Outras vidas que não a minha
Retrospectiva: as melhores histórias de 2023 têm algo em comum.
Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.
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Centésimo Locked Groove a rodar aqui.
Bastante coisa desde junho de 2021.
Foram anos selvagens, para emprestar o termo de Fito Paez. Começou antes, até. Desde 2013, era caldo após caldo. O ponto mais baixo foi a eleição do menor ser humano a sequer chegar perto da cadeira de presidente - em 2019, o pior projeto sociopolítico havia triunfado nas urnas.
No começo de 2020, eu saí do pior emprego que tive na vida. Nem vale a pena contar. Ou melhor - vale. Mas ainda não é a hora. Mas tem muita história sórdida corporativa que parece até mentira quando se conta. Em algum momento, deve rolar um texto por aí sobre isso.
Em março desse mesmo ano, o mundo virou de cabeça para baixo. Em setembro minha mãe morreu - de covid. No começo de 2021, meu sogro morreu - não de covid. A vacina para covid só chegou nessa época.
Foi mais ou menos quando comecei essa página aqui. Fiz testes. Trabalhei no primeiro texto por um tempo, testando, reescrevendo, jogando partes fora, indo por outros caminhos. Foi o texto que definiu o formato inicial e nunca chegou a ser publicado. Vou guardar para o futuro, como aqueles b-sides ou demos de bandas que aparecem em alguma caixa ou reedição.
Em junho de 2021, lancei a primeira edição. A ideia era ser semanal. Mas tomei a decisão de só publicar se fosse valer a pena. Nunca deveria ser para só cumprir cronograma: isso eu deixo para o lado A corporativo, já que vai fazer pouca ou nenhuma diferença no equilíbrio geral. Aqui nesse lado B, pessoal, precisa valer a pena para mim e para o leitor.
E por que esse Substack? Acho que foi muito por sentir falta de poder criar algo sem inúmeros palpites e opiniões de outros, sem refações, ajustes, edições. Sem ter gente que não tem nada a ver com o assunto e sequer entende do que está falando a dar seus pitacos como se fossem inteligentes ou minimamente interessantes. É um espaço onde eu tenho total poder de criação e edição.
Escrevi 100 textos desde então. Quantos realmente bons? Não serei eu a julgar. Só sei que estou satisfeito com eles.
Eu já havia tentado escrever antes. Mas, como disse John Lennon, vida é o que acontece quando você está ocupando fazendo outros planos (no lugar de ‘vida’, pode usar boletos, contas a pagar, tombos, rasteiras…o que for).
Já fiz de tudo aqui: falei sobre viagens, livros, música, política, ciências sociais; também teve aquilo que chamam de memorialismo (ou memoir lá para os gringos). Talvez até tenha rolado autoficção, quem pode saber? Tudo sempre muito pessoal e que tem a ver com o que sou e com o que eu penso.
E aí percebi uma coisa: as melhores histórias que li esse ano têm, de alguma forma, um lastro biográfico. Filmes também. Talvez seja um fio condutor nas escolhas que fiz - ou estou influenciado por ter chegado a essa centésima publicação super pessoal e acabo vendo conexões que fazem mais sentido para mim em tudo o que leio ou vejo.
Não pude deixar de pensar nisso quando fiz essa retrospectiva. Adequado, talvez, como último texto do ano. Então aí vai.
01. Melhor livro de ficção (mesmo)
Aqui é fácil: já falei de Monica, de Daniel Clowes, nesse texto aqui. Não mudo um milímetro do que falei; o melhor livro de ficção do ano vem de um gênero subestimado, as histórias em quadrinhos. Li muito Clowes nos anos 1990, com sua série Eightball, onde foram serializadas várias das boas histórias dele que se encontram hoje em livrarias. Monica veio depois de um hiato de 7 anos.
São 9 histórias que traçam a biografia de Monica, desde antes de seu nascimento até um futuro próximo (há um trecho que cita ‘a primeira pandemia’, indicando que a última história não se passa no presente). É para ler mais de uma vez. Histórias aparentemente desconectadas acabam se juntando num painel que faz cada vez mais sentido: teorias de conspiração, subculturas, consumismo, acumulação, cultos e ideologias bizarras - Clowes junta tudo numa biografia que, ao final, explica muito do que são os EUA (e o mundo capitalista) hoje em dia.
Clowes escreve bem, desenha bem, tem ótimo ouvido para diálogos - e, mais que isso, faz ficção como poucos, com mais ousadia e profundidade do que 90% do que se passa hoje por literatura.
Como já contei antes, Clowes define bem o conceito do livro: “Talvez Monica seja sobre o meu ódio pelo caos".
