Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.

Eu tinha todo um outro texto preparado para essa semana. Mas, em 17 de dezembro, tive de mudar os planos. Eve Babitz morreu nesse dia.
Eve quem? 🤔
Essa não é fácil: mesmo em Los Angeles, onde passou toda a sua vida, não era vista há muito tempo. Aparecia pouco no último quarto de século. Não tinha computador ou celular, dizem. Os poucos que tinham seu número não ligavam; porque, se ligassem, grandes eram as chances de ela deixar tocar até desistirem. Ou até poderia atender, conversar como se fossem os anos 1970 de novo, e depois não atender mais, nas vezes seguintes em que o telefone tocasse.
Mas Eve Babitz não era uma weirdo como Salinger ou qualquer outro estranho autor que faz da sua reclusão praticamente um traço de personalidade. Ela gostava da viver para fora, na rua, nos restaurantes, nas baladas. Nunca foi introvertida, pelo contrário. Isso só veio muito mais tarde.
Eve nasceu em 1943, filha de um judeu “emigrado” da Costa Leste e de uma texana. Era afilhada de Stravinsky, com quem seu pai, músico de estúdio, tocava em trilhas de filmes hollywoodianos e em gravações que tornaram o velho Igor famoso nos EUA, país do qual obteve nacionalidade nos anos 1940.
E citar a data de nascimento dela não é por acaso: Eve cresceu durante os anos Eisenhower, era adolescente nos anos Kennedy e tinha a idade certa, na segunda metade dos anos 1960, para entender como o rock and roll mudou completamente a cultura popular americana (e, também, do planeta). Foi designer de capas de discos - Buffalo Springfield, Byrds, outros californianos - conheceu vários músicos como Jim Morrison, Linda Ronstandt, Crosby, Stills, Nash e Young, e os cocaine cowboys (The Eagles), parças dela por muitas noites no Toubadour e no Whisky a-go-go, na Sunset Strip.
E escrevia sobre tudo isso. Com uma naturalidade e um olhar único.
Escreveu em um tempo em que grandes nomes assinavam textos memoráveis. Joan Didion era quem mais citavam quando falavam dela, mas muitas vezes só por também ser mulher; Babitz não se identificava nem um pouco com a ‘realeza sofisticada’ de Didion, sempre austera e séria no que escrevia, apesar de ambas terem um olhar afiado para entender o que estava além da aparência.
Era também uma época de outros grandes escritores nessa fronteira entre a ficção e não-ficção, muitos deles, homens: Tom Wolfe era o dândi obcecado pelos detalhes meticulosamente corretos das histórias que contava, sem desalinhar o nó da gravata; Norman Mailer, o machista narcisista obcecado pelos detalhes meticulosamente corretos sobre si próprio; Truman Capote, a bicha má obcecada pelos detalhes meticulosamente sórdidos que ninguém tinha coragem de expor. Já Eve escrevia como queria e como achava que deveria escrever. Desses todos grandes escritores, que ficavam entre a ficção e a não-ficção, poderia ser considerada a contraparte de Hunter S. Thompson - ambos escrevendo sobre o que os interessava, do jeito que queriam, sem medo de passar ridículo e de forma extremamente pessoal.
Tudo o que Eve escrevia era sobre ela, sobre LA, sobre sua visão de mundo - e, justamente por isso, acabava sendo universal, relevante e premonitória, porque, basicamente, ela estava pouco se fodendo para ser isso tudo. HST também era assim: ambos se expunham em seus textos, escreviam sem pudores sobre erros, pisadas na bola, loucuras, vergonhas que passavam. E não se açoitavam por isso. Ambos eram sempre personagens no que escreviam; e sempre entravam com o pé na porta ou, quase sempre, com os dois pés na jaca.
Confissão aqui: ler o que Eve escrevia me ensinou a não ter receio de escrever algo que outros possam considerar indulgente, autocentrado ou simplesmente bobo. Escrever para si, em resumo. E se alguém mais achar bom, melhor.
