Mas a Mônica queria ver o filme do Godard
Duas ou três coisas sobre Jean-Luc; um gênio chato ou um chato genial?
Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.
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Final do filme. Fiquei até o último crédito aparecer na tela. Sala escura ainda, levantei, andei até a saída do auditório do MAM, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Apenas alguns passos e estava ao ar livre. Melhor sala de cinema. Pelo menos naquele dia.
Era um final de tarde de outono em São Paulo, quarta feira. No dia anterior eu havia chutado para a arquibancada o emprego em uma agência de publicidade multinacional, daquelas gigantes, em que há contas milionárias e o alinhamento internacional entre agência e cliente permanece sempre, a despeito de qualquer coisa que possa acontecer; todo mundo toca a bola para o lado e joga para segurar o resultado. Criação em piloto automático, quase como se uma prototípica inteligência artificial se encarregasse de tudo.
“The business of America is business”, dizia Calvin Coolidge, um dos presidentes dos EUA nos degraus mais baixos na avaliação popular em toda a história (meio que um Michel Temer, só que sem golpe no currículo). Essa agência multinacional de origem norte-americana era a de maior faturamento no Brasil na época e as pequenas salinhas para duplas de criação no estilo Mad Men haviam sido descontinuadas há bem pouco tempo - o que significava, na prática, que as portas das salas foram retiradas. A intenção era fazer os criativos interagirem. Não deu muito certo. Mas continuava a mesma disposição: eram pequenos escritórios onde havia uma mesa para que um redator e um diretor de arte exercessem o nobre ofício da criação, numa linha de montagem disfarçada. Pelo menos, ainda não haviam colocado todo mundo numa única mesa gigante compartilhada, no meio de um salão, para ‘facilitar o brainstorming’ e para deixar o clima de sequestro mais evidente.
Pedi demissão numa terça feira. Falei para o diretor de criação que eu poderia ficar até arranjarem outra pessoa para o meu lugar. Mal contendo o sorriso, ele disse “Não se preocupe, pode ir tranquilo. Tem muita gente querendo essa vaga".
No dia seguinte, assinei os documentos no RH e fui me despedir de quem ficava. Ouvi em voz baixa “Você está fazendo o que todo mundo aqui pensa e não faz". No meu computador, já havia outro diretor de arte tentando lidar com o Photoshop, que não abria. Tive tempo de dar uma dica para ele: chegar às 8h50 no dia seguinte e já fazer login no programa, uma vez que só havia uma cópia desse software para dois diretores de arte e quem entrasse primeiro poderia trabalhar conectado à rede e ter acesso à internet - caso contrário, você ficava no limbo, completamente desconectado, já que um outro coleguinha usava o mesmo número de série (alô você, Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Propriedade Imaterial!).
Saí logo depois do almoço. Alguns olhares de admiração por largar o emprego, outros de inveja, outros que pareciam denunciar a burrice que eu estaria fazendo. Mas a maioria era indiferente. Acho que pensavam mesmo era nos prazos exíguos e nas alterações que viriam no final do dia para algum trabalho cuja primeira versão haviam acabado de entregar, depois de uma madrugada de choro e ranger de dentes.
Na rua, olhei para os lados, tenso, como Ray Liotta nas cenas antes de ser preso em Os Bons Companheiros. Fazia meses que não via a luz da tarde sem ser pela janela do escritório. Por um momento, não sabia bem o que fazer com a recém-adquirida liberdade. Ir para casa e dormir? Ir a uma loja de discos? Andar pelo Centro? Beber, cair na sarjeta, voltar para casa só no dia seguinte?
Abri a mochila, olhei o guia da sexta-feira anterior, que vinha encartado no jornal (sim, isso existia anos atrás, quando o jornal diário era em papel e era possível manter uma certa previsibilidade do que acontecia, a ponto de se fazer um guia da semana que era impresso dias antes). Vi que havia uma sessão de cinema na sala de projeção do MAM, ali perto, no Parque do Ibirapuera. Começaria no meio da tarde. Quem assistiria a um filme nesse horário, além de desocupados, desempregados, aposentados, pervertidos e toda a sorte de freaks?
Parecia bom demais. Rumei ao parque sem pensar duas vezes.

Não foi a primeira vez que vi o filme. Já havia visto antes, mas em VHS, naquelas cópias piratas de locadora do interior. No cinema, era a primeira vez. Cópia velha, mas passável: alguns riscos, alguns cortes abruptos que eu não sabia se eram da estética da Nouvelle Vague ou se vinham das inúmeras emendas que os rolos do filme já deviam ter sofrido.
Mas valia ver pela primeira vez no cinema um clássico absoluto: Acossado, de Jean-Luc Godard, de 1960.
Godard foi o último entre os grandes diretores que vieram da revista Cahiers du Cinema a lançar seu primeiro longa-metragem - antes dele, Alain Resnais, Éric Rohmer, Claude Chabrol e François Truffaut já haviam feito suas estreias.
