Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
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Há uns dias, a ideia para esse texto apareceu na minha frente ao pegar um livro de Max Weber na estante, durante uma faxina, e relembrar os tempos da faculdade em que estudei os conceitos desse sociólogo alemão.
É como se fosse uma continuação de um texto que escrevi há umas 2 ou 3 semanas e é algo que tem ocupado muito do meu pensamento, nesse ano conturbado em que muita coisa está em jogo.
Ainda estou no meio de outros trabalhos e devo mandar um texto mais curto na semana que vem. Boa leitura e até lá.
Obs.: O título dessa semana vem do conceito proposto por Max Weber, que vou explicar logo abaixo. Nada de spoilers aqui.
1.
Se você não tomar cuidado, no primeiro ano de Ciências Sociais na FFLCH, entre uma surubinha pansexual aqui, uma pipada no cachimbo de crack e protestos violentos contra Religião, Forças Armadas e Agronegócio, você pode acabar inadvertidamente estudando Max Weber em profundidade.
Isso mesmo. Lá está você, peladão com o beck na mão, observando voyeuristicamente professores e alunos numa orgia desenfreada e pagã às custas do dinheiro público, quando dá de cara com o olhar severo de um sociólogo alemão com barba de schnauzer, Max Weber.
Da mesma forma que o fantasma do comunismo me assombrou pelos corredores das Ciências Sociais por pelo menos dois anos com Karl Marx, o espírito do capitalismo fez sua aparição por 2 semestres inteiros de estudo das teses weberianas, em especial do livro que o fez virar um dos greatest hits das Ciências Sociais.
Mais uma vez, vai aí um resumo rápido, em menos tempo do que se leva para falar Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus :
Max Weber escreveu seu livro mais conhecido, A ética protestante e o espírito do capitalismo, em 1904.
Nessa obra seminal (Opa! 🤬 isso só podia mesmo ser na USP!, diria o bolsonarista empedernido), o sociólogo alemão levanta uma hipótese acerca do motivo pelo qual a forma mais pura do capitalismo vicejou nos países mais asceticamente protestantes, como Alemanha, Holanda, Reino Unido ou países nórdicos.
Em sua famosa tese, defende que há uma “afinidade eletiva” entre:
1. a ética protestante - ou seja, a forma de conduta e a visão de mundo das pessoas fieis às religiões protestantes - e
2. o espírito do capitalismo - o conjunto de preceitos que norteia a acumulação de capital e seu reinvestimento sempre crescente na produção de bens.
Para Weber, essa afinidade entre as duas correntes resultou num fator de organização para que países protestantes atingissem um capitalismo mais puro, bem-sucedido e em constante crescimento.
A tese afirma que, por um lado, o ascetismo dos protestantes mais radicais (no sentido de fundamentalistas) os faz trabalhar duro e acumular riqueza sem dispersá-la em prazeres mundanos; por outro, o constante motor do capitalismo faz com que o sistema seja uma roda viva de sempre se produzir mais e reinvestir o acúmulo para, finalmente, produzir ainda mais.
O casamento perfeito: gente disposta a trabalhar e a acumular, em um sistema que é feito para se trabalhar e acumular cada vez mais, ao infinito.
O fio que amarraria esses dois conjuntos seria o conceito de predestinação do Protestantismo: você, no nascimento, já está destinado ao céu ou ao inferno; e nada do que faça pode mudar isso. Ao mesmo tempo, você não sabe se, ao morrer, irá para um ou para outro.
Portanto, cada cristão deve fazer o máximo para honrar sua vocação - se o seu destino for o céu, você é predestinado a agir com o máximo de correção e a trabalhar intensamente e sem se entregar a prazeres mundanos.
Se for o contrário, resigne-se e faça o mesmo - e melhor sorte da próxima vez.
Ih…aqui não é o Budismo. Então perdeu, playboy.
2.
Depois dessa rápida recapitulação, voltemos ao que é “afinidade eletiva" e finalmente entendamos que cazzo quero falar aqui.
Michael Löwy, outro fodão das ciências sociais, mergulhou nesse conceito para jogar luz na expressão usada por Weber em seu ensaio.
O termo Afinidade Eletiva aparece, pela primeira vez, na Alquimia da Idade Média. Era um conceito químico para explicar a atração e fusão entre corpos diferentes. Num exemplo prático de Löwy: a união natural que se observa entre enxofre e metais.
“A afinidade, assim, é a força em virtude da qual duas substâncias diversas se procuram, unem-se e se encontram em um tipo de casamento", segundo Löwy.
