Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.
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Intro.
Literatura nunca foi espaço de lições de vida, positividade, redenção. Pode até ter existido algo assim. Mas nunca foi o objetivo - fazer as pessoas se sentirem melhores, ou virarem pessoas melhores? Nem mesmo a Bíblia era assim. E quer saber? Jesus morreu pelos pecados de outros, mas não os meus.
Gente ruim, canalhas mesmo, verdadeiros cavalos-do-cão sempre foram mato na literatura. Alcoólatras eram os menos nocivos desse bando, veja só.
É sério - ou pelo menos era. Cite um(a) escritor(a) e te aponto um(a) filho(a) da puta - ou até mesmo a própria.
Ih, não pode usar mais esses termos? 😬
Isso tudo aí até que poderia ser verdade há alguns anos. Hoje, não: temos exemplos e mais exemplos de livros com redenção, justiça social, mensagem positiva, superação de adversidades e por aí vai. Viraram a norma e não a exceção.
Literatura hoje está aí para denunciar, para redimir, para defender o bom e o correto. Fazer avançar uma agenda positiva e progressista, como dizem. Virtude tem que ser demonstrada e, se possível, num espaço entre 148 e 264 páginas, o intervalo numérico que é uma fórmula mágica para 10 entre 10 livros na lista dos mais vendidos.
Jornada do herói, então, é do que mais se fala. Arco narrativo, também. Tudo isso para levar ao esperado final com redenção, conclusão cristalina, sem pontas soltas, sem ambiguidades. Tudo em etapas claramente definidas que servem para revelar aos poucos o “surpreendente” final - que só surpreende quem está a fim de se deixar levar. Com múltiplas vozes, se possível, que uma só já não dá conta. Narrativa coral? Melhor ainda. E auto-ficção pode também e está bem na moda; só tem que tomar cuidado para o narrador não deixar de passar por uma transformação para se tornar melhor. Não pode seguir como um ser abjeto e egoísta que só quer saber de si - afinal, ele deve ter compromisso com a humanidade e com as causas justas.
Hoje, autores preferidos da casa como William Burroughs, Henry Miller, HST, Caroline Blackwood, Céline, Denis Johnson, João Antônio, Miguel Esteves Cardoso, Edward Albee, Ballard, Eve Babitz e outros mais não teriam vez. O bom-mocismo é o que impera e, em tempos de cancelamento, a figura pública do escritor também é um impulsionador poderoso de vendas e likes. E dá-lhe poses instagramáveis e monetizáveis, participação equilibrada e milimetricamente calculada em debate público e em programa de TV, coluna em jornal para falar só do que é moralmente elevado ou atacar o que é consensualmente perverso. Nada de polêmicas que podem levar ao cancelamento - ou sequer prestar solidariedade a alguém envolvido em uma polêmica dessas.
Melhor mesmo é entender qual é a banda que está tocando o ritmo da vez, dar uma acenadinha, uma dançadinha, quiçá cantarolar a música junto para não terem dúvidas de que o autor está moralmente comprometido com a causa boa e justa. Não uma qualquer - tem que ser A CAUSA. Não pode diluir ou escolher, tem que pegar o pacote todo. Para manter a metáfora, meio como ver um desfile passando e correr lá na frente para agitar a baliza.
Ser escritor hoje em dia é, pelo visto, ser como um daqueles participantes de reality show que ‘conquistam a todos’ com sua retidão moral, sua postura honesta, sua propensão a fazer o bem sem olhar a quem.
Resumindo, vou parafrasear Yossarian, em Ardil 22 :
“O capitão era alguém que queria que todo mundo fosse feliz - ou seja, uma pessoa profundamente perturbada”.
1.
Quando vi que a escritora dinamarquesa Tove Ditlevsen começou a ser falada em tudo quanto era jornal gringo, pensei que viria por aí mais um desses livros que “todo mundo tem que ler". Uma nota que li tinha todo aquele jeitão de redescoberta de uma autora cheia de superações, mas injustamente esquecida, e que agora era hora de reparação histórica.
Eu já havia lido uma matéria sobre o escritor norueguês Karl Ove Knausgård que citava Tove. Era uma autora restrita geografica e culturalmente. Até mesmo na Dinamarca era pouco falada há até alguns anos, apesar de ter feito certo sucesso entre os anos 1950 e 1970. O bad career move de sempre: morrer. O que quase nunca faz bem para alguém do mundo das artes, a menos que sua morte tenha sido épica - extremamente repulsiva ou altamente redentora.
