Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.
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Pense no personagem de Tim Robbins em O Jogador (1992), de Robert Altman - um produtor de cinema safado, picareta e enrolado em mil armações. Em determinado momento do filme, direto do celular do seu carro, fala para dois roteiristas: “Só vou considerar o roteiro de vocês se resumirem em 25 palavras para mim. Agora".
É aquilo que se denomina high concept, na linguagem do cinema a partir dos anos 1980: um filme só terá potencial comercial se você consegue resumir em uma frase curta, da forma mais suscinta possível, qual é a sua premissa. Mas não pode ser qualquer frase: precisa ser algo que mostre toda a capacidade de comover plateias, tratar de temas que despertem sentimentos e, consequentemente, movimentar caminhões de dinheiro.
É menos que um tuíte. E tem melhor custo-benefício.
Pense agora em alguns dos conceitos por trás dos blockbusters das décadas de 1980 e 1990 (outro termo de Hollywood, para gigantescos sucessos de bilheteria) e fica fácil entender como é isso:
"Uma comovente história sobre a improvável amizade entre um tímido menino do subúrbio e um alienígena acidentalmente esquecido na Terra”
“Um heróico arqueologista precisa evitar que a Arca da Aliança, um poderoso artefato bíbilico, caia nas mãos de vilões nazistas"
“Policial solitário precisa salvar sua esposa e outros reféns capturados por um grupo terrorista em um arranha-céu de Los Angeles”
Conte as palavras. Cada frase dessas chega a 25 palavras ou menos.
Toda uma indústria cinematográfica baseada em frases simples, com poucas palavras, com o máximo de objetividade e melhor, com rentabilidade.
Há muitos outros exemplos, até de outras décadas. Posso passar o dia todo falando sobre isso e descobrindo alguns a partir de filmes existentes. Olha só:
“Dois jovens de diferentes classes sociais vivem uma épica história de amor em meio a um dos maiores desastres marítimos da história”
"Menino se comunica com espíritos e um psicólogo tenta ajudá-lo, com um final surpresa que antecipa a precarização profissional do futuro”
“Fascista fardado treina cadetes na SS carioca e normaliza tortura e violência; com isso, ajuda a destruir o futuro do país”
O ápice do high concept deve ter ocorrido na reunião em que se apresentou a premissa para a série Baywatch (aqui, SOS Malibu) no começo dos anos 1990.
David Hasselhoff, ainda com grande moral na TV dos EUA por conta de uma série anterior bem-sucedida (Kight Rider, no Brasil chamado de Supermáquina, onde contracenava com um carro falante 🤔), teve a ideia para um novo seriado que aproveitaria sua fama. Quando os ansiosos produtores e executivos pediram que explicasse o high concept para a série, o confiante Hasselhoff olhou ao redor da sala, sem pressa. Fez uma pausa dramática e, com um sorriso triunfante, pronunciou as célebres palavras:
“Supermáquina vai à praia".
Não é demérito um filme fazer uso do high concept. Vários dos exemplos acima são de grandes filmes, importantes e inesquecíveis à sua maneira. Certos filmes de ação dos anos 1980, por exemplo, são espetáculo puro, até mesmo operísticos; e não são desprovidos de significados e profundidade, a despeito do que fala gente que faz questão de acordar todo dia com o pé esquerdo.
“Ah, mas peraí, nenhum desses filmes aí tem um eclipse tão bem filmado quanto o daquele filme do Kazaquistão que eu vi na Mostra".
Bom, e depois desse eclipse, o que acontece? Há por acaso alguém fugindo de uma explosão dentro de um túnel? Ou uma luta de sabres de luz numa estação espacial? Nem mesmo uma luta com um vilão de dentes de aço no bondinho do Pão de Açúcar?
Então senta lá e deixe-me continuar.
Óbvio que cada filme tem suas qualidades e defeitos - e a avaliação dessas duas variáveis se dá de acordo com a percepção de quem assiste. Não há uma régua absoluta para medir um sucesso futuro. Se houvesse, é capaz que já tivesse sido estabelecida por algum produtor maroto, como um Jerry Buckheimer ou um Jon Peters da vida, digamos. Há indícios do que pode agradar ao gosto popular, mas há também surpresas - estão aí os chamados sleeper hits para comprovar, ou aqueles fracassos que ninguém esperava. Nunca foi ciência exata. E os exemplos são muitos.