02. Melhor livro de autoficção (ou nem uma coisa, nem outra)
Numa outra vertente, Yoga, livro de 2020 de Emmanuel Carrère, poderia ser o típico livro de uma certa literatura contemporânea que tem a solução redentora para todos os problemas do mundo. Livro que sai por editora rica e estabelecida, escrito por um escritor famoso e que aparece na mídia, com propaganda feita por ‘influentes’ comentaristas (agora há YouTubers ou instagramers de literatura); poderia ser aquele tipo de livro bem chapa-branca que a classe média ilustrada gosta porque reafirma sua visão de mundo justa e progressista e permite ótimas citações clichezentas e superficiais, bem adequadas para Instagram ou Facebook.
E tem mais: Yoga entra na categoria da hoje famosa ‘autoficção’, que virou uma das muletas mais recorrentes da literatura contemporânea.
Mas Carrère é esperto demais para cair nessa. O que parece ser, de início, um longo livro-reportagem sobre yoga, ou sobre o processo de se escrever esse longo livro-reportagem, passa por uma Sirsasana (o nome bonito em sânscrito para aquela postura da invertida sobre a cabeça) - e não uma, mas algumas vezes.
A partir de um retiro total de yoga e meditação, Carrère abre todo um universo de investigação e reflexão sobre saúde mental, relações, instabilidades pessoais e do mundo contemporâneo. Escrita fácil, mas nunca de forma condescendente. Não joga no time da literatura redentora: ao contrário, cutuca muito a acomodação, faz correlações inesperadas, comenta o mundo com olhar afiado.
Grande livro, que ganha por um milímetro de Trilogia de Copenhagen, de Tove Ditlevsen, do qual já falei aqui e que também tem esse jeito de memoir e autoficção. Ditlevsen é um achado desse ano, mas Carrère tem mais uma vez um grande livro (Limonov, seu livro de 2013, é incrível também).
03. Melhor livro de não-ficção (agora sim)
Depois de ficção com jeito de biografia e não-ficção com cara de autoficção, vem um livro que é, ao mesmo tempo, autobiográfico, relato de viagem, narrativa jornalística, narrativa literária - e tudo isso em 1953. A Visit to Don Otavio, de Sybille Bedford, é, segundo a própria autora, um livro de viagem escrito por uma novelista.
Nesse relato de viagem, Sybille e uma amiga, identificada apenas por E., viajam de Nova York para o México, durante os anos 1940. Bedford tem um bom olhar para os detalhes, é irônica, divertida, engraçada e mordaz. Não poupa os turistas estrangeiros, a elite mexicana, os expatriados que encontra pelo caminho. Mostra o machismo arraigado no país (seja dos mexicanos ou dos estrangeiros), a dureza das condições de vida da população, a burocracia e as corrupções cotidianas, as armações e futilidades dos ricos, o preconceito e o racismo dos gringos. Mas tem também uma admiração genuína pelo país que aprende a amar. O centro do relato é a temporada que as duas e mais um amigo americano passam na propriedade de Don Otavio, o aristocrático latifundiário decadente que dá o título ao livro.
Nunca teve tradução para o português e ficou anos fora de catálogo. Bruce Chatwin, outro autor de travelogues que adoro, considerava esse o melhor livro de viagens do século XX. Para quem conhece o México, é incrível; fiquei até com vontade de voltar para lá, depois de ler o relato de Sybille Bedford.
O livro de Sybille é como uma daquelas viagens marcantes: faz com que entremos em outra realidade, conheçamos outras vidas, outras formas de ver o mundo. Experimentamos a alteridade: ver o mundo por outro olhar que não o nosso. É para isso que viajamos, não?
“Uma grande parte de viajar é um compromisso entre o ego e o mundo. O mundo tem a cabeça de uma hidra, tão antigo quanto as rochas e tão mutável quanto o mar, inextricavelmente enredado em seus caminhos. O ego quer chegar aos lugares com segurança e na hora certa.”
_Sybille Bedford
04. Melhor filme DE 2023
Outro que já falei também foi o filme Não espere muito do fim do mundo, de Radu Jude (Romênia, 2023). Melhor filme da Mostra Internacional de Cinema para mim. Melhor do ano, até. A revista francesa Cahiers du Cinéma colocou no top 10 de 2023, a revista Sight and Sound do British Film Institute também.
Anárquico, intenso, com uma montagem que junta desde um filme romeno de 1981 até trechos de reuniões do Zoom ou reels de Instagram, é brilhante na forma e um chute na boca em termos de conteúdo. É, de alguma forma, uma biografia rápida, um retrato de um dia na vida de Angela (Ilinca Manolache, genial), uma assistente de produção de publicidade na Bucareste do capitalismo selvagem e midiático atual. Angela entrevista quatro trabalhadores de uma multinacional austríaca que atua na Romênia, em busca de uma história de acidente de trabalho que renda um bom filme para passar pano na imagem da empresa. Enquanto roda pela cidade em sua rotina sobrecarregada, ainda faz reels de seu personagem Bobtiza (ela mesma, usando um filtro horrendo de um eslavo/cigano/albanês careca e de cavanhaque cafona. Um personagem machista, racista, escroto e misógino, praticamente um bolsominion).
