Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.
Se ainda não assina, clique no botão abaixo para receber um texto novo toda semana. Se já é assinante, você pode mudar para a modalidade paga.
Escolhi um bom lugar na confortável sala de cinema. O filme eu já tinha visto antes: Passageiro: profissão repórter (1975), de Michelangelo Antonioni.
A primeira vez que vi na tela grande foi naquela mesma sala, em cópia restaurada, lá no começo do século. Há anos que não passava em Mostras e muitos ali deviam também ter visto em cópias VHS bem zoadas de locadora. Foi assim que vi a primeira vez, num videocassete Panasonic que hoje parece ter vindo do Paleolítico.
A sala estava lotada nessa noite de vários anos atrás, com exceção de um lugar ao meu lado. Depois de uns 10 minutos de filme, um atrasado chegou. Em busca de um lugar vago, esbarrava em uma ou outra pessoa no escuro da sala, até sentar ao meu lado. Depois de mexer-se sem parar até acomodar sua mochila embaixo da cadeira, fungar umas duas ou três vezes e abrir ou fechar um zíper (espero que tenha sido o zíper da mochila), ele virou para mim e sussurrou:
“O que aconteceu até agora?"
Mesmo com toda a distração proporcionada pelo episódio, eu havia tentado prestar atenção no que se passava na tela, mas até aquele momento eu só havia visto Jack Nicholson andando de um lado para o outro num deserto, praticamente sem diálogos. Ao meu lado, o atrasadinho aguardava, ansioso, pelo resumo do que ele havia perdido. Suspirei fundo. Escolhi bem o que falar.
“Nada", foi a resposta.
O atrasado deve ter achado que eu estava tirando uma da cara dele. Vi de canto de olho quando ele, irritado, se arrumou na cadeira e mergulhou na tarefa de entender o filme, sem acreditar que tão pouco havia acontecido nos primeiros 10 minutos.
Anos depois, eu veria esse mesmo filme, na mesma sala. Cinesesc, o melhor cinema de São Paulo. Tela gigante, som bom. Tem até um bar dentro: se quiser, dá para assistir filme sentado em uma mesa, pegar um vinho para beber durante a sessão. Já vi muito filme ali. Continua confiável.
Passageiro: profissão repórter passaria na retrospectiva dedicada a Michelangelo Antonioni, dentro da 47ª Mostra de Cinema. Dessa vez, Walter Salles era convidado para falar sobre o filme que o influenciou tanto que o levou a trabalhar com cinema, desde que viu pela primeira vez num cineclube de Botafogo no início dos anos 1980. Contou que o lanterninha perguntou para ele se estava tudo bem, ao ver que ele não se mexia após o final dos créditos, tamanho o impacto que a obra de Antonioni havia causado.
Salles foi apresentado por Enrica Antonioni, viúva de Michelangelo. O brasileiro começou a falar sobre como descobriu todo um universo temático naquela tarde em que viu o filme pela primeira vez. Logo passou a falar do tema central e caro a Antonioni, a impermanência da identidade. Mas foi além: fez quase uma análise quadro a quadro do filme.
Para quem já tinha visto o filme, uma aula; já para aquelas pessoas para quem era inédito, nem tanto - Walter Salles emendou uma quinta marcha de spoilers num ritmo mais alucinante do que o aumento dos juros rotativos num cartão de crédito do Itaú.
“E na cena final, quando David Locke vai para o hotel, ele já s…”
“Desculpe”, falou um espectador, “Mas o senhor está contando tudo do filme. Essa descoberta que o senhor teve não vai acontecer para mim ou para outra pessoa aqui que ainda não viu!”
(Aqui acontece um travelling pela sala toda. Expressões de espanto. Silêncio.)
(Zoom no rosto do espectador que fez a intervenção. Corta e a câmera volta rapidamente para Walter Salles.)
(Servida a torta de climão no Cinesesc. Cortes rápidos para várias pessoas na plateia. Rostos espantados. Sussurros nervosos.)
(Extreme close up no rosto de Walter Salles.)
O diretor logo emendou, educadamente, “Você tem toda a razão, me desculpe. Vou encerrar agora minha fala e vamos ao filme".
Ainda rolou um bate-boca entre o espectador sincerão e a produção da Mostra, talvez para desespero de Walter Salles, que havia entendido o ponto do cara. Outros espectadores agrediram verbalmente o revoltado da Mostra. Sempre em voz baixa e indiretamente, bem ao estilo passivo-agressivo de nerds cinéfilos.
De onde eu estava, vi a cena toda e fiquei só imaginando os memes.
Um dos pontos altos da Mostra foi essa retrospectiva de Antonioni da qual Passageiro fazia parte. Anos antes, vi uma exposição sobre os filmes dele na Cinemateca Francesa, mas não consegui pegar nenhum filme em exibição. Agora, pude ver cópias restauradas de vários dos clássicos do mestre do silêncio no cinema. E melhor: sem spoilers.
