Memórias de um mundo fantasma
Correndo por fora, Daniel Clowes lança o melhor livro do ano.
Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.
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Gênio não é uma palavra que uso levianamente.
Evito ao máximo ser superlativo. A chance de você se enganar e ser levado pelo entusiasmo do momento é grande. Deixo isso para os fanboys por aí.
Mas Daniel Clowes é um que merece essa definição, sem medo de errar.
Low profile total, Clowes tem que ganhar mais reconhecimento ainda por criar em um gênero subestimado: Histórias em Quadrinhos.
‘Subestimado? Como assim?’, já perguntaria o Gen-Z apressadinho, fã de filme de hominho que quebra tudo. ‘As maiores bilheterias do cinema hoje são de filmes baseados em HQs, todo mundo conhece, é praticamente consenso que é onde estão os personagens mais populares e conhecidos'.
Saiba que nem sempre foi assim, gafanhoto. Até mais ou menos a virada do século XXI, quando os X-Men de Bryan Singer ou o Batman de Nolan fizeram sucesso no cinema, HQ ainda era subcultura.
As exceções de antes confirmam a regra: Batman (1989), por exemplo, fez sucesso mais por entrar na conta da esquisitice de Tim Burton ou do orçamento milionário do que pela disposição do público médio de assistir filme de HQ.
Ainda era época em que Histórias em Quadrinhos eram coisa de criança ou adolescente nerd-esquisitão. Hoje, filme de super-herói é o que os folgadões que você odiava na Educação Física gostam, o que os pais assistem mesmo sem criança junto, o que até mulher se dispõe a aguentar (antes, super-herói de HQ era um universo mais masculino e misógino do que Heavy Metal; o público feminino em sua maioria não tinha, óbvio, paciência nem para uma coisa e nem para outra).
A colonização de Hollywood pelas HQs obedeceu a uma lógica comercial impecável: existia uma grande reserva de centenas ou milhares de personagens, testados por anos, já com histórias e contextos bem desenvolvidos, com arquétipos bem estabelecidos; para que perder tempo em criar algo do zero, quando é muito mais fácil e rentável simplesmente pinçar algo das milhões de páginas já criadas?
E tudo isso com a vantagem de fazer uma transição suave e sem esforço para o maravilhoso mundo do collateral - aquele subproduto que era desprezado até George Lucas inventar essa roda, lá em 1977, com Guerra nas Estrelas. Em bom português, isso aí é o nome que resume aquela caralhada de brinquedos, roupas, video games, livros, posters, copos, McLanche Feliz, dildos, cachimbos de crack - tudo o que der para associar aos personagens.
Mais fácil do que pescar com dinamite. E tome filme de super-herói, até os mais obscuros e risivelmente medíocres (alô você, Besouro Azul!). Queremos faturar, como já falava aquele antigo super-herói da televisão, o Chacrinha.
Daniel Clowes é criador de Histórias em Quadrinhos, mas não aquelas que todo mundo conhece hoje em dia. Ele milita em outra trincheira, onde não pingam esses capilés todos associados com os grandes heróis de Marvel ou DC. É um canto do mercado que é desconhecido até da grande maioria dos fãs de HQ. Um lugar onde quem conhece a cronologia toda de X-Men nos mínimos detalhes ou sabe recitar Mxyzptlk ao contrário tem medo de ir.
Esqueça os super-heróis, desses que povoam as telas de cinema agora. Esqueça ator canastrão que ganha Oscar por interpretar personagem de HQ. Esqueça essas histórias de multiverso confuso, meme de Homem-aranha, histeria de fanboy misógino incel; esqueça, principalmente, todo o marketing que definiu o gênero de super-heróis como a salvação do cinema.
Esqueça também os que tentam transformar esse universo em algo além da porradaria sem sentido e querem dar ao gênero um ar adulto, como Christopher Nolan e seus chatíssimos filmes de Batman; isso sem falar naquelas enrolações sem fim do picareta mais superestimado do cinema, Tim Burton. Aliás, certo estava Jack Nicholson, que agarrou logo seus milhões de dólares por 2 horas de caretas e canastrice e viveu feliz para sempre.
Daniel Clowes está na outra ponta do multiverso do entretenimento. Ao mesmo tempo em que não tem nada a ver com o que se convencionou chamar de Histórias em Quadrinhos no mainstream, também está fora do radar da maior parte das pessoas que se interessam por ‘literatura séria' - não por conta da qualidade de sua obra, mas pela tendência desses leitores que só vão atrás do que é canônico ou vem com o selo de aprovação do establishment cultural (e já falei disso aqui nesse texto de uns meses atrás).