O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, estreou em 1972 com filas e mais filas nos cinemas dos EUA, para surpresa de muita gente do estúdio que havia visto o filme. Não era segredo que consideravam o filme chato e pedante e, mais importante, quem havia visto os scores de pesquisas prévias sabia que não empolgava as plateias nas sessões-teste. Até às vésperas, Coppola achava que iria, mais uma vez, à falência - e olha que ele ainda estava só na primeira de muitas. O hirsuto e adiposo diretor jamais imaginaria o final feliz: além de sucesso de crítica, o filme foi o campeão de bilheteria do ano e a maior desde E o Vento Levou, mais de 30 anos antes (com inflação atualizada).
O lançamento bem-sucedido foi o suficiente para que Coppola (que até então lutava para pagar as contas de sua produtora Zoetrope sempre em apuros) apostasse uma Mercedes 600, no estilo limousine estendida, com o diretor do estúdio Robert Evans, caso o filme fizesse 50 milhões de dólares. Quando chegou no dobro disso, Coppola foi buscar seu carro com o amigo George Lucas. O vendedor viu os dois esquisitões de tênis e roupas velhas que haviam chegado num Honda popular e os direcionou para os modelos mais básicos. Afinal, quem eram esses barbudos desconhecidos? Coppola escolheu o carro combinado com Evans e mandou a conta para o estúdio. Saiu por San Francisco com o corpo para fora do teto solar do carro, como se fosse um Leonardo DiCaprio de peso.
O contrário também ocorre e fracassos surgem inesperadamente. Filmes com o Toddy morno Kevin Costner eram sucesso de bilheteria e inclusive davam Oscars de montão até ele naufragar no medonho Waterworld (1995). Executivos de estúdio sabiam que havia problemas, mas ninguém queria ser o chato a apontar a megalomania molhada do então semi-careca Kevin. Fizeram testes e mais testes de audiência, refilmaram cenas, fizeram novas montagens que foram bem-avaliadas pelas plateias pesquisadas. Acharam que tinham nas mãos algo razoável e, mais importante, estavam confiantes de que poderiam bater a carteira do público. O filme afundou mais rápido nas bilheterias do que um delator da máfia com os pés presos no concreto e jogado ao mar. Só recuperou o investimento no post-mortem depois de mais de 10 anos a vagar por videolocadoras e com o licenciamento para Telas Quentes ao redor do mundo.
Estúdios ainda apostavam no agora cabeludo Costner (milagres do implante, dizem as más-línguas) e financiaram outra megaprodução, O Carteiro (1997). E, mais uma vez, o público evitou as salas de cinema como se houvesse uma doença contagiosa nos locais que passavam o filme. Parafraseando Oscar - não o prêmio, o Wilde: “uma vez pode ser azar, mas duas vezes parece descuido". Costner nunca mais se recuperou no mercado. Continuou atraindo um público fiel, mas deixou de ser o que chamam de tentpole, outro termo de Hollywood: aquele ator, atriz, livro, brinquedo ou personagem ao redor do qual se constrói qualquer filme que leve público ao cinema sem se esforçar muito, tão fácil como pescar usando dinamite.
High concept, tentpole, franchise, sleeper hit ou qualquer outro termo “mágico” desses não garante sozinho que um filme seja um sucesso. Há muito mais envolvido, numa arte comercial que é um esforço coletivo e que sempre teve a sua relevância atrelada à cultura contemporânea. Não por acaso, mudanças geracionais sempre trazem alterações no que acontece no cinema, seja comercial ou autoral.
No final dos anos 1960, Hollywood era terra arrasada. Estúdios pesados e lentos, filmes para um público desinteressado. Tudo fora de sintonia com a nova geração que era, de fato, quem consumia cultura popular. O cinema estrangeiro era bem mais inovador e muito mais ligado nas mudanças sociopolíticas da última década. A televisão concorria diretamente com as salas de cinema. Hollywood fechava postos de trabalho mais rápido do que o Brasil após reforma na legislação trabalhista.