Vi os grandes: de Blow Up a Zabriskie Point, passando pela trilogia da incomunicabilidade, com os filmes que Antonioni realizou com a musa Monica Vitti - aliás, se passassem só uma montagem com as cenas dela em looping, eu assistiria feliz. Fazia tempo que não via muitos desses filmes, então eram quase novidade para mim. E uma coisa que não havia reparado até então: as personagens femininas são fundamentais na obra de Antonioni - a narrativa é sempre conduzida por elas. Os homens parecem, na maioria dos casos, aqueles cachorros que agarram na sua perna e não soltam. Sempre perdidos, sem saber o que fazer, só cercando as mulheres em qualquer oportunidade. Isso vale até para Jack Nicholson em Passageiro. Bom ter revisto esses filmes e entendido muita coisa que não havia percebido da primeira vez.
Mas a Mostra teve muito mais.
Já falei de Undergound na semana passada, outro ponto alto nas revisões na Mostra. A primeira sessão em que tentei assistir ao filme iugoslavo trouxe uma surpresa: a cópia enviada estava com problemas e a organização da Mostra teve de substituir por outro. Vi um filme que não esperava, La Chimera (2023), filme italiano de Alice Rohrwacher. Mostra tem dessas coisas: você não sabe bem do que se trata, assiste até por acaso, e acaba descobrindo um grande filme.
Não tem muito como errar ao usar a Toscana como cenário, é certo - mas o filme é bem mais que isso. Num clima bem de realismo fantástico, fala de uma quadrilha especializada em roubar relíquias históricas de túmulos etruscos na Itália do começo dos anos 1980.
Engoli o preconceito para ver o filme: a foto escolhida para divulgá-lo no catálogo da Mostra dava a impressão de ser algo sobre saltimbancos ou sobre circo e já peguei bode - odeio o universo circense.
Mas dei sorte: não tinha nada disso. Por duas horas, aproveitei um desses encontros fortuitos que a Mostra proporciona: descobrir algo que você não estava procurando. Uma das funções desse tipo de evento é essa, não? Se fosse para ver o novo do Almodóvar, por exemplo, era só esperar entrar em cartaz.
Ao mesmo tempo, a Mostra também é para ver algo que você espera muito, mas sabe que não vai ter muita chance de ver. Os grandes nomes acabam, de uma forma ou de outra, aparecendo em circuito ou streaming; já filmes menores ou de 'nicho’ são mais difíceis de encontrar. Opus (2023), de Neo Sora, é um desses, que talvez só aparecesse no In-Edit, por exemplo, o bom festival de filmes sobre música que acontece todo ano em São Paulo.
É o concerto final de Ryuichi Sakamoto, um dos grandes da música no século XX e que morreu no começo de 2023. O diretor Sora é filho de Sakamoto e dirige o pai em um filme em preto e branco, apenas um piano no palco de um teatro minimalista. Sakamoto executa um repertório escolhido na ordem definida por ele mesmo.
Depois de mais um diagnóstico de câncer, Sakamoto sabia que teria pouco tempo. O filme é um testamento musical, apenas com sua música; Sora filma de forma intimista, com detalhes e sutilezas que não interferem no tema central, a despedida de um dos maiores músicos da história. A única frase do filme é pronunciada por Sakamoto - “acho que não vou conseguir tocar mais hoje, está difícil". Soube depois que filmavam cerca de duas músicas por dia, com no máximo três takes cada uma. Era o que o grande pianista aguentava, nos estágios finais da doença que o mataria poucos meses depois.
Com trilhas fundamentais do cinema, Sakamoto faz uma narrativa de toda a sua trajetória apenas por meio da sua música, como se as notas e os tempos nas canções fossem uma edição bem cuidada a contar uma história. O epitáfio adequado para Sakamoto-san.
Assiste o trailer aí, enquanto eu tiro o cisco que caiu no meu olho aqui.
E o melhor filme feito em 2023 (na minha lista, claro) veio exatamente na Mostra: Não Espere Muito do Fim do Mundo, do romeno Radu Jude.
Não sabia muito do filme. Fui no escuro, só pelo bom nome do cinema romeno e de Radu Jude, que tem umas obras bem ácidas (acho que o filme anterior dele está na Amazon Prime).
Não sei nem como escrever uma sinopse que faça justiça ao filme. É tudo ao mesmo tempo: militante, irônico, crítico, anárquico, zoado, metalinguístico, punk até o último fio de cabelo. Talvez eu estivesse influenciado demais por Kusturica e seu jeito dedo-nos-zóio, mas creio que o filme de Jude passaria com louvor pelo crivo do bósnio-sérvio.