Ele também não dá a mínima para redes sociais e mantém sua vida de quase reclusão. Não aparece sequer nas Convenções de HQ que viraram eventos de pré-lançamento de filmes; prefere ver um filme diferente toda noite, no conforto de sua casa, como revelou numa entrevista recente.
Quadrinhos não são apenas os super-heróis norte-americanos e os filmes derivados desses personagens. Apesar da predominância da indústria cultural dos EUA no mundo todo e do destaque que esse tipo de HQ tem, há inúmeras vertentes de quadrinhos e, não raro, criações locais vendem muito mais do que as HQs de super-heróis. Até nos EUA há um mercado de quadrinhos alternativos e underground que está a galáxias de distância do que é feito no Mainstream - mesmo que as vendas não sejam grandes, os lançamentos são bem significativos e oferecem uma alternativa.
Fortalecidos desde a contracultura do final dos anos 1960, os comix, quadrinhos underground e de temática bem mais interessante do que os super-heróis mega convencionais e caretas, se mantêm firmes e dando origem a bons talentos. Foi desse lugar que Clowes apareceu.
Eightball, uma série de quadrinhos iniciada em 1988, fez o nome de Daniel Clowes no quadrinho underground. Uma mistura anárquica de humor negro, perversões, bizarrices em geral - alguém já definiu a obra de Clowes como o equivalente ilustrado de um filme de David Lynch.
Grande roteirista e desenhista, Clowes tem obras importantes e é difícil uma pisada na bola. Nada lembra minimamente o mundo dos super-heróis - a menos que seja para zoar sem pena das gigantes Marvel e DC e suas criações.
Muitas de suas histórias na Eightball foram depois reunidas em Graphic Novels (o nome metido a besta para um álbum bem impresso, em papel de qualidade, com preço mais alto).
Nesses tempos em que Hollywood virou uma grande linha de montagem de filmes de super-heróis, Daniel Clowes teve algumas interações com o mundo do cinema, mas nada nesse campo que hoje domina o cinema. Tem embaixo do braço uma indicação ao Oscar de melhor roteiro adaptado em 2002, por um filme de Terry Zwigoff baseado em uma graphic novel de Clowes, Ghost World, e o primeiro papel de destaque de Scarlet Johansson. Clowes ainda teve outro esbarrão com Hollywood, esse bem mais bizarro: em 2014, foi plagiado pelo mala-sem-alça Shia LaBeouf, que copiou num curta diálogos inteiros de uma obra de Clowes e depois tentou vender outro curta que era exatamente igual a uma HQ do autor. Só voltou atrás depois de sentir que um processinho dobrava a esquina.
Li muito Clowes até mais ou menos 2003/2004. Com o fim de Eightball, saiu um pouco do meu radar. Ao mesmo tempo, sua produção diminuiu de ritmo e Clowes passou a se dedicar a narrativas mais longas. Deixei de ler suas últimas graphic novels e, para mim, acabou sendo uma memória distante.
Em 2023, Daniel Clowes retornou em grande estilo: a expectativa em torno de Monica, sua nova graphic novel, parecia digna da reunião de alguma banda que voltava depois de anos sem tocar juntos. A última obra de Clowes havia saído em 2016. Bastante tempo no mundo das HQs. Valeu a espera.
Uma biografia. É essa a definição mais simples para Monica.
Da mesma forma, uma sinopse pode parecer simples também:
Monica nasce nos anos 1960. A mãe é Penny, uma hippie politicamente engajada; o pai, desconhecido. Penny deixa Monica com os avós e some no mundo, após se juntar a uma seita. Monica passa toda a adolescência e vida adulta tentando reencontrar a mãe e descobrir quem é seu pai.
Daniel Clowes deu uma entrevista para o Comics Journal, revista dos EUA sobre quadrinhos, e resumiu o conceito: a cradle-to-grave story about a woman's life.
Parece simples, de fato. Mas não avisa que o metafórico berço aí é tão cheio de mistérios e nem que o túmulo vai ser apoteótico - isso sem falar em tudo o que acontece entre essas duas instâncias.
Com Clowes nada é objetivo ou superficial. A história é elíptica e estruturada em nove histórias interligadas de alguma forma que não é óbvia para o leitor - seja por terem Monica como protagonista em diferentes momentos da vida, seja por falarem de Penny, ou até com personagens que aparentemente não fazem parte da história mas ajudam a montar um panorama completo do mundo em que Monica vive.