Denunciava o machismo nas artes, no cinema, no rock, na literatura - sabia que, mesmo assim, era privilegiada, e tinha sempre um olhar para a diversidade que existia na sua cidade natal. A Los Angeles sobre a qual Eve escrevia era a cidade que ela amava, com seu sol, seu smog e os ventos secos de Santa Ana, mas sabia também que era uma cidade dura e escrota, e deixava isso bem claro nos seus textos. Sabia também que ‘intelectuais sérios’ tinham problemas com ela e a criticavam - por sua célebre foto nua jogando xadrez com Marcel Duchamp, ou por ser gostosona, ou por ter namorado gente como Harrison Ford, Steve Martin, Jim Morrison, praticamente todo mundo do CSNY, Annie Leibovitz - como se ela não pudesse ser boa escritora simplesmente por ter…uma vida.
E escrevia incrivelmente bem, principalmente sobre coisas mundanas, sobre aquilo com o que você se identifica de alguma forma. Textos hedonistas, sem culpa e que, sob a superfície do estilo, contam muito sobre a época e, sobretudo, sobre a cidade em que ela vivia.
Seu texto é sempre afiado e divertido: como quando descreve que o ator James Woods parecia “aquele único menino na oitava série que sabia sobre sexo". Ou outro exemplo: o seu perfil sobre Coppola e Poderoso Chefão II é uma das melhores leituras sobre cinema até hoje - e sem ser sobre cinema de fato, muito mais por tudo o que está por trás das câmeras.
Ou, ainda, a concisão de sua micro-crônica sobre o ator Cary Grant:
Uma vez vi Cary Grant de perto.
Ele era lindo.
Ele era exatamente como Cary Grant.
Três linhas apenas - e camadas e mais camadas de significados.
E o hedonismo também a marcava: como os textos sobre as noites sem fim de bebedeiras no Troubadour, Quaaludes, LSD, putarias, praia em Venice, piscina em Palm Springs. Como num texto em que Eve conta ter chegado ao valet do Chateau Marmont para pegar o carro, 48 horas depois de ter falado ao manobrista que só iria demorar alguns minutos, e passa um final de semana inteiro na farra ao encontrar duas amigas saindo da piscina do hotel. Ou quando escreve sobre comer o que ela falava ser os melhores tacos do mundo, uma grande memória afetiva, em um trailer pé-sujo na Olvera street, centro histórico de LA. Eve pega os taquitos, come um antes até de atravessar a rua, acaba comendo todos os tacos antes de chegar ao carro - e, sentada ao volante, começa a lamber o prato de papel. Levanta o olhar, vê um menino olhando para ela. Constrangida, fala para ele: “São tacos", apontando com a cabeça para o trailer de onde havia saído há pouco. Ele responde, compreensivo, “Sim, eu sei".
Eve não escrevia mais há muito tempo, bem pouco desde seu bizarro acidente em 1997. Saindo de um brunch com a mãe, irmã, tia e primas, tentou acender uma cigarrilha no seu fusca 68, enquanto engatava a marcha - o fósforo aceso caiu sobre a saia de tecido sintético que Eve gostava de usar quando saía para dançar, uma de suas obsessões depois de ter deixado o álcool e as baladas sem fim. O fogo se alastrou sobre a saia e suas meias em poucos segundos e quase a matou.
Escreveu sobre isso em I Used to Be Charming, texto que dá o nome a uma coletânea sua editada pela NYRB Classics. O pesadelo do acidente é revivido com suas tintas irônicas e auto-depreciativas. Sua escrita está intacta: Eve consegue escrever da mesma forma que antes contaria sobre a cidade que amava, ou sobre os bastidores de um filme badalado, uma entrevista com um ator famoso ou, ainda, as baladas do Chateau Marmont.
Assim que eu soube da morte de Eve, na manhã do sábado, 18 de dezembro, encomendei todos os livros que ainda não tinha dela. Vou guardar alguns para ler no futuro; reler os que já havia lido algumas vezes - e sempre vou ler de novo, porque são textos em que me pego rindo novamente de algo que eu já sabia, mas é sempre como se fosse a primeira vez.
Mesmo antes do acidente que a levou à reclusão, seus textos já rareavam no final dos anos 1990. Talvez porque o mundo sobre o qual Eve escrevia era o do século XX - esse século que talvez tenha sido como definiu o historiador Eric Hobsbawn - começou em 1914 e terminou em 1991. Um velho mundo.