A Cahiers chegou chutando a porta em 1951, quando foi fundada por iniciativa de um grupo de cinéfilos que se reunia para conversa mole, muito cigarro e muita bebida nas madrugadas de Paris, após os filmes nos cineclubes do Quartier Latin. Ficou famosa por sua luta sem tréguas contra o conservadorismo e a pompa do cinema francês tradicional. Defendiam grandes diretores franceses como Bresson, Renoir e Cocteau, que eram meio escanteados pelo cinema comercial da época. Também davam uma banana para o patriotismo reacionário e o esnobismo cultural da intelectualidade francesa, que era contra o cinema norte-americano. Les Jeunes-Turcs1 da revista valorizavam diretores tidos como de filme B, vibravam com filmes de gênero, exaltavam diretores jovens e aplaudiam os gênios no exílio como Fritz Lang ou os gênios destruídos como Orson Welles. Foram responsáveis, em grande parte, pela recuperação da reputação de Hitchcock como grande diretor - o velho Hitch nessa época era considerado uma caricatura grotesca e um has-been; seus filmes apanhavam sem dó, apesar (ou talvez por causa) de seu sucesso de público.
Foi na Cahiers que François Truffaut escreveu um texto fundamental, Uma certa tendência do cinema francês, em 1954. Foi aí que expôs a teoria de que o diretor é o verdadeiro autor de um filme, mesmo que a produção seja um esforço coletivo. Criticava ainda o cinemão comercial da época, com sua “tradição de qualidade” subordinada às fórmulas da literatura e guiado por um intelectualismo inofensivo e palatável à classe-média. Truffaut defendia que os autores deveriam criar uma perspectiva cinematográfica própria, como faziam Bresson, Cocteau e outros franceses ou estrangeiros à margem do cinemão comercial. Foi o início do cinema de autor, depois vilipendiado, mas que era revolucionário e abriu as portas para novos autores e novas formas de se criar. Foi a base teórica da Nouvelle Vague.
Um dos frutos dessa tomada de posição, o roteiro de Acossado foi escrito por Godard a partir de uma ideia original de seus parças de redação na Cahiers, Truffaut e Chabrol; mas não há como negar que o filme é todo de Godard. A história é praticamente high concept (termo que expliquei aqui): malandro gato é perseguido sem trégua, após matar um policial em um roubo de carro, e busca refúgio em Paris com uma estrangeira gata com quem tem um caso. Nada muito promissor, aparentemente.
E o roteiro é o que menos importa: o que Godard inventa a partir dele é o que faz Acossado ser o que é. Com essa premissa equivalente aos 3 acordes do punk rock, Godard empilha em 90 minutos mais inovações narrativas e estéticas do que praticamente todos os filmes feitos desde Cidadão Kane (1941), de Orson Welles.
Tem montagem esperta, câmera na mão, movimentos inusitados e muitas ideias criadas para contornar o baixíssimo orçamento. Tem Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg em cenas antológicas. Tem montagem, cenas e enquadramentos que foram copiados por inúmeros outros diretores nas décadas seguintes. É o cinema em estado puro: todas as características únicas do meio brilham - movimento, edição, o olhar para o enquadramento que ajude a narrativa sem ser óbvio - como se Godard estivesse fazendo um manual para ser usado por futuros cineastas.
Martin Scorsese, por ocasião da morte de Godard em 2022, falou sobre os filmes do franco-suíço que o influenciaram e, especialmente, sobre Acossado:
Na época, todas as objeções que você pode esperar foram levantadas: "não é como se faz um filme". A resposta de Godard, na própria forma do filme, é: “Por que não?”
Até então, ninguém editava como foi feito nesse filme; ninguém, também, interferia na narrativa da forma como Godard fazia, fragmentando as cenas, fazendo transições rápidas, com cortes secos. Conceitualmente também era um avanço: numa época em que filmes de gênero eram desprezados, tratados como diversão descartável, Godard basicamente fazia uma releitura do filme noir que tanto admirava no cinema B norte-americano - um desafio à “tradição de qualidade” que Truffaut havia atacado em seu texto, aquele cinemão pesado e chapa-branca a que a indústria cinematográfica francesa estava acostumada.
Godard enxergava a cultura pop com curiosidade distante, mas tratou o pop como poucos, tanto em Acossado como nos filmes seguintes. Criou imagens icônicas, frases e diálogos marcantes. Godard era, em si, pop ao extremo, na medida em que tem sua Imperial Phase (já sei, é MAIS UMA VEZ que cito esse conceito. Mas o que posso fazer? Neil Tennant é gênio). Tudo o que Godard fez de 1960 a 1968 é influente, importante, controverso - mesmo quando é chato. Talvez seja o mais próximo que o cinema chegou do pop, como se fosse uma banda de rock que lança em rápida sucessão os melhores discos de sua carreira. Godard é punk antes do punk: o one, two, three, four! dos Ramones misturado com as complexas músicas do Television, com a new wave dançante do Blondie, com a consciência e o olhar global do Talking Heads, com a doideira cabeçuda e perigosa do Suicide.