A busca de Monica pela mãe desaparecida e pelo pai misterioso é complexa e cheia de nuances e implicações psicológicas. As nove histórias vão incluindo pistas falsas, plot twists, bizarrices em geral, desvios completos da rota que você só vai perceber que têm relação com a história principal mais para a frente.
Como Clowes, vou fazer aqui um desvio rápido e falar de algo que parece aleatório, mas que faz bastante sentido aqui.
As nove histórias têm a maior cara de fazer parte de um almanaque da antiga EC Comics, editora que fez fama nos anos 1950 com histórias de detetives, romances, guerra e terror, mas que quebrou assim que o Comics Code entrou em vigor - em resumo, um código de conduta das HQs, fiscalizado por um board de avaliação (o Comics Code Authority, criado pelo sindicato patronal das editoras) criado durante o pânico anticomunista e conservador do pós-Guerra.
O Comics Code Authority (CCA) avaliava e dava (ou não) um selo de aprovação para todas as histórias em quadrinhos produzidas nos EUA. O código vetava alguns temas: violência gráfica (já volto nesse tema), alusões sexuais e sexo real, uso de ou alusão a drogas e substâncias ilícitas, “homossexualismo” (sic), disfunções familiares (?), críticas religiosas (??).
Como acontece naquele país que é a terra da liberdade de expressão, não era uma censura às claras: era um sistema de auto-regulamentação (ó, olha aí a crença de que o Mercado se “auto-regula”). Os cidadãos de bem que compunham o board da CCA lutavam para preservar a inocência de crianças e adolescentes, meio como aquela sua tia ativa no zap ou o seu cunhado bolsonarista que hoje lutam contra banheiros unissex ou educação sexual nas escolas.
O CCA concedia um selo de aprovação que era estampado na capa das revistas em quadrinhos à venda nos EUA; se a editora não cumprisse com a auto-censura, o CCA não tinha legalmente o que fazer - censura não existe lá naquelas bandas, não é? - mas lojas, farmácias e mercados que vendiam quadrinhos não aceitavam vender ou distribuir uma revista que não tivesse o selo na capa. Ou seja, era censura na prática. Resumo: quem se recusasse a submeter suas revistas ao CCA ou não fosse aprovado pelo board, poderia imprimir suas revistas sem o selo; mas como distribuir ou vender?
Nessa época, revistas em quadrinhos sobre crime, terror, guerra, faroeste e romance eram as mais vendidas e varriam o chão com os ‘velhos’ Batman, Super-Homem e Capitão América, para ficar nos ex-campeões de vendas. A EC Comics tinha boa parte das HQs mais vendidas no mercado do pós-Guerra nos EUA, posição alcançada com a decadência dos super-heróis que haviam sido sucesso de vendas entre os anos 1930 e início dos 1940 e eram ainda publicados pelas maiores e mais influentes editoras do mercado como DC, Charlton e Atlas, mesmo com as vendas cada vez menores.
Com o Comics Code, a EC perdeu boa parte dos seus best-sellers, seja por se recusar a submeter-se à aprovação do CCA, seja pela debandada dos artistas que não aceitavam a censura velada, ou por não conseguir o selo de aprovação. Em pouco tempo a empresa cancelou quase todos os seus títulos e pediu concordata pela falta de faturamento e pelas dívidas que se acumulavam.
Não existe vácuo num mercado que tem demanda. No caso, os muitos leitores de HQs tiveram de se virar com o produto que estava em abundância nas prateleiras: as histórias em quadrinhos de super-heróis, que docilmente haviam se adaptado rapidamente aos padrões do CCA (ou, talvez, numa outra forma de ver, quem sabe os parâmetros do CCA fossem exatamente os que guiavam as HQs de super-heróis?). As grandes editoras, por um lance de sorte (🤔), de repente estavam com uma mina de ouro em mãos: HQs adequadas à inocência da juventude da América, defendendo o bom, o correto, a ética protestante, o espírito do capitalismo e o American Way of Life.
Mas você aí, acostumado com super-heróis em que tiro, porrada e bomba são tão importantes quanto diálogos, deve estar se perguntando: mas essas HQs de heróis não são ultraviolentas até hoje? Como é isso? Não deveriam sofrer com a auto-regulamentação e essas coisas todas?
