Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
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Quebrei minha regra de não falar do que acontece na semana. De novo.
Mas não exatamente: falo no texto dessa semana de uma discussão que já vem há anos e da curiosa obsessão brasileira com eleições, uma vez que democracia mesmo é anátema por essas bandas. E aproveito ainda que é um assunto do meu interesse - ciência política é uma das matérias preferidas da casa.
Volta e meia apareço com uns livros daquilo que chamam de “Interpretação do Brasil". Esse país aqui é bem complexo e talvez nunca se entenda direito como vamos sair do buraco em que estamos. Mas a discussão é sempre boa e ajuda a ter argumento para combater a los nazis y los fachos de mierda.
P.S.: A citação dessa semana vem do livro de Victor Nunes Leal - Coronelismo, enxada e voto. É um dos primeiros textos com metodologia científica e rigor técnico da história da Ciência Política no Brasil. Clássico.
Quem tem saudade do voto em papel?
Eu tenho.
Lembro com carinho das brigas na apuração, com gente quebrando cadeiras nas costas uns dos outros ou rolando sobre as mesas, bem do jeito daquele maluco na apuração do desfile de Escolas de Samba, anos atrás, que pegou um monte de papeluchos, rasgou, jogou para o alto, comeu. Cenas assim eram comuns não só no samba como nas eleições brasileiras, antes das inovações tecnológicas que eliminaram o papel.
Ou, ainda, o clima de paquera e azaração que rolava nos ginásios por todo o Brasil, com a apuração manual infindável que era acompanhada em tempo real por adversários políticos, que mantinham a fachada de cidadão de bem, lado a lado, mas sussurravam impropérios um para o outro; isso até não aguentarem mais e partirem para a porrada pura e simples, sem dança de rato.
E a possibilidade de se escrever o que quisesse na cédula, então? Qual não era a alegria reinante na cabine de votação, ao poder marcar na cédula algum animal do zoológico? Rinocerontes, hipopótamos, gorilas e outros bichos menos afortunados da fauna tinham sempre seu eleitorado cativo, como um jogo do bicho zombeteiro. Só rolava problema quando votavam em um animal que anda em duas patas, mas que estava concorrendo e perigava mesmo ser eleito.
Uma cédula em papel abria muitas possibilidades - até mesmo desenhar uns caralhinhos voadores, bem nelsonrodrigueanos, para saudar candidatos tão conservadores quanto o dramaturgo carioca. Se não tivesse fila na sonolenta tarde de votação, dava até para fazer umas seminais gotículas espirrando do falo eleitoral de forma democrática por toda a cédula, ou escrever algum versinho sacana inspirado no cancioneiro nacional.
As tentativas de validação de votos que haviam sido anulados também rendiam um espetáculo à parte. Lembro de um candidato chamado Zé Roberto, em entrevista na TV, que tentava validar para si votos em que os eleitores escreveram Zé-ruela, Zé-buceta ou qualquer outra baixaria que se iniciasse pelas duas letras do seu nome. Talvez hoje esse Zé-ninguém até seja vice-líder do governo na Câmara, mas daquela vez não teve sucesso no seu pleito.
Outro indignado apareceu em 1988, na campanha municipal de São Paulo: um cara que vendia roupas no programa do Galebe na madrugada, com uma gritaria fenomenal. Era candidato a vereador e tentava fazer com que a Justiça Eleitoral validasse os votos que afirmava terem sido dados a ele - e que haviam sido anulados por zelosos oficiais do TRE, que consideravam vários votos com a inscrição “Turco Loco” como sátiras a Paulo Maluf, então candidato a prefeito.
O pobre candidato não se elegeu dessa vez - mas na eleição seguinte finalmente conseguiu. E o pior: talvez tivesse conseguido já na primeira vez, uma vez que estava coberto de razão no seu pedido. Era Alberto Hiar, posteriormente vereador e deputado em São Paulo, que na época já havia ganhado fama com a alcunha de Turco Loco, pelas suas alucinadas performances de vendedor de roupas no Brás.
Mas, pensando bem, só mesmo alguém chapa-preta, como o desocupado que ocupa a presidência, para ter saudade desses tempos. E Bolsonaro é um saudosista nato, como já deixou bem claro: ele quer de volta a tradicional família brasileira, os filmes do Mazzaropi, as árvores caiadas pela metade, os trens que sempre chegam e saem no horário, o sistema de produção escravagista. O que era do passado ainda não passou por ele. Deve falar radiopatrulha, exclamar “Pombas!” quando derruba seus comprimidos de cloroquina no chão e lembrar, saudoso, das marchinhas do carnaval da Revolução.
