada acontece não só nas Ramblas. Andava por outras ruas, sem pressa; em uma das andanças, cheguei ao Cañete, bar que funciona ininterruptamente (exceto no 25 de dezembro e no 1 de janeiro) madrugada adentro, e me acomodei no balcão, em frente aos peixes e frutos do mar marinados, e pedi mais um gin tônica - daqueles de verdade, no copo alto, e não na taça. E também, ao mesmo tempo, uma taça de vinho branco gelado, para a hora em que a comida chegasse. Do meu lado, um inglês de uns 60 anos conversava animado com um casal estrangeiro. Alemães, pelo sotaque. Jovens, de uns 30 anos no máximo.
Logo o inglês me chamou para a conversa. Fellow travelers se reconhecendo, acho. Ele estava sozinho ali no bar. Havia chegado em Barcelona em um cruzeiro com a mulher e amigos, e escapou do clima opressor de recreação na piscina e drinques ruins para dar uma volta na cidade, sozinho. Os alemães contavam para ele sobre o Primavera Sound - possivelmente foi por isso que ele me incluiu na conversa, ao ver a pulseira do festival no meu pulso.
Falou que os tempos de ir a festivais já havia passado para ele: o máximo que fazia, agora, era ir a shows como o de Adele, no dia seguinte, com o pessoal do cruzeiro de aposentados. Mas contou ter visto Pink Floyd no tempo de Syd Barrett, Soft Machine, Jimi Hendrix, the Walker Brothers, Miles Davis. O casal alemão contava que queria ver Radiohead no Primavera Sound. A menina lamentava não ter conseguido ver Nick Cave and the Bad Seeds uns dois anos antes, informação que levou o namorado a fazer uma cara de desdém. Expressão essa que só aumentou quando contei que Nick Cave havia morado no Brasil por um tempo, e a namorada dele perguntou mais sobre essa história que não conhecia e começou a conversar comigo. Em poucos minutos, o alemão, tomado por súbita pressa, resolveu que era hora de ir embora, puxando a namorada pelo braço. Fiquei lá bebendo com o simpático inglês, que no dia seguinte enfrentaria seu destino de ir ao estádio do Barcelona para ver Adele, o que parecia motivo suficiente para beber até cair na sarjeta. E foi quase o que fizemos, falando sobre música e viagem por um bom tempo. Ele perguntou se havia algum bar de jazz em Barcelona. Lembrei do Jamboree e indiquei. Não sei se foi - não o vi mais.
E eu estava justamente no Jamboree, na madrugada seguinte, alguns degraus abaixo da Plaça Reial. Um bar de jazz até a meia noite, vira depois uma balada até o raiar do sol, com pista de dança com ótimos DJs de músicas obscuras de soul-funk-rock. No histórico clube subterrâneo já tocaram Chet Baker, Ornette Coleman, Cecil Taylor e outros grandes nomes. Duke Ellington e Ella Fitzgerald foram para lá numa madrugada de 1966, após tocarem no Palau de la Música; mesmo tendo acabado de tocar por horas, ainda deram uma canja para os poucos sortudos que estavam no bar.
Achei que havia errado: cheguei quando o jazz já havia acabado e a pista ainda não havia começado. Um argentino, tão perdido quanto eu, puxou assunto e, obviamente, começou a falar sobre futebol e perguntar quem eu achava o melhor do mundo - Messi ou Neymar (Zidane, respondi). Depois o encontrei ainda mais vezes zanzando pela pista e fazendo amigos entre os poucos perdidos pelo clube. Ele queria que todo mundo fosse muito feliz e se divertisse demais - excelente motivo para eu dar um perdido logo nesse meu novo amigo da madrugada. Pensei em sair para a superfície e procurar outro lugar pelas ruas do bairro gótico.
Quando debatia mentalmente se deveria subir as escadas, vi que uma outra porta foi aberta por um segurança e, de repente, pessoas que estavam em uma fila fora do Jamboree, que eu até então ignorava, lotaram o lugar. O volume da música aumentou, a pista começou a encher - e claramente eram locais de Barcelona e não turistas. Fiquei.
Quando voltei ao nível da rua, horas depois, o céu estava todo em tons de azul, na transição para o amanhecer. As ruas com alguns poucos andando preguiçosamente a caminho de casa e, bem na frente do Jamboree, um caminhão da prefeitura lavando com mangueiras a grande e vazia Plaça Reial, que estava lotada de mesas e cadeiras até algumas horas antes.
Segui por uma pequena rua, que eu sabia que me levaria de volta à Rambla e, em breve, estaria de novo na Passatge de la Virreina, onde ficava o antigo prédio onde eu tinha meu quarto. Do outro lado da rua, uma menina de uns 20 anos voltava também de alguma balada, sozinha. Alguns metros atrás, notei um homem que seguia pela mesma calçada. Diminuí o passo e fiquei monitorando a situação, pronto para qualquer intervenção. Não foi necessário - em algum momento, a menina, que parecia alheia ao homem que estava passos atrás dela, virou-se e perguntou rispidamente o que o cara queria. Sobressaltado, ele mais do que depressa entrou em uma viela e sumiu de vista. Ela continuou andando, sem olhar de novo para trás.
Cheguei pouco depois das 5h, empurrei a pesada porta de madeira toda grafitada, subi pela ampla escada de pedra, até chegar ao apartamento antigo e entrar, sem fazer barulho, e entrar no meu quarto. No mercado, lá embaixo, já começavam as conversas dos vendedores chegando com mercadorias, rindo, tomando café bem embaixo da janela do quarto, antes de o sol aparecer, os barulhos de portas de aço subindo, os carrinhos carregados fazendo barulho ao passar sobre as pedras antigas da rua. A sinfonia de vozes e barulhos do Boquería, ao invés de me manter desperto, embalou um sono fácil e feliz, do qual só acordei para um café da manhã na rua, quando o sol já estava a pino e uma outra Barcelona já funcionava há horas. Mais um dia, e mais uma madrugada, pela frente.