Goethe, que era chegado numa metáfora, deu o nome As afinidades eletivas (Die Wahlverwandtschaften) a um romance seu, de 1809. Nele, dois casais, em um jogo de sedução, aproximações e afinidades, acabam trocando os conjes.
( 🤬 Tá vendo, só podiam ensinar esse tipo de pouca vergonha na USP!, falaria o nosso proverbial bolsonarista de carteirinha.)
O romântico alemão por excelência, Goethe, foi quem usou pela primeira vez o termo afinidade eletiva no contexto de espiritualidade, emoção e intelecto. O sociólogo alemão por excelência, Weber, pegou emprestado o termo para definir relações sociais, econômicas e políticas entre dois entes.
Segundo bem definiu Löwy 1, com base em Weber:
Afinidade eletiva é o processo pelo qual duas formas culturais – religiosas, intelectuais, políticas ou econômicas – entram em relação de atração e influência recíprocas, seleção e reforço mútuos e convergência ativa.
Então pega na minha Wahlverwandtschaften e vamos finalmente à teoria que quero expor aqui.
3.
Chegamos ao nosso país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza.
Muito se falou sobre a vitória de Bolsonaro em 2018 e de todo o sistema de crenças, valores e de visão de mundo que o levou ao poder. Falou-se da ascensão da extrema-direita, da revolta do público contra a política tradicional, do conservadorismo inerente ao brasileiro médio yadda, yadda, yadda.
Na última eleição presidencial, 57 milhões de brasileiros votaram em Bolsonaro no segundo turno, mas a vitória se deu por um contingente eleitoral longe de ser monolítico.
Parte dos votos veio de um grupo que, no passado, já votou em candidatos com ideologias opostas a Bolsonaro. Mas que tem votado consistentemente naquele candidato que, ao final, vai levar a eleição.
Esses são os eleitores que votam no consenso a que o sistema político-institucional chega em cada eleição - quando fica claro que há um candidato que transcende sua raia ideológica e tem razoável representatividade em todos os recortes demográficos e socioeconômicos. Os eleitores dessa vertente, mais ou menos por inércia, seguem por esse caminho consensual.
A conjuntura brasileira também teve impacto, e isso é conversa longa: a inserção de largas parcelas da população na sociedade de consumo, o crescimento de religiões evangélicas, a percepção do aumento da violência urbana e a aparente fluidez da mobilidade social contribuíram para aglutinar eleitores em torno de uma determinada visão política. Sem contar também outros impactos transitórios, como a demonização da política pela Lava-Jato ou a articulação do generalato por uma candidatura militar (e aí a ladeira é mais longa ainda. Não vamos descer por aqui).
Bolsonaro atualmente está longe de ser o candidato do consenso; depois de quase 4 anos, seu eleitorado diminuiu nas pesquisas. Mas, ainda assim, atinge um bom número que o mantém relevante na campanha eleitoral - estima-se que cerca de 35-45% dos eleitores estão dispostos a repetir o voto em Bolsonaro.
Esse contingente vem, em última análise, de outros grupos - esses sim, mais ideologicamente identificáveis.
4.
Uma parte desse verdadeiro curral eleitoral (🐮) sabemos quem são:
extrema-direita tradicional e fascista que sempre esteve por aí. São, grosso modo, os negacionistas, conspiracionistas, racistas, misóginos etc;
todo o tipo de recalcados, ressentidos, descontentes, mal-sucedidos e falidos que botam a culpa de seu fracasso percebido em "tudo isso que está aí”. Sentem que outros tomaram o que era seu por direito;
conservadores saudosistas dos tempos da Ditadura ou de épocas mais reacionárias e que se sentem deslocados no mundo contemporâneo;
evangélicos que abraçam o candidato mais disposto a levar adiante pautas conservadoras de costumes que interessam à sua visão de mundo;
militares e demais associados ao universo bélico/castrense - seja das Forças Armadas ou das polícias. Possuem, em geral, visão de mundo unificada e, ao mesmo tempo, vontade de ascensão social e valorização (“alguém que os conhece e defende” na presidência).
Cada subgrupo desses possui suas afinidades eletivas com Bolsonaro. Faltava, a todos, uma candidatura forte o suficiente para representá-los. Podemos chamar esses grupos acima de “bolsonarismo raiz". Claro que há uma sobreposição das características dos subgrupos - mas, ao final, alguma delas se sobressai em cada um, para podermos defini-los de forma clara.