Por um lado, folcloriza-se o rábico presidente que grita contra as urnas eletrônicas como um Ned Ludd vindo de Eldorado Paulista; por outro, coloca-se a briga do ocioso presidente contra o voto eletrônico como uma intenção de subverter o sistema e dar um golpe. Pouco importa a coerência: se o voto atualmente fosse em papel, obviamente ele lutaria pelas urnas eletrônicas.
Ao final, não se pode descartar de antemão o componente retrógrado de destruição e volta ao passado que caracteriza o presidente e nem, tampouco, sua vontade de interferir no sistema eleitoral em benefício próprio, acusando outros da fraudes que ele mesmo quer perpetrar.
Mas talvez o ponto aí seja outro, e a polêmica sobre a segurança da votação eletrônica esteja a serviço de uma característica bem marcante do sistema político brasileiro: a restrição da cidadania, que sempre caracterizou esse país tropical abençoado por Deus. E, consequentemente, essa restrição leva a outra característica que sempre dá as caras por aqui - a falta de representatividade do povo no sistema político.
Muitos devem se lembrar de mim por textos sobre viagens, bebedeiras, BDSM, discos e livros de autores obscuros. Mas poucos sabem que estudei Ciências Sociais em um passado não muito distante. Principalmente Ciência Política, que é um vício do qual já falei aqui.
Não vou enveredar por discussões políticas cabeçudas e acadêmicas, que só interessam a quem se debruça sobre planilhas de votação do Segundo Reinado ou decora trechos da legislação eleitoral de cada período da História. Ficarei bem na superfície, boiando embaixo do sol, com o copo apoiado na barriga, até porque não sou um José Murilo de Carvalho ou um Victor Nunes Leal, de quem empresto sem pudor muitas das informações desse texto.
Em seu livro Teatro de Sombras, Murilo de Carvalho joga luz num ponto bem interessante na construção do sistema político brasileiro durante o Segundo Reinado: a legislação eleitoral e seus efeitos na franquia do voto.
À primeira vista, a luta pela solidificação de uma estrutura política confiável foi o que marcou o século XIX no Brasil monárquico. A corrupção eleitoral era a principal mazela apontada, graças a coisas fofas como coronelismo, manipulação de resultados, fraudes descaradas e compra de votos.
O Brasil, conforme Carvalho cita a partir de Euclides da Cunha, era um caso peculiar de um país “criado” a partir de uma teoria política. Com pouca experiência de autogoverno e carregando os vícios coloniais, o sistema político brasileiro foi praticamente construído do zero. Aí as elites brasileiras fizeram o que sempre souberam fazer bem e continuam a fazer até hoje: escolhiam de quando em quando um modelo desejado e, tal como um Procrusto ensandecido, tentavam adequar a realidade a um arcabouço de normas copiadas de países com vida política mais bem estabelecida.
A Monarquia Constitucional dos sonhos dos bem-pensantes brasileiros do século XIX sempre teve uma vida atribulada que, nem de longe, poderia ser caracterizada pela estabilidade, como uns diletantes historiadores com pele ruim que escrevem na Veja afirmam. Com uma bagunça parlamentar digna da Itália e um número de Primeiros-ministros a cada década que a Inglaterra levou séculos para alcançar, a zorra total impunha aquele clima de
Reformas urgentes!
que brasileiro gosta tanto.
Um hábito que se perpetua e tá aí até hoje.
Reformas eleitorais sucediam-se e, a cada mudança, novas regras eram inutilmente introduzidas, outras abandonadas, algumas tentadas em diferentes formatos ou de forma aleatória. Idade mínima se alterava, em outros momentos o voto passava a ser censitário, depois discutiam-se os valores mínimos de renda para se votar, ou então se era obrigatório ou não, como configurar distritos e circunscrições eleitorais e muito mais, numa complexidade que crescia em progressão geométrica.