Todo o Godard revolucionário e que é essencial ver está inserido em uma única década - os 1960, quase como se fosse um espelho da carreira dos Beatles. Os últimos filmes de Godard que eu de fato gostei são de 1968 - A Chinesa, longa super militante maoísta e totalmente ligado ao Maio de 68, e Simpathy for the Devil, o documentário genial com os Rolling Stones em que Godard subverte completamente um documentário sobre rock.
Esse dos Stones nunca vi inteiro, mas peguei muitos trechos aleatoriamente. Via sempre numa TV que exibia o filme de forma nonstop no antigo Bar Matrix, muitos anos atrás. Saía da pista de dança e parava para assistir um pouco, ou ficava por lá assistindo quando já estava quase para amanhecer e esperava alguém para seguir para outro lugar na longa jornada noite adentro, ou ainda para dividir um táxi, ou ainda então para caminhar até o ponto mais próximo e aguardar o primeiro ônibus da manhã.
Não por acaso, depois de brilhar intensamente durante boa parte dos anos 1960, Godard entrou numa fase militante no final da década e saiu do outro lado cada vez mais impenetrável, hermético. Mais arte e menos pop. Seu cinema cada vez mais com jeito de algum pavilhão que você encontra no meio da mata em Inhotim e não sabe de onde veio e o que você deve achar, ou sequer como se comportar - se deve tirar os sapatos ao entrar, se pode encostar na parede ou conversar em voz alta. Não assisti muita coisa dessa fase. Talvez tenha sido aí que “filme do Godard" virou sinônimo de filme-cabeça, pretensão e chatice. Confesso que o que tentei ver não me pegou de maneira alguma. Saí no meio de alguns, inclusive, um evento raro para mim - sempre dou o crédito de ver até o final, já que estou mesmo na sala de cinema. Durante anos, a cada vez que eu via um filme novo do Godard, pensava que teria sido melhor ir a uma lanchonete.
Talvez Godard tenha cumprido o ciclo de vida de uma boa banda pop: um brilho intenso durante alguns poucos anos em que nada parece dar errado, em que cada coisa que você faz é um clássico instantâneo e relevante. Intenso, em constante movimento, abandonando sem remorso boas ideias pelo caminho porque sempre vislumbra alguma mais interessante lá na frente. Não importa o que viria depois: o que fez nesse pequeno intervalo de tempo já vale muito.
Naquela tarde de outono, saí do cinema feliz.
Atravessei o saguão do MAM, olhei para o gramado do parque à minha frente, o Pavilhão da Bienal à direita, a Oca à esquerda. O sol já começava a baixar. Caminhei sem pressa pelo parque, em direção ao caos do complexo viário e, logo depois, à rua que me levaria para casa. No dia seguinte, não levantaria cedo. Na verdade, não tinha planos: talvez ver outro filme?
Por alguns dias, flanei pela cidade, sem rumo definido, sem compromissos, sem pressa. Meio como um personagem de filme do Godard.
Um dia, encontrei no elevador um redator com quem havia trabalhado e que morava no mesmo prédio que eu. Ele me disse que um conhecido de ambos estava procurando um designer para o estúdio dele. Fui até lá, fiz entrevista e voltei ao trabalho diário (agora longe da publicidade) e também aos boletos quitados em dia. So it goes.
Desde então, sempre que posso, escapo para assistir a um filme durante a tarde, em algum cinema de rua, daqueles raros que sobraram em São Paulo. E lembro sempre daquela vez em que assisti Acossado pela primeira vez no cinema, no meio da tarde, sem compromisso.
Um aviso do seu velho amigo aqui, que muito lhe quer bem: Acossado atualmente passa no Mubi, numa pequena mostra dedicada a Godard. Essa mini-retrospectiva traz outras pérolas, como o clássico O Desprezo (1963), de que falei antes e que talvez seja o melhor filme dele - apesar de eu ter mais carinho por Acossado - e ainda tem Masculin/Féminin (1966) e Duas ou três coisas que eu sei sobre ela (1967), ambos já na transição de Godard para a fase em que radicalizou a linguagem e mergulhou de cabeça na militância política e na arte conceitual.
Assine por 7 dias para assistir e cancele, assine para sempre, baixe um pirata, use a senha de alguém, invada a casa de desconhecidos. Muita coisa você não vai entender, outras você vai odiar. Mas assista o que puder desses poucos filmes, que valem muito. São uma educação em si.
Um filme deve ter começo, meio e fim - não necessariamente nessa ordem.
_Jean-Luc Godard