Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Sem muito tempo livre, o texto dessa semana é meio que uma continuação do anterior. Nessa farsa aqui, alguns pensamentos complementares e nada de muito novo. Mas, de qualquer forma, acho legal pingar sempre um textinho, mesmo que reduzido, numa sexta feira de frio como a de hoje. O título remete a uma das frases mais famosas de Karl Marx:
"A história se repete - a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa".
Boa leitura! Até a próxima semana.
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1.
Prometi um texto curto para essa semana.
Então aí vai.
Pensei antes em discorrer longamente sobre O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, livro clássico de Karl Marx (ah, tremei, vocês aí: as Ciências Sociais têm material infinito para textos e mais textos de indignação e dedo no 👁 ).
Acabei desistindo. Talvez volte a ele no futuro, com todo o cuidado que merece. Era muita coisa para se falar e muitas ligações com o momento atual, o que demanda tempo para fazer direito.
De qualquer forma, vou dar um teaser. Vai ser o tal texto curto de que falei.
O bom velhinho da barba branca que, nas fantasias proibidas da classe média, invade casas pela chaminé, fala nesse livro sobre a ascensão e queda de Napoleão III: o sobrinho (e meio que uma versão Dollyinho) do Napoleão original, e que governou a França de 1848 a 1870. Foi eleito presidente com maioria esmagadora de votos, reeleito facilmente e, depois de um tempo, achou que seria de boas propor um plebiscito que o tornaria Imperador. O que acham que aconteceu?
“Toda a Gália foi ocupada…? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste…"
Que nada. Ninguém resistiu e Napoleão III, Le Petit, virou Imperador sim, com plenos poderes. E bem poucos foram contra.
Marx discorre sobre tudo o que possibilitou que um medíocre militarista conservador pudesse se aproveitar do pânico da burguesia e da aristocracia contra pobres em geral e virasse um autocrata safado e petequeiro, meio ao estilo do ex-capitão desocupado que hoje ocupa a presidência desse país tropical abençoado por Deus. Napoleão III só foi parado quando arruinou a França ao enfiar o país numa guerra totalmente sem sentido e megalomaníaca com a Prússia - e foi com esse sucesso que a Alemanha ganhou impulso para se unificar, só para no século XX arrumar altas confusões.
O velho Marx estava muito à frente do seu tempo. Seus textos são divertidos, bem-humorados. Tem frases ótimas, tiradas sarcásticas e faz metáforas geniais. Mais ou menos como um Morrissey do bem.
É preciso uma conversa longa para dar conta de toda a importância do texto de Marx e suas implicações para o mundo atual. Por isso, deixo apenas uma citação do livro sobre o qual pretendo ainda escrever alguma coisa por aqui, mas com a profundidade e análise que vocês merecem:
“Victor Hugo (…) vê no golpe apenas um ato de poder de um indivíduo isolado. Não se dá conta de que engrandece esse indivíduo, em vez de diminuí-lo, ao atribuir-lhe uma capacidade de iniciativa pessoal que seria ímpar na História mundial."
O 18 de brumário de Luís Bonaparte, edição Boitempo, 2011, prefácio do autor à segunda edição de 1869
Quem discorda?
Principalmente se pensarmos no atual presidente da República Federativa do Brasil e tudo o que envolve sua ascensão ao poder.

2.
Mas o livro de Marx deu um gancho para que eu pensasse em mais algumas analogias com os anos selvagens em que vivemos.
Na semana passada falei das afinidades eletivas que ligam o ex-capitão a um grupo específico de eleitores: gente que sabe usar talheres, que não espuma pela boca e pode estar bem mais perto do que você aí imagina.
E essa semana, por acaso, me deparei com uma pesquisa Datafolha divulgada em 22 de agosto…de 2018. Quase 4 anos atrás.
Nela, alguns dados bem interessantes. Quem quiser ver, está aqui.
O que me chamou a atenção foi aquilo que alguns analistas gostam de chamar de “retrato do momento".
Há quase 4 anos, Lula liderava com 39%. Bolsonaro num segundo lugar distante, com 19%. Números bem parecidos dos que temos hoje, considerando que Bolsonaro ganhou muito mais exposição desde então - é natural que tenha uma maior porcentagem na eleição de agora. Mas a distância entre os dois candidatos é bem parecida e já se desenhava a predominância de Bolsonaro em determinados recortes demográficos/sociais, como falei na semana passada.
Nem entremos no mérito da "sensacional virada” do capitão, que contou com a ajudinha de um processo cheio de irregularidades e a resultante condenação em tempo recorde que tirou da eleição o líder das pesquisas.
Ainda mais que saiu agora um vídeo do ex-juiz que deu essa mão amiga para o candidato da extrema-direita em 2018, em que afirma, com todo o seu carisma e sua malemolência em frente às câmeras, que ele e Bolsonaro combatem o mesmo adversário. Saudades do ex-patrão? Ou repetição, como farsa, da aliança não declarada da eleição passada?
E não é só o ex-juiz que está voltando aos verdes pastos de outrora: há um movimento detectado em pesquisas de crescimento da intenção de voto no presidente, mas sem tirar os votos consolidados no adversário. Ou seja, Bolsonaro ganha de volta os votos de quem é anti-esquerda e buscou uma mítica terceira via que nunca se materializou.
Ou seja, é a volta para casa dos desgarrados que, nos 4 anos desde então, se decepcionaram de alguma forma com o presidente que elegeram. Num chute meio para a arquibancada, eu estimo que, no mínimo, de 80% a 85% dos eleitores de 2018 repetirão o voto em Bolsonaro - gente demais.
A história se repetindo, agora como farsa.
E só para citar o bom velhinho Karl mais uma vez:
Quando, no Concílio de Constança, os puritanos se queixaram da vida depravada dos papas e reclamaram a necessidade de uma reforma dos costumes, o cardeal Pierre d’Ailly bradou-lhes: “O único que ainda pode salvar a Igreja Católica é o diabo em pessoa e vós rogais por anjos." Assim também bradou a burguesia francesa após o coup d’état (…) só o roubo pode salvar a propriedade, só o perjúrio pode salvar a religião, só a bastardia, a família, só a desordem, a ordem.
o 18 de brumário de Luís Bonaparte, edição Boitempo, 2011, página 150
Ou como falou outro que lutava o bom combate, Herbert Marcuse: "só resta uma escolha à burguesia - despotismo ou anarquia. Ela, naturalmente, escolheu o despotismo"1. É a única escolha que os que estão presos às afinidades eletivas de que falei na semana passada aceitam fazer.
Uma farsa mais terrível do que a tragédia à qual ela segue.