Em um momento histórico, o voto deixou de ser secreto. Segundo os geniais legisladores, o voto secreto dava mais espaço para manipulação indevida dos votos depositados nas urnas. Com isso, o cabra deveria adentrar o local de votação, falar em voz alta seu nome, local de residência e pronunciar em alto e bom som o seu voto. Como a ideia era ter o máximo de testemunhas, tudo isso rolava sob o olhar curioso de qualquer um que estivesse por ali - principalmente os jagunços dos coronéis locais, apinhados nas janelas da seção eleitoral. Essa asinina solução, digna da cabeça preta de tabletinho Santo Antônio do GENERAL PAULO SÉRGIO NOGUEIRA DE OLIVEIRA, AQUELE MINISTRO DA DEFESA POLITIQUEIRO QUE SÓ SABE GRITAR, foi usada em apenas uma eleição. Por que será? 🤔
Alguns anos depois, a Reforma eleitoral de 1881 foi a Mãe-de-todas-as-reformas, destinada a acabar com a balbúrdia eleitoral instalada. (nota da revisão: insira áudio de risadas aqui)
Proibiu-se o voto dos analfabetos, as mulheres e escravizados continuaram sem poder votar, aumentou-se o valor mínimo de posses para o voto censitário, estabeleceram-se critérios labirínticos e incompreensíveis para o interessado em votar poder provar qual o patrimônio mínimo para ter o direito ao voto.
Resultado? Deu super certo, se você usar a perspectiva Guedesiana: a participação dos cidadãos brasileiros nas eleições, que era da ordem de 10,8% da população total em 1872, baixou para 0,8% em 1886. A recuperação em V só se deu em 1945, quando se chegou a um patamar próximo da porcentagem alcançada 73 anos antes.
Ficou claro nesse caso que, no Brasil, Reforma é sinônimo de subtração de direitos e garantia de muitos passos para trás. A restrição da cidadania foi engendrada por uma elite que queria que menos pessoas pudessem votar e, portanto, que a representatividade ficasse concentrada de um lado só da balança.
O que isso tem a ver com o nosso Brasilzão véio de guerra de 2022?
Uma leve desconfiança de que a tese absurda e sem provas de fraudes eleitorais por conta da fragilidade de urnas eletrônicas é, ao final, um estratagema para algum corno safado aparecer por aí com mais uma das famosas
REFORMAS!
No encontro com os pobres assessores de embaixadores (os titulares estavam de férias, tomando caipirinha e enfrentando o calor absurdo em praias do Nordeste ou visitando seus entes queridos e enfrentando o calor absurdo em seus países de origem) o meliante presidencial apresentou suas denúncias cuidadosamente vazias sobre fraudes. O mandatário mandrião chegou a tirar o pó da denúncia apresentada em 2014 por Aécio Neves e seu partido, o PSDB, e a meteu no meio das 'provas' que compilou. Incluiu, ainda, dúvidas sobre sua própria eleição de 2018, o que parece contraproducente para qualquer pessoa seriamente interessada em provar um ponto.
Para quem não lembra: em 2014 o herdeiro das Gerais foi derrotado por um nariz pela candidata do PT. À época, os votos do Nordeste foram essenciais para a virada de última hora. Tudo isso para decepção de Luciano Huck e Alvarinhos em geral, que já tinham colocado seus Moscow Mule para gelar.
Nessa época, rolou uma gritaria geral contra o Nordeste que havia reeleito a presidente, segundo o senso comum dos poucos e bons. Lembrou os bons tempos do Segundo Reinado: o sentimento era de que essa gentalha atrapalhou a festa e botou água no chope.
O populacho não se emenda desde essa época, veja só - você dá confiança, sorri um pouquinho por causa dessa educação sua que vem de berço, e eles já querem logo puxar a cauda do seu fraque ou se agarrar à sua polaina para exigir alguma coisa besta, como água potável, voto livre ou saneamento básico.
A partir daí, a metafórica porta do inferno foi aberta. E chegou ao que vemos hoje: um presidente eleito pelo sistema de urnas eletrônicas, depois de décadas sendo eleito deputado pelo mesmo método, a apresentar contestação e pedindo Reformas - e, pior, encontrando eco entre os bem-pensantes e bem-remunerados.
Da mesma forma que há a teoria de que o desocupado-mor da Nação é só um animador de auditório colocado lá pelos seus mentores verde-oliva e verde-dólar com o objetivo de avançar uma agenda secreta e passar a boiada, também é lícito considerar que a luta contra o voto eletrônico esconde mais um jabuti em árvore1, esse esporte predileto de Brasília.