Até onde sei, Eve Babitz nunca foi traduzida para o português. Compreensível: há toda uma teia de referências e assuntos que, editores devem pensar, não atrairiam um grande público. Mesmo quando houve um renascimento no interesse por ela nos EUA, há cerca de uma década (que foi quando descobri seus livros pela NYRB Classics), ela continuou uma figura cult. Talvez seja melhor assim: está aí para ser descoberta, talvez por acaso, talvez por uma indicação de alguém, por um texto cruzado, por uma outra referência. Para quem quiser ler é difícil de encontrar seus livros, só na Amazon talvez; com o dólar nas alturas, proibitivo também - mas vale cada centavo gasto.
p.s.: a citação do subtítulo vem dos parças de bebedeiras de Eve, The Eagles, na música Tequila Sunrise. Eve contava que passava de segunda a segunda no bar do Troubadour com Glenn Frey e outros Eagles, em meio a vários margaritas e tequila sunrises, no começo dos anos 1970.
p.p.s.: após programar essa newsletter para envio, soube que Joan Didion faleceu, em 23 de dezembro de 2021. Inicialmente, havia pensado em escrever sobre as duas em um único texto. Antecipei Eve, resta agora falar sobre Joan, no futuro. E é mais um pouco do século XX indo embora.
PARA SABER MAIS
O selo NYRB Classics foi responsável pela volta do interesse em Eve Babitz. As edições são sempre bem cuidadas e o selo faz um trabalho incrível de recuperar grandes escritores que, muitas vezes, não foram reconhecidos em sua época.
Obituário do Los Angeles Times, jornal da cidade que Eve adorava e para o qual escreveu algumas vezes.
Boa história da Vanity Fair sobre a famosa “partida de xadrez” de Eve com Marcel Duchamp, em 1963, no Pasadena Museum of Art.
PARA ACOMPANHAR A LEITURA
Tequila Sunrise, versão contemporânea, California, 1970s
Criado em 1930, era um cocktail diferente, com licor de cassis e limão. A forma mais conhecida surgiu nos anos 1970.
Um cocktail extremamente vilipendiado. A má-fama vem de ser um dos mais emblemáticos de um período em que a coquetelaria clássica estava no ostracismo - a Dark Age dos cocktails veio com o apogeu dos hippies e a aversão a tudo o que lembrava o establishment. Virou símbolo da Disco e, depois, uma cafonice dos anos 1990.
Mas a história do drinque tem momentos interessantes. A turnê dos Rolling Stones em 1972 ficou conhecida como “The Cocaine and Tequila Sunrise Tour”. Em um avião próprio, os Stones cruzaram os EUA no verão para divulgar Exile on Main Street, após 3 anos sem se apresentar em solo americano. Conheceram o drinque em uma festa em San Francisco. Gostaram tanto que consumiram quantidades industriais durante a turnê. E junto com montanhas de pó.
É difícil saber o quanto cada ingrediente do nome não-oficial da turnê é responsável por esses excessos.
Nessa turnê, Keith Richards chegou a puxar uma faca para Stephen Stills - então namorado de Eve Babitz - por conta de alguma discussão besta nas longas madrugadas de bebedeira e muito mais. Em seguida o drinque foi ‘adotado’ pelos Eagles, e foi aí que a popularidade desse cocktail aumentou exponencialmente. the cocaine cowboys eram amigos de Eve, principalmente Glenn Frey, grande companhia no balcão do Troubadour.
Uma resenha de um livro de Eve, Sex and Rage, vaticina “somente Eve poderia inspirar você a comprar sete caftans e todos os ingredientes para o Tequila Sunrise após ler apenas 10 páginas de seus livros". Não tem como não concordar, quando você descobre a escrita de Eve.
Nessa versão:
1 dose de Tequila Jose Cuervo Tradicional Reposado, Jalisco, Mexico
1 dose de Mezcal Espadín Cuish, Oaxaca, Mexico (inovação aqui: o Mezcal deixa mais defumado, e corta um pouco do doce excessivo do grenadine)
1/4 de dose de grenadine, para dar a cor tradicional. Leve trapaça: um pouco de Campari junto, para contrabalançar.
Completar o copo Collins com suco de laranja e bastante gelo.