O bolsonarismo raiz é um espelho exato do que é o governo atual - é o que lhe fornece uma base sólida, não importa o que aconteça. Bolsonaro reúne em si, talvez cinicamente, características desses 5 subgrupos de forma bem clara. É o conjunto que sustenta seu discurso e mantém-se mobilizado.
Mas só essa parcela de seguidores fieis não elege presidente. Precisou-se de muitos mais do que os “Fechados com Bolsonaro!” para garantir a vitória em 2018. Como já falei acima, sabemos que uma parte dos votos veio de eleitores fundamentalmente não-ideológicos e que votam no candidato que chegar ao limiar do consenso geral.
E há ainda um outro grupo de eleitores, fora do bolsonarismo raiz e dos eleitores ocasionais de consenso, que me interessa especificamente nessa coalizão de afinidades que elegeu Bolsonaro. É disso que quero tratar em seguida.
Pausa dramática agora. Se eu fosse professor na FFLCH, deixaria saírem para o intervalo, passaria a lista de chamada, aproveitaria para transferir dinheiro da Lei Rouanet para minha conta pessoal e sairia a fornicar pelos corredores, como dizem que acontece nas universidades públicas.
Aproveite esse intervalo e assine esse Locked Groove. Contribua para que eu possa continuar com a bagunça desenfreada e não precise recorrer ao orçamento secreto do Pequeno Arthur Little:
5.
Depois desse pequeno intervalo, voltemos.
Há um outro grupo que ainda orbita em torno de Bolsonaro, segundo todas as pesquisas. E que, ao fim e ao cabo, não pode ser agrupado no bolsonarismo raiz identificado acima.
Pesquisas diversas mostram que Bolsonaro tem um bom desempenho num recorte da população que tem as seguintes características:
renda familiar alta;
empresários (incluindo principalmente o agronegócio);
maior escolaridade;
homens casados, entre 45 e 59 anos;
carreiras como medicina, engenharia, tecnologia em geral;
escalão médio a alto de empresas grandes e médias;
boa parte do mercado financeiro.
Não é que vença em todos esses subgrupos - mas é altamente competitivo em todos.
Há algo que os une. Formam uma elite econômica, social e educacional (não exatamente cultural). Em teoria, contribuem muito para a economia e se beneficiam, em troca, do progresso e da estabilidade econômica. São liberais economicamente - neoliberais na maioria, para usar uma definição mais rasteira. São privilegiados, no sentido de que vivem numa “bolha” que desfruta de confortos típicos de países desenvolvidos capitalistas, como segurança, possibilidade de consumo sem muitas preocupações, acesso a ítens imateriais como lazer, educação, viagens e cultura. Estão razoavelmente conectados a uma mentalidade global de inovação e conhecimento técnico.
Ao mesmo tempo, não possuem, em geral, o mesmo grau de interesse nas demandas do bolsonarismo raiz. Ou seja, não têm ou têm em um grau bem menor: aspiração ao progresso econômico por corporativismo (militares); pautas religiosas conservadoras (evangélicos); ressentimento e revanchismo (recalcados); visão militarista e confrontacional (recalcados, extrema-direita, militares); reacionarismo (conservadores saudosistas); e, finalmente, não se deixam seduzir facilmente por teorias extremas (extrema-direita).
É um recorte heterogêneo, que conta com parcelas que inclusive possuem características desprezadas e odiadas pelo bolsonarismo raiz, como a homossexualidade, a liberalidade no consumo de drogas ilícitas, o apreço por cultura em geral.
Mas, afinal, quem é esse nosso anti-herói? Onde vive? Como se reproduz? Do que se alimenta?
6.
Aí é que entra a afinidade eletiva lá do começo.
Esse grupo não é levado a Bolsonaro pelo radicalismo ideológico ou por demandas específicas que deseja ver realizadas. Nem é chegado a um pragmatismo extremo. O que determina para onde essa elite irá não são apenas crescimento da economia, aumento da renda geral (e especialmente dos mais ricos), construção contínua de padrões de civilidade/democracia ou prestígio internacional.
(Observação só de passagem: tudo isso foi o que fez Lula atingir 81% de aprovação, ao final de seu segundo mandato).
O que leva esse grupo ao campo bolsonarista é, ao fim e ao cabo, uma afinidade eletiva: esses eleitores naturalmente inclinam-se a fazer uma associação com quem se apresenta disposto a garantir a manutenção do hedge 2 que os protege. Ou seja, a manutenção de uma estrutura de sociedade hierárquica, estamental e profundamente desigual - da qual desfrutam de sua posição social e dos benefícios decorrentes dela, seja em termos monetários ou de status.