Ou seja: a partir de uma tese absurda e frágil, cria-se um proverbial pé na porta para fazer passar todo o tipo de
REFORMAS!
Que vão fragilizar representatividade, relativizar a cidadania e, em última análise, garantir que os donos do poder de sempre continuem a se aproveitar dessa grande fazenda de exploração, com o auxílio de seus luxuosos jagunços verde-oliva.
As mudanças propostas durante o Império, em teoria, visavam diminuir o coronelismo e o poder das elites locais e, por consequência, fortalecer o Estado. Acabaram por fazer exatamente o contrário - o que é a República Velha, que veio logo depois, senão a predominância absoluta das elites locais?
Da mesma forma, uma cruzada contra o voto eletrônico, reconhecido por organismos internacionais como um alicerce positivo do sistema político brasileiro, pode ser apenas uma fachada para as mudanças que realmente se quer fazer.
Basta lembrar como o Celebrity Death Match de 1993, o Plebiscito Constitucional sobre a forma de governo - Monarquia x República, Parlamentarismo x Presidencialismo - incluía uma cláusula mandatória para uma posterior mini-reforma da Constituição Federal que permitia que Emendas Constitucionais fossem aprovadas por maioria simples (50% + 1) e não mais maioria qualificada (3/4 do Congresso).
Essa disposição escondida na lei do Plebiscito foi o esteio de todas as reformas feitas pelo governo FHC, que teve vida fácil por conta disso para mexer em áreas críticas e imprimir sua agenda política. Mas eram outros tempos e o estrago foi pequeno perto do que temos hoje em dia.
Agora, há um cenário completamente novo e que deve ser levado em conta. A radicalização política fez com que candidaturas de direita, hoje em dia, só se viabilizem pelo extremo (vide a naufragada candidatura Doria e a competitividade de candidatos de extrema-direita em todo o Brasil); o coronelismo, que sempre esteve aí, seja sob nomes como Arena ou Centrão, ganhou vida nova e hoje tem autonomia para decidir orçamentos antes inalcançáveis e muito mais poder de barganha; a militarização da sociedade caminha a passos largos, com colégios militares e simulacros de colégios nesses moldes, clubes de tiro e, mais importante, militares se aproveitando da farda e do fetiche brasileiro por “lei e ordem” para ganhar espaço político.
E, finalmente, a questão demográfica: o governo atual é avalizado por segmentos específicos da sociedade - homens, brancos, com idades entre 45-59 anos, que vivem em Estados das Regiões Sul, Centro-Oeste e Norte, empresários e associados do agronegócio, de religião evangélica. Uma minoria em termos populacionais, mas uma parcela com força suficiente e que tem interesse em
REFORMAS!
Quem pode garantir que essa anedótica luta contra o voto eletrônico não esconda, talvez, um Cavalo de Tróia para restringir mais ainda a cidadania, tirar direitos de quem vota atualmente e abrir espaço para grupos de interesses específicos que vão impor sua agenda anti-republicana?
Ou seja, é o coronelismo numa versão 2.0 (ou versão 12.8.1.b, já que as mutações são infinitas e extremamente adaptáveis a qualquer época). Basta ver que todo o discurso do atual presidente é voltado a esse grupo minoritário, mas coeso. É a deturpação dos mecanismos da democracia, em prol de um pequeno grupo com pautas próprias, sejam morais ou financeiras. E acaba, na verdade, a levar ao extremo a dinâmica do Segundo Reinado, da República Velha, do Estado Novo etc etc, longo etc.
Num exemplo internacional, a discussão sobre direito ao aborto nos EUA, em torno da decisão da Suprema Corte em Roe x Wade, esconde, na verdade, uma discussão sobre a centralização do poder político na Federação ou a pulverização para os Estados decidirem por conta própria em qualquer assunto, sem amarras - ou seja, a discussão sobre aborto, na verdade, resvala na própria essência do país e quais são suas configurações políticas e institucionais. Em última análise, pode tornar muito mais fácil a eleição de um presidente que não tenha maioria dos votos populares, como aconteceu com Trump, ou detonar a progressiva restrição a direitos antes tidos como intocáveis.
Paranóia? Talvez.
Mas só porque você é paranóico não quer dizer que não haja alguém atrás de você, como já dizia o bom e velho Kurt Cobain, parafraseando o tio Bill Burroughs.