Aí é que entra o termo ‘violência gráfica', um eufemismo bem interessante e que deve ter sido pensado por algum advogado bem do filho da puta. Segundo o CCA, a expressão valia para cenas de violência em que aparecem sangue, órgãos mutilados, olho furado etc. Enfim, uma representação explícita de violência. Porém, num típico lampejo de gente que entende de nuances, ‘violência’ poderia existir no mundo encantado do CCA, desde que da forma correta. Por exemplo, Thanos poderia destruir um mundo inteiro com bilhões de pessoas, ou o Coringa poderia mandar vários para o necrotério com gás venenoso, ou a porrada poderia comer solta do jeito mais brutal possível - era só não mostrar sangue ou algum personagem detonado por outro até virar algo parecido com o lixo do açougue.
O código definido pela Comics Code Authority é o puro suco dos EUA: protege as grandes corporações (a DC já era parte de um conglomerado de mídia na época), afasta influências nefastas de artistas sem controle criativo e fortalece os criadores alinhados com o status quo e, finalmente, preserva os valores dos EUA, inclusive a boa e velha violência, que está intrinsicamente ligada à natureza do país.
Não precisa de muito esforço para entender o quanto o Comics Code Authority tem parte de responsabilidade pelo panorama cultural de hoje: sem ele, as grandes editoras que publicam super-heróis não teriam tido fôlego para se estabelecer como forças dominantes do mercado e nem entrado numa nova era de ouro a partir dos anos 1960; ou seja, não haveria esse grande filão a ser explorado hoje pelo cinema. Tem tudo a ver com aquilo de que falei lá no começo do texto e é, também, tudo aquilo que é o contrário do que Daniel Clowes faz em Monica e em suas HQs anteriores.
Monica homenageia exatamente esses quadrinhos perdidos da EC Comics. A arte é nostálgica e as nove partes não-sequenciais do livro têm a cara de antigas histórias desse mundo que passava longe das HQs de super-heróis. As páginas têm diferentes e sutis colorações, em tons amarelados, como de páginas envelhecidas das antigas HQs de papel jornal e impressão chapada a 4 cores - é quase como se viessem de histórias há muito guardadas. Há todo um significado nessa mudança de cores, mas Clowes não revela o que é.
Ao trazer as temáticas típicas da EC Comics como se fosse uma colagem pós-moderna (ó, que profundo), Clowes recupera o espírito dessas HQs que ficaram no limbo, mas com uma narrativa comtemporânea que fala muito sobre os Estados Unidos da nossa época, sobre a contracultura e tudo o que se tornou a sociedade liberal do pós-Guerra.
As referências, significados ocultos e metáforas são inúmeras, mas não entram no caminho da boa história; como nos livros de Thomas Pynchon, a complexidade está a serviço do clima narrativo e da história. Com a sua forma narrativa que se apoia no quebra-cabeças das diferentes narrativas, Clowes transforma a reconstituição que Monica faz de sua vida numa reflexão sobre como alguém conta sua própria história - quase como uma sessão de psicanálise.
Talvez a chave esteja em colocar em ordem todas as peças que Clowes espalha ao longo do livro. Fazer do caos inicial da vida de Monica um todo coerente, que é o que a protagonista tenta. Pode ser uma interpretação, mas não é a única. Talvez tenha diferentes significados, para diferentes leitores, em diferentes momentos. E isso faz Monica ser, talvez, a melhor obra de ficção do ano.
Ou, de forma mais simples, como Clowes fala em uma entrevista:
“Talvez Monica seja sobre o meu ódio pelo caos".
Enquanto lia sobre o tal selo de bom comportamento das editoras fiquei refletindo o quanto esse puritanismo hipócrita dos americanos fez e faz tão mal ao mundo quanto a idade média fez por mil anos. Em tempos de Oppenheimer no cinema, mostrando a caça às bruxas resultado da ressaca moral quando os russos conseguiram a bomba atômica (Deus não tinha dado a bomba atômica para os EUA fazerem a paz mundial?). Também por causa da crise territorial da Guiana com Venezuela fiquei sabendo do “suicídio” coletivo de Jonestown, quase 1000 pessoas perderam a vida por causa de um doente religioso americano no fim dos anos 70. Bizarrices como a censura deles ao vaso sanitário, que não podia aparecer na TV. Exemplos da esquisitice deles não falta. Quanto do nosso pensamento e nossa moral não é regido subconscientemente pelo bom-mocismo dos americanos?