Mas vamos lá, mesmo assim:
Angela é uma assistente de produção sobrecarregada, mal-paga e fodida (não conheço Bucareste, mas creio que ela mora longe também) e que ainda tem que dirigir um Uber para conseguir pagar boletos. Trabalha para uma produtora de cinema e vídeo contratada por uma empresa multinacional austríaca que atua na Romênia para fazer um filme educativo sobre acidentes no trabalho; seu job é entrevistar quatro funcionários que foram vítimas de acidentes de trabalho, para que a empresa possa selecionar um depoimento emocionante para a peça publicitária e fingir que se importa com direitos trabalhistas.
O filme é dividido em duas partes: cerca de 2/3 da duração dedicados ao dia de Angela atrás dos depoimentos e o terço restante, dedicado ao dia da filmagem do trabalhador escolhido.
Depois dos créditos escritos à mão em cartolinas, Jude coloca no meio cenas de um filme real romeno, Angela merge mai departe, de 1981, com a história de uma mulher taxista chamada Angela no governo autoritário de Ceaucescu. Vai servir como um comentário da repetição das mesmas dificuldades: a Angela na Romênia neoliberal-capitalista do século XXI (uma sociedade corrupta, desigual e um verdadeiro moedor de carne para trabalhadores precarizados, meio como um Brasil do Leste Europeu) espelha a Angela oprimida sob o regime socialista burocrático e falsamente igualitário.
É genial a forma como Jude intercala as cenas do filme de 1981 com o seu filme de 2023. Angela do Uber neoliberal vai aos mesmos lugares de uma caótica Bucareste que a Angela do Táxi do realismo socialista, em meio a um trânsito dominado por machistas escrotos e uma metrópole sem alma. Em meio às suas andanças pela cidade, que dialogam com os trajetos do outro filme, Angela do Uber sempre encontra tempo para fazer vídeos do influencer Bobitza - que é ela mesma, com o rosto coberto por um tosquíssimo filtro de Instagram que a transforma num caricato mulçumano/albanês/eslavo careca, de grossas sobrancelhas e cavanhaque cafona. Bobitza é misógino, racista e grosseiro - praticamente um bolsominion. Suas intervenções são politicamente incorretas ao extremo, bizarras e muito reais. Puro chorume do esgoto da internet, bem conhecido nesses tristes trópicos.
O filme mistura cenas do filme da taxista de 1981 em cores, cenas P&B granuladas de Angela no presente, imagens pixelizadas e saturadas de Bobitza via Reels do Instagram, imagens de conversas cheias de interferência em Zoom; é visualmente anárquico, o que funciona bem para mostrar a rotina escrota a que Angela é submetida para conseguir sobreviver numa sociedade com tudo de ruim do neoliberalismo e sequestrada pelas redes sociais e pela superficialidade da imagem.
Fala da Romênia atual, mas poderia ser Brasil, México, Argentina, qualquer país latino-americano ou africano - um país periférico no sistema capitalista, que vive no caos da corrupção, dos pequenos golpes cotidianos, da desigualdade absurda, das empresas que esfolam trabalhadores, da precarização dos direitos.
Acompanhei as quase três horas de filme completamente fascinado pelo caos relatado por Jude. Da mesma forma que as trajetórias das duas Angelas se espelham, a Romênia do filme serve como uma reflexão do Brasil dos anos 2020; ou, ainda, da Argentina, que recém-elegeu um Bobitza da vida real.
Jude não amacia: vai com os dois pés em cima desse sistema em que vivemos. Para quem trabalha com comunicação, faz até mais sentido; afinal, quem nessa área nunca passou por situações como a reunião de pré-produção com os faria-limers austríacos da multinacional , em que egocentrismo, arrogância, preconceito, menosprezo, burrice pura e simples e pelegos de patrão dão o tom?
Ri muito ao lembrar de reuniões na última empresa multinacional por onde passei. Algum dia ainda conto. Talvez alguns espectadores tenham achado tudo exagerado e caricato no filme de Jude. Mas posso falar: só vi verdades.
Imaginei que, ao final da sessão, haveria aplausos. Nada. Quase aplaudi sozinho, entusiasmado pelo melhor filme desse ano.
Ao fim e ao cabo, Não Espere Muito do Fim do Mundo cumpre uma das funções primordiais da Mostra de Cinema: levantar a discussão, trazer novas perspectivas, mostrar filmes que chutam a porta do consenso virtuoso e da docilidade conformada que dominam hoje o cinema e outras artes narrativas.
É a Mostra que sempre lutou o bom combate, desde que surgiu durante a ditadura, em 1976.
E é essa mesma Mostra que foi muito vilipendiada nos anos 2018-2022. Como já contei antes: no primeiro ano do governo Bolsonaro, a Central da Mostra no Conjunto Nacional recebia ligações anônimas de algum Bobitza tropical, com fofuras como “essa mamata toda vai acabar, Lei Rouanet nunca mais para essa pouca-vergonha aí".
Continua essencial. Continua cumprindo seu papel. Longa vida à Mostra. E ano que vem tem mais.