Tove Ditlevsen foi um fenômeno literário mais ou menos popular na Dinamarca como poeta, contista, romancista, memorialista e até mesmo autora de livros infantis - ou seja, jogava nas onze. Quando morreu, em 1976, era bem conhecida, mas caiu num certo esquecimento desde então.
Nos anos 2010 começou a ser redescoberta e sua obra mais conhecida, a Trilogia de Copenhagen, finalmente foi integralmente publicada em inglês, em 2019. Como gostam de dizer, virou um fenômeno literário no mundo anglo-saxão - afinal, para esses bacanas lá que falam inglês, se algo não acontece na língua deles, pensam que não deve nem existir.
Fiquei intrigado pelo pouco que soube de Tove Ditlevsen e do seu Trilogia de Copenhagen que, na verdade, são 3 livros sequenciais e auto-contidos (e são reunidos numa única edição na maior parte das traduções). Comprei a edição em inglês quando não havia nem sombra de alguma edição nacional; agora, sei que em breve (acho que outubro) sai pela Companhia das Letras.
Todo o buzz em torno de Ditlevsen me deixou um pouco com o pé atrás. Por um lado, poderia ser uma escritora do nível de Annie Ernaux ou Elena Ferrante, que têm uma qualidade atemporal; por outro, graças a alguns press releases bestas e matérias mal-escritas, poderia ser também só um caso do produto certo, no momento certo: num mercado em que vozes femininas ainda são escassas, muitas vezes um livro ganha espaço por ‘defender a causa certa’, ou por apelar a uma determinada sensibilidade do público, e não necessariamente pela qualidade literária.
(Ó a polêmica aí! Anda, abraça logo, não deixa passar!
Agarra ela logo, cabra! Pega nada não, vai por mim!).
Como já falei antes aqui, existe um conceito mercadológico do best-seller da classe média ilustrada - uma expressão cunhada por um amigo meu que trabalhou nas maiores livrarias de São Paulo. São aqueles livros que vendem muito mas ficam, ainda assim, longe dos números daqueles que são entretenimento burro, livro de auto-ajuda, deseducação financeira por subcelebridade picareta ou aqueles horrendos no estilo de “a sutil arte de ligar o foda-se”. Anos atrás, entravam nessa categoria livros de Vargas Llosa, Pamuk, Murakami, Hugo Mãe, Saramago, Auster, Chico Buarque; hoje são, entre outros, Itamar Vieira Jr, Carla Madeira, Elena Ferrante, Annie Ernaux, Chico Buarque (que continua sempre inabalável nessa lista; já volto nisso).
Uma outra definição simplificada que pensei agora: são livros de sucesso escritos por (e para) pessoas que sabem interpretar texto. São aqueles que as editoras sabem que vão vender bem no mercado atual, mesmo que o mercado editorial pareça cada vez mais dominado por gêneros superficiais. São autores que escrevem bem e de um jeito que apela a um público que tem referências e conhecimento; autores que fazem sucesso em eventos literários, vendem bem pelo mundo, são citados por celebridades. Um lugar que, no passado, já teve Jorge Amado e Paulo Coelho, por exemplo (sim, Paulo Coelho só é tratado a pontapés no Brasil - no exterior, entra nessa categoria de prestígio).
É um meio termo entre validação intelectual e sucesso financeiro. A equação é fácil de entender: se uma editora só publica padre amigo da garotada, best seller burro e coach charlatão, arrisca-se a perder de uma hora para outra sua galinha dos ovos de ouro quando mudarem os ventos do mercado; na mão inversa, se a editora apostar todas as fichas na vaidade intelectual de só publicar obras herméticas com milhares de páginas, não fecham as contas.
A terceira via editorial é o terreno onde as maiores editoras querem estar. É um oásis onde há prestígio intelectual E dinheiro entrando. É mais ou menos assim: quem não quer ter Caetano Veloso na sua gravadora? Quem não quer trazer a turnê de Paul McCartney ao Brasil? Custa caro, mas é seguro e vale cada centavo em retorno financeiro e prestígio.
Problema que se vê logo de cara: há poucos desses gênios da raça disponíveis por aí - senão, não seriam tão cobiçados assim. Quem quer ver show de Paul pode até aceitar Ringo, mas a propensão do público a abrir a carteira diminui sensivelmente.
A metáfora musical não poderia ser mais adequada. Na lista dos grandes vendedores de livros prestigiosos do Brasil está sempre o nome de Chico Buarque, como falei lá em cima. Sem entrar no mérito literário de Buarque, um nome mais ou menos reconhecível do grande público já parte de um patamar mais alto do que alguém que tem que construir o seu nome apenas no mercado editorial. Só a assinatura reconhecida já vende e garante que o catálogo anterior continue a sair, mesmo sem novos lançamentos a cada ano.