O produtor Irwin Winkler, que depois fez seu nome como produtor na chamada Nova Hollywood a partir dos anos 1970, contava uma história interessante que mostrava como o buraco era bem profundo para os estúdios nessa época.
Em seu primeiro trabalho como produtor assistente, em 1966, conheceu o diretor Norman Taurog. Era o primeiro dia de filmagens do novo filme de Elvis Presley - que, ano sim e outro também, fazia filmes campeões de bilheteria para um público nostálgico, que envelhecia junto com ele. Ao ver Taurog com um chofer conduzindo-o até o set de filmagens, Wrinkler fez uma brincadeira com o fato de um diretor de filmes bem-sucedido poder ter seu próprio motorista, mesmo em tempos de cortes e demissões. Taurog respondeu que adoraria dirigir ele mesmo, mas como era completamente cego de um olho e o outro praticamente já estava indo para o vinagre, precisava de alguém para dirigir para ele.
Aparentemente, ninguém na Antiga Hollywood do final dos anos 1960 se importava com um diretor praticamente cego: Taurog gritava “ação!” e “corta!” como sempre fizera desde que começou no cinema mudo, em 1920, mas sem ter visto muito do que estava sendo filmado. Talvez tenha sido até melhor não enxergar a canastrice do Rei do Rock.
Wrinkler foi produtor de grandes filmes na década seguinte, quando se abriu espaço nos estúdios para novos diretores, roteiristas e atores, em filmes de baixo orçamento e que estavam ligados no que acontecia no restante do mundo. Eram filmes de temática ousada, complexos e com o proverbial dedo no pulso do que acontecia nas ruas, como dizia o diretor William Friedkin. Foi o que revitalizou o cinema norte-americano.
Talvez o primeiro desses filmes tenha sido Easy Rider, ainda em 1969. Realizado por dois outsiders que eram, ao mesmo tempo, ‘realeza’ de Hollywood, Peter Fonda e Dennis Hopper, era completamente diferente de tudo o que o cinema mainstream fazia. Mais próximo em conceito e execução dos filmes B que até então eram desprezados, Easy Rider era caótico, com um ar bem Nouvelle Vague ou Cinema Novo, de câmera na mão e ideias novas na cabeça. Hopper, macaco velho, nunca havia dirigido um filme; mas desde os tempos em que trabalhou com o mestre Nicholas Ray (de Juventude Transviada e outros) aprendeu a observar diretores e fez direito quando teve a chance. O filme foi um sucesso absoluto de bilheteria e de crítica, o primeiro dessa geração.
No Oscar de 1972, a mudança já era clara: Operação França (William Friedkin, 1971) foi o grande vencedor da noite. Um filme de baixo orçamento, considerado “de gênero” (era um policial, afinal de contas) e de clima sombrio. Além disso, sem atores conhecidos - Gene Hackman era iniciante, pense só - e ainda com inovações técnicas, muita câmera na mão, montagem surpreendente e ritmo alucinante em muitas cenas, como a celébre perseguição a um trem elevado, feita sem permissão oficial. Além de tudo, não tinha o final feliz redentor. Talvez porque os personagens fossem menos maniqueístas e mais reais. Foi uma pequena revolução e ajudou a mudar Hollywood na nova década.
A toda ação corresponde uma reação, como já dizia o velho Newton. Ao mesmo tempo em que os filmes da Nova Hollywood davam fôlego para os estúdios e abriam-se as portas para o novo talento, uma contrarrevolução conservadora era montada de forma imperceptível, talvez invisível até para os próprios artífices.
Tudo começou com Tubarão (Steven Spielberg, 1974).