Em resumo, essa elite se movimentará de forma natural em direção a quem pode fornecer proteção contra qualquer imprevisibilidade. E, nesse momento (na perspectiva desse grupo), quem garante que tudo permaneça estanque na estrutura da sociedade é Bolsonaro 3. Da mesma forma, o bolsonarismo legitima-se por sua associação com essa elite, ao ser aceito no clube de quem não limpa a boca na toalha de mesa.
É fácil ver o que Löwy chama de seleção e reforço mútuos em alguns exemplos:
numa direção, essa elite passa um pano gigante para a vandalização da democracia ao minimizar o comportamento antidemocrático do grupo bolsonarista, ao aceitar como normal e passageira a ruína econômica resultante da incompetência do governo e ao sustentar a tese surrada da polarização de extremos, a mais bem-acabada versão do sentimento anti-esquerda que existe há anos;
noutra direção, o bolsonarismo faz acenos com uma política econômica liberal (por mais que seja falha) conduzida por personagens respeitados por essa elite, como Paulo Guedes ou Roberto Campos Neto; promove reformas parciais, mas que desconstroem normas e leis que essa elite considera nocivas e diminui direitos de outras parcelas da população; e coloca-se como guardião da propriedade e dos “produtores de riqueza" mesmo que, para isso, precise recorrer à força.
Algum conhecido seu pode ser um desses. Um exemplo extremo: alguém que gosta de literatura, que se emociona com MPB, que admira a cultura em geral. Que sempre lembra com carinho de viagens por vinícolas no interior da França ou de visitas ao MoMA. Que faz o bem sem olhar a quem, todo final de ano, ao contribuir com sua instituição de caridade preferida. Que fica indignado com a morte de George Floyd e feliz com a derrota de Donald Trump, que coloca bandeira da Ucrânia no perfil de rede social. Um humanista, em resumo.
Mas cuja afinidade eletiva, a atração natural que sente, é por quem parece ter mais a ver com sua visão de mundo de que é preciso garantir a estabilidade e o status quo da sociedade. À custa do que ou de quem, pouco importa.
E que talvez considere que, para que esse sólido casamento de afinidades eletivas se mantenha, vale até mesmo deixar em segundo plano boa parte de seu humanismo.
Epílogo.
"(…) Os eventos ocorridos em 24 de março de 1976 não provocaram apenas a queda de um governo. Significaram, pelo contrário, o encerramento definitivo de um ciclo histórico e a abertura de um novo, cuja característica básica residirá na tarefa de reorganizar a Nação, executada com real vocação de serviço pelas Forças Armadas (…). Temos consciência do valioso aporte que pode oferecer à nossa independência financeira, tecnológica e econômica a ação decidida dos empresários, e por isso a impulsionaremos com todos os recursos do Estado (…). Regras claras, precisas e constantes de jogo serão os melhores instrumentos para impulsionar investimentos e recuperar nossa atividade produtiva. (…)
O Governo Nacional, ao formular esta sincera e honesta convocação ao Povo da Pátria, não procura gerar atitudes espontâneas de participação no processo. Sabemos perfeitamente que as manifestações de adesão a ele serão fruto dos êxitos positivos que conseguirmos mostrar ao Povo da República. Aspiramos, sim, como base mínima e indispensável para apoiar nossa ação, à compreensão ampla e generosa de todos os setores inspirados pelo bem comum.” 4
- General Jorge Rafael Videla, 26 de março de 1976, em pronunciamento à população em rede nacional, ao assumir o cargo de presidente da República Argentina, após o golpe de Estado ocorrido dois dias antes. A ditadura durou até 1983 e 30 mil mortos ou desaparecidos.
"Para além das diferenças que às vezes nos separam artificialmente, estou certo de ter contado, durante toda nossa gestão, com um respaldo significativo da parte de muitos compatriotas. Eles souberam unir seus esforços aos da classe armada para salvar a liberdade, reconstruir a democracia e tornar o Chile uma nação cada vez mais próspera e justa."
- General Augusto Pinochet Ugarte, 11 de março de 1990, no discurso de entrega do cargo ao primeiro presidente democraticamente eleito na República do Chile após 17 anos de ditadura comandada pelas Forças Armadas.
"Na economia traremos a marca da confiança, do interesse nacional, do livre mercado e da eficiência. Confiança (…) na garantia de que as regras, os contratos e as propriedades serão respeitados. Realizaremos reformas estruturantes, que serão essenciais para a saúde financeira e sustentabilidade das contas públicas
(…) Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre de amarras ideológicas." 5