Na literatura, especificamente, um grande autor de prestígio pode demorar anos para lançar um novo livro. Há o catálogo passado, é claro, mas é uma venda residual. O que fazer então num intervalo desses para manter a editora sempre em evidência e com fluxo de caixa? Pegar contos antigos, cartas, colunas de jornal, lista do supermercado e editar como um Greatest Hits picareta? Ordenhar essa vaca até as últimas gotas não parece sensato.
É por isso que, além dos autores de nome, editoras confiam em algo que podemos definir como ‘assuntos da vez', que tenham aderência com seu público. Não é difícil descobrir quais são os que bombam hoje em dia - basta ver a vitrine de alguma livraria bacana, os perfis de Instagram ou Twitter de gente que faz sucesso falando sobre livros, até mesmo em programas de televisão (GNT, por exemplo) ou em lugares improváveis como o Tik Tok.
Isso sempre existiu, na verdade. Nomear movimentos sempre ajudou a vender: Modernismo, Romantismo etc. A mesma coisa ao agrupar por perfil e similaridade, como Beatniks, Underground, New Journalism, Brat Pack. Ou até mesmo rótulos como Realismo Fantástico, que reunia muitas vezes autores tão diferentes entre si que o fantástico era que coubessem em uma única definição.
Hoje, os grandes temas discutidos diariamente ganham espaço na literatura: inclusão, diversidade, igualdade de gênero, racismo, desigualdades sociais, alteridade. Mais do que em outras áreas, mercados criativos como a literatura, artes plásticas, cinema, televisão etc são os que mais promovem novos olhares e abraçam a discussão progressista. São os que mais rápido se adaptam à época. Sabem o público que têm; sabem que seus leitores estarão interessados em literatura que trate do assunto que domina seu cotidiano hoje.
O mercado editorial não mudou por boniteza, mas porém por precisão. Editores, diretores e stakeholders (ó que lindo) sabem que seu público preferencial é a classe média ilustrada de que falei lá em cima, essa que é uma parte da elite cultural em um país de elites; é essa parte da sociedade que, civilizadamente, se preocupa com igualdade, inclusão, diversidade etc. Pode passar a se preocupar com outros temas em breve, no lugar desses, assim como já se preocupou com outros diferentes antes. Mas, no momento, corações e mentes estão voltados para denunciar, para redimir, para defender o bom e o correto. Fazer avançar uma agenda positiva e progressista.
2.
Tove Ditlevsen poderia cair na categoria de “autoras antes apagadas e agora redescobertas” e chamar muito mais a atenção por isso do que por sua obra. Meio como uma vaga ideia de reparação histórica. Mas tem muito mais que isso na obra de Tove.
Os três livros podem ser lidos separadamente, mas coloque eles juntos e veja a mágica acontecer. Na versão em inglês, são denominados Childhood (Infância), Youth (Juventude) e Dependency (Dependência) e saíram entre 1967 e 1971, quando Tove Ditlevsen já era bem conhecida. Poderia chamar de auto-ficção: a própria Tove admitia que não era exatamente uma autobiografia, mas bebia profundamente em suas experiências pessoais. Cada livro narra uma fase de sua vida, desde sua infância em Vesterbro, região barra-pesada de Copenhagen, até seus 30 e poucos anos e seu terceiro casamento.
Em dinamarquês, o título do terceiro livro é uma porrada semântica brilhante: a mesma palavra na língua - gift - serve para ‘casada’ e ‘veneno’. Mais adequado, impossível. E não, não vou dar spoiler, mas tem a ver com o vício que Tove desenvolveu em analgésicos (morfina, demerol e afins) e sua luta constante para não afundar novamente na espiral da compulsão.
Primeira impressão: escrita minimalista, objetiva e sem firulas. Tove não complica o simples, manda ver em frases curtas, tem domínio total dos períodos, coloca vírgulas só quando realmente necessário. Faz uso de metáforas e figuras de linguagem de forma ascética, inseridas com precisão no texto para causar o maior impacto possível. No meio do livro, você se depara com fofurices assim:
“A infância é longa e estreita como um caixão do qual você não pode sair por conta própria”
“A infância é sombria e está sempre chorando como um pequeno animal trancado e esquecido no porão. Sai da sua garganta como o vapor da sua respiração no frio (…) Somente quando ela foi expelida que você pode analisar calmamente e falar sobre ela como se fosse uma doença da qual você sobreviveu".
obs: traduções livres, com base na tradução para o inglês de Tiina Nunnally
Outra impressão: escreve como se não tivesse barreiras, ego, tabus. Quase uma escrita automática, mas não tem uma palavra ou frase fora do lugar. Não cai nas armadilhas de descrever demais e nem de ficar apenas na superfície.