Spielberg era parça e contemporâneo de todos os grandes dessa época, como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Hal Ashby, Brian de Palma, Paul Schrader, William Friedkin. Mas, ao mesmo tempo, más-línguas dizem que o jovem e nerdíssimo diretor era alguém que todo mundo já encontrou no mercado de trabalho ao menos uma vez: um pelego de patrão. Foi o primeiro a ter uma Mercedes, era o que parava seu carro no estacionamento da diretoria do estúdio, o que frequentava as festas dos produtores, passava as férias com eles nas Bahamas, tinha trânsito livre nos altos escalões. Enquanto os outros eram desconfiados da Antiga Hollywood, Shmuel Spielberg era amigo de todos os poderosos (Brian de Palma malandramente o chamava por seu nome judaico, para insinuar que Spielberg continuava a ser um Nissim Ourfali prototípico).
Tubarão estraçalhou todos os recordes de bilheteria da época, incluindo os números extraordinários de O Poderoso Chefão. Steven Spielberg estava tão cheio de si que permitiu que uma equipe de TV o filmasse durante o anúncio dos indicados ao Oscar de 1975. Seu filme levou várias indicações, incluindo melhor filme - mas ele não apareceu na lista de melhor diretor. “Indicaram Fellini no meu lugar, vocês podem imaginar isso?” Spielberg falava, inconformado. Mas virou o garoto de ouro do Cinema mesmo assim e tinha carta branca para fazer o que quisesse, com orçamentos cada vez mais elásticos e histórias extravagantes - o oposto de tudo o que havia feito a fama dos filmes da Nova Hollywood.
Spielberg encontrou seu duplo em George Lucas. De garoto-prodígio que ficava à sombra de Coppola, Lucas virou uma nova promessa de lucros incessantes no futuro com o sucesso de American Graffiti (1973). Foi o que permitiu que conseguisse financiamento para um projeto em que ninguém botava fé: um filme de ficção científica, gênero completamente ignorado, risível e vilipendiado em Hollywood desde sempre. Mas o menino havia conseguido sucesso de crítica e bilheteria com seu filme nostálgico sobre a adolescência nos anos 1950 - por que não dar uma chance para ele? No máximo, iria perder dinheiro, coisa que todo mundo fazia com gosto há muito tempo em Hollywood. Você precisa gastar dinheiro para fazer dinheiro, falavam.
Claro que a um custo. Espremeram o pobre nerd até que ele abrisse mão de uma remuneração por fee como diretor e aceitasse apenas o pequeno salário mensal para o filme; esse fee, que eram seus pontos percentuais de bilheteria (meio que uma taxa de sucesso a que o diretor tem direito caso o filme se dê bem nas bilheterias, em torno de 2 a 3% após os custos serem pagos) ele só receberia se o filme passasse dos 100 milhões de dólares, número que poucas produções alcançavam. Para compensar, Lucas sugeriu que dessem a ele todos os direitos sobre os personagens criados no seu roteiro original e, mais importante, direitos totais sobre o que se chamava de collaterals (ó aí outro termo importante nessa história): ou seja, as vendas de merchandising, brinquedos e toda a tralha possível em que se pudesse estampar o logo do filme ou os personagens. Tudo o que não fosse celulóide entrava nessa categoria.
O executivo que fechou esse acordo deve ter dado boas gargalhadas. Afinal, Lucas abria mão de lucros no presente para ter total controle sobre algo que nunca foi levado a sério em Hollywood: quem naquela época iria querer uma lancheira de Don Vito Corleone ou uma mochila de Regan MacNeil? Talvez uma caixinha de remédios de Randle McMurphy?
O filme passou muito dos 100 milhões de dólares em bilheteria. Virou o maior hit da história até então e os collaterals se provaram mais valiosos ainda, com a marca Star Wars estampada em tudo quanto era produto. Lucas criou uma verdadeira máquina de fazer dinheiro para o estúdio e, mais do que isso, controlava os direitos de tudo o que havia criado para os filmes.
Na época de O Império Contra-Ataca (1980), Lucas tinha a força do seu lado e negociou melhor. Propôs um novo arranjo: receber um fee de 50% a partir dos 100 milhões de dólares e de 97% a partir dos duzentinhos. O estúdio topou. E o nerd bom de números pôde criar sua LucasFilm só com o que ganhou nesse filme, que acabou dando muito mais do que essa grana em bilheteria. A LucasFilm e tudo o que George Lucas teve oportunidade de fazer nos anos seguintes foram o motor para uma mudança radical no cinema. Lucas mostrou, com seus filmes, que havia uma audiência mais jovem e muito maior do que se imaginava e que ainda não era impactada pelo cinema comercial.