Biografias de quem vive nesses anos selvagens dos 2020 não ficariam muito longe da rotina de Angela. Grande filme, de um grande diretor, que expõe a farsa do capitalismo periférico em que vivemos e que gera figuras como Bolsonaro ou Milei. Ainda vai ser considerado um relato fiel de nossos tempos - praticamente um documentário.
05. Melhor filme EM 2023
O melhor filme de outro ano, mas que assisti em 2023, foi Beau Travail, de Claire Denis (França, 1999). Não vi o filme quando passou originalmente - talvez nem tenha estreado no Brasil. Eu, que vi muitos filmes de Claire, não lembro de Beau Travail (seus filmes Nenétte et Boni e Trouble Every Day têm trilha de Tindersticks, uma banda predileta da casa nos anos 1990, e por isso ela entrou no meu radar na época). Assisti agora pela primeira vez.
A história é contada em retrospectiva por Galoup, ex-sargento da Legião Estrangeira Francesa. A aparente calmaria marcial em uma unidade de legionários num país africano é quebrada com a chegada de um novo recruta, que se destaca logo de cara e desperta a inveja profissional (ou não) de Galoup. O sargento se ressente de não ser notado pelo comandante da unidade, por mais que cumpra com perfeição robótica todas as suas funções militares, quais sejam: treinamentos sem fim, patrulhas em que nada acontece, lavar e passar roupa com total esmero, cozinhar, arrumar camas.
A chegada do novo recruta tira Galoup do eixo, no que parece ser uma disputa profissional, na superfície. Baseado em Billy Budd, de Herman Melville, é uma história de poder, ciúmes e homossexualidade enrustida, em que nada do que está na superfície é a realidade.
Claire Denis filma com maestria poucas vezes vista no cinema. Tudo é oblíquo e subentendido na sua câmera, que funciona como um olhar narrativo adequado à história - é como se fosse o olhar de Galoup, com tudo o que quer esconder, mas que acaba por revelar inconscientemente suas intenções e conflitos internos. A rotina militar é uma coreografia bem executada, a fotografia traz tons azulados e terrosos que são verdadeiras pinturas, os detalhes e a sutileza na montagem são essenciais para a história. Cinema em sua forma mais pura.
A estrela é Denis Lavant, o feioso mais talentoso do cinema francês (e olha que lá há muitos que militam em ambas as categorias). É o centro do filme, em uma atuação forte e sem canastrice nenhuma, bem longe do registro de Hollywood, por exemplo. Lavant é ator-fetiche de Leos Carax e também entra na já tradicional intersecção com a música que eu sempre observo, ao estrelar o clipe de Rabbit in your Headlights, do Unkle, com vocais de Thom Yorke.
E por falar em música, é fantástica a cena final (não é spoiler) em que Lavant dança sozinho The Rhythm of the Night, de Corona. Confere aí embaixo a bee fervendo na pista do nightclub decadente. Merecia um Oscar só por essa cena.
Com essa performance magistral de Lavant, encerramos 2023. Volto em algum momento do começo do ano. Essa pausa vai ser boa para repensar também alguns formatos e ter fôlego novo para mais um ano de Locked Groove.
Como já falei, 10 entre 10 textos mais lidos nas primeiras 24 horas foram desse ano; 8 entre 10 textos mais lidos no geral foram em 2023 também. Número de assinantes crescendo. Cada vez mais leitores. Mas tudo de forma orgânica. Sem jabá, sem compromissos, a não ser com o leitor.
O título dessa semana vem de um livro de Emmanuel Carrère. Representa bem as boas histórias do ano, tema dessa segunda parte da retrospectiva de 2023. Tantas histórias boas ajudaram muito a pensar, a refletir sobre o que vivemos e sobre o que tenho feito aqui nesse espaço.
Logo mais tem mais. Gracias…totales!
Aproveito seu parágrafo inicial para tentar definir o Locked Grove: eu ouço um podcast da excelente Rádio Novelo, e no último episódio a história contada fazia um paralelo com as anotações que se faz na borda de um livro, são chamadas “marginalia”. O que lemos aqui pra mim é uma marginalia de tudo que acontece em vários aspectos da vida, escrito nessas bordas e rodapés das páginas por alguém que entende do assunto principal.
Que venham mais textos!