Concisa ao extremo, com raro poder de síntese, basta uma frase indireta para localizar a época em que a narrativa se passa - no caso, uma pequena observação sobre o cotidiano da cidade sob domínio alemão já provê todo o contexto da II Guerra Mundial.
A sensação que se tem, ao longo dos três livros, é que Tove não tem ideia do que precisa fazer para sair da sua condição de pobreza e falta de oportunidades, mas sabe que DEVE fazer algo. A trajetória de Tove parece um manual da pequena escrotidão humana: homens controladores e medrosos, estratificação social, sexismo, egos exagerados, mãe (a exemplo de todas as mulheres que aparecem nos livros) oprimida pela estrutura social e linha auxiliar do machismo, mesmo que contra sua vontade. Não há redenção: se, ao final, há uma esperança, Tove deixa claro que não está num lugar diferente de onde esteve durante sua infância e sua adolescência - é como se, na verdade, sempre precisasse retornar ao mesmo ponto e lutar as mesmas batalhas, de forma cíclica.
A maior parte dos capítulos é escrita em um único e longo parágrafo; em poucos outros casos há quebras. Parece ser quase um fluxo de consciência, como se Tove estivesse a despejar tudo o que lhe passa pela cabeça, sem filtro, com o receio de bloquear sua escrita.
Em Yoga (2020), Emmanuel Carrère, grande escritor que, como Tove, tem feito bastante uso de sua própria vida como base para seus livros, cita uma frase de um escritor alemão do Romantismo, Ludwig Börne, a respeito de como alguém pode se tornar um escritor:
Pegue algumas folhas de papel e, durante três dias seguidos, escreva, sem alterar nada e sem hipocrisia, tudo o que passa pela sua cabeça. Escreva o que você pensa sobre você mesmo, suas mulheres, a Guerra Otomana, Goethe, o crime de Fonk, o Juízo Final, os seus superiores - após três dias, você se maravilhará com quantos pensamentos novos, nunca antes exteriorizados, saíram de você. É nisso que consiste a arte de se tornar um escritor original em três dias.
Tove parece fazer exatamente isso: despeja tudo o que está em sua cabeça, sem juízo de valor, sem amarras, sem censura. Como se fosse a única chance de poder contar sua história de forma verdadeira. Nesse processo, os três livros acabam por contar, mais do que a luta de Ditlevsen contra o vício ou os obstáculos que enfrentou nesses anos todos, o próprio processo em que Tove transformou-se na escritora que foi.
Ao contrário do que pode parecer - e você aí, pro favor, fuja de qualquer resenha que aparecer na sua frente querendo associar a escritora dinamarquesa com ‘superação', ‘sororidade', 'ressignificação’ ou algo assim - Tove não conta uma história exatamente bonita. Não esconde o egoísmo, as mentiras que conta pelo vício, o uso que faz das pessoas ao seu redor, a negligência com os filhos, a falta de empatia em nome da sua ambição de se tornar escritora. E não joga sujo: não vai a um extremo só para mostrar o fundo do poço em que esteve para, depois, mostrar a redenção e o quanto ela cresce e se torna melhor com a experiência. Ela não apela a emoções fáceis e descreve os piores abismos em que esteve com a mesma precisão praticamente insensível com que narra uma cena cotidiana.
Ditlevsen foi viciada durante boa parte de sua vida adulta e entrou e saiu de internações em clínicas e hospitais psiquiátricos; em 1976, não resistiu à depressão. Cometeu suicídio com uma overdose de pílulas para dormir.
A essa altura, era reconhecida por prêmios literários, seus livros vendiam bem e Tove já havia deixado para trás as ruas degradadas de Vesterbro. Passou por um período de ostracismo, mas agora tem sido redescoberta e seus livros, traduzidos em todo o mundo.
Não há exatamente um final na Trilogia de Copenhagen. Ainda havia muito mais a acontecer na vida da Tove literária. Talvez ela guardasse para o futuro mais alguns livros; ou talvez seu projeto fosse exatamente mostrar que a vida é um eterno ciclo de inícios que a jogam sempre num ponto em que já esteve.
De qualquer forma, o último parágrafo do terceiro livro traz uma frase funciona como uma conexão, como uma forma de ligar os diferentes momentos da vida de Tove Ditlevsen:
Lentamente, eu me adaptei a aceitar a vida como ela é.