Ao final, todo mundo ficou feliz: ganharam Lucas, o estúdio, as empresas que embarcaram no merchandising e nos collaterals. Mais importante, Hollywood ganhou fôlego novo e uma nova forma de fazer dinheiro, que seria dominante a partir da década de 1980. Como diria Billy Wilder, esse acordo merecia um Oscar.
Spielberg e Lucas são o ponto de inflexão na geração Nova Hollywood em direção ao mainstream. É quando há de fato uma mudança geracional: a Antiga Hollywood com seus épicos engessados e orçamentos gigantescos foi derrubada no começo dos anos 1970 e a consolidação da nova geração se deu especificamente na segunda metade da década, quando a gigantesca viabilidade comercial de Spielberg e Lucas criou todo um novo panorama no cinema.
Enquanto amigos diretores da mesma geração sofriam fracasso após fracasso na bilheterias, a dupla de nerds criados na era da televisão empilhava sucessos. Nada mais inteligente da parte deles do que juntar esforços, o que aconteceu nos filmes de Indiana Jones. A época foi a mais adequada: na virada dos anos 1970 para os 1980, com a eleição de Ronald Reagan e o contra-ataque do Império Americano causando euforia nos mercados e nos fascistas (e com o Armageddon nuclear ali na esquina, mais perto do que em qualquer outro momento da Guerra Fria) o que a maior parte do público mais queria era escapismo, grandes espetáculos, finais felizes e mensagens claras. Queriam, na verdade, que um filme pudesse ser resumido facilmente em uma frase, como se isso fosse a forma mais fácil de escolher o que assistir no mall naquele final de semana de verão. E isso Spielberg e Lucas entregavam com louvor.
A partir daí, uma procissão de bons filmes de ação, comédia e até mesmo dramas massificaram a fórmula do high concept - mas dividiram espaço com infinitos outros mais que eram completamente esquecíveis e de causar vergonha eterna ao usar do mesmo estratagema.
O high concept não era absoluto, mas dominou boa parte da produção cinematográfica dos anos 1980 e início dos 1990. Lucas, Spielberg e muitos que vieram depois souberam surfar nessa onda pelo tempo necessário para fazer fortunas e bater um recorde depois de outro nas bilheterias.
Histórias em quadrinhos começaram a aparecer aos poucos nas telas: os primeiros Superman e o Batman de Tim Burton. Mas a Marvel era só fracasso atrás de fracasso com filmes que pareciam sair direto da fábrica trash de filmes B de Roger Corman. E às vezes nem pareciam - eram mesmo, como o absurdamente malfeito Fantastic Four produzido e dirigido pelo rei do baixo orçamento Corman. Ainda não era a vez das HQs e super-heróis.
A nova mudança geracional veio nos anos 1990: o cinema independente nos EUA e no mundo trouxe novos talentos para o cinema comercial. A Miramax dos irmãos Weinstein era o nome mais comum e detinha o passe de Quentin Tarantino desde o primeiro filme, Cães de Aluguel (1992). Tarantino virou grande chamariz para bilheterias, a primeira vez em que um diretor conseguia isso desde a geração da Nova Hollywood dos anos 1970.
Mas não foi exatamente o cinema independente original que virou a bola da vez para os estúdios: o que foi preponderante para a nova mutação do mercado cinematográfico foi uma mudança de mentalidade trazida por essa gente que vinha de um mundo cultural completamente alternativo, em que locadoras de filmes com seus VHS obscuros (de filmes de kung fu, cinema estrangeiro ou westerns italianos), histórias em quadrinhos, literatura underground e cyberpunk, música alternativa e grafitagem eram as maiores referências. A cultura marginal das ruas, cultuada por inúmeros desajustados sociais por todo o mundo, derrubou o preconceito dos executivos e do público mainstream contra o que até então era considerado um subproduto cultural, como quadrinhos.
Numa transição suave, mas profunda, passou a ser cool gostar de tudo o que até então era restrito a nichos culturais. Com isso, um movimento parecido com o que Star Wars trouxe ao mercado cinematográfico décadas antes foi gestado durante os anos 1990. Os independentes do cinema dessa década - Tarantino, Linklater, Spike Jonze, Kevin Smith, Sofia Coppola, Aronofsky, Gondry e outros - foram a ponta de lança para que a indústria cinematográfica naturalizasse manifestações culturais até então ignoradas.
Com Matrix (1999), dos então irmãos Wachowiski, o blockbuster esperado finalmente chegou. Uma história em quadrinhos em tudo, só que sem nada do universo Marvel ou DC, foi o filme que consolidou a nova perspectiva para o cinema do século XXI.
Confissão: nunca assisti Matrix inteiro. Dormi no cinema, uma das poucas vezes em que isso aconteceu. Achei chatíssimo. Como um crítico inglês da época definiu, o filme só era inovador na superfície - na verdade, tinha mesmo era jeito de ser uma compilação de 2 horas de comerciais do horário nobre da TV dos EUA, escondida por trás de um roteiro pretensioso que até hoje encanta uns trouxas por aí. Red pill, anyone?
Mas o filme cumpriu seu papel de naturalizar o que era até então alternativo e preparou o terreno para a ascensão de algo que veio a dominar o mercado cinematográfico hoje: os filmes de super-heróis.
A fórmula de Matrix deixou claro que havia um filão a ser explorado pela indústria cinematográfica. E, em algum momento, sempre há o executivo de estúdio esperto o suficiente para enxergar algo óbvio, mas que ninguém viu antes: por que gastar tempo e dinheiro desenvolvendo personagens, se é mais fácil e barato “comprá-los” prontos?
Durante décadas, o que as editoras de quadrinhos mais fizeram foi criar milhares de personagens, desenvolver histórias complexas, sagas intermináveis - tudo isso estava lá, pronto para ser garimpado pelo cinema comercial. Valia tudo: até mesmo HQs alternativas entraram na alça de mira.
A indústria dos quadrinhos virou a fonte para o cinema dos anos 2000: pegava-se personagens já conhecidos ou, se não fossem, ao menos os que já tinham um desenvolvimento pronto e eram até reconhecíveis por parte do público. Era fácil para todos, até mesmo para bons atores encherem seus cofres - é célebre a história de que Anthony Hopkins leu o roteiro de Thor, aceitou fazer e devolveu ao seu agente com a anotação “No acting required". Era só aparecer para retirar a grana e correr para casa sem maiores preocupações.
Os filmes de ação no estilo dos anos 1980-1990 definharam nas bilheterias. Tirando o ocasional veículo para Tom Cruise e uma ou outra exceção, dificilmente houve na última década algum campeão de bilheteria que não tenha vindo de HQs.
Ou melhor, ainda havia: Star Wars. Espertos, os executivos da Disney fizeram o mais lógico nessa era de se aproveitar o que havia sido criado antes. Assim como fizeram com a Marvel, abriram os cofres para comprar TUDO o que Lucas havia criado, incluindo a LucasFilm. A mina de ouro estava garantida.
Hoje, Oscars não são mais impulso para bilheteria. Já foi o tempo em que os cartazes da Paulista enfileiravam estatuetas no dia seguinte à premiação para dar um fôlego de bilheteria para um filme vencedor. Mesmo o high concept anda em baixa: os fãs de filmes de super-heróis ou franquias conhecidas não precisam sequer saber qual o argumento do filme para assistir. Saber se determinado personagem estará no filme e qual ator irá fazê-lo traz mais espectadores do que uma frase explicando a premissa do filme.
É do jogo e sempre foi assim. Apesar das mutações, é o bom e velho espetáculo grandioso do cinema; se antes plateias aglomeravam-se nas salas para ver um gorila gigante andar por Nova York, um travelling sobre um campo de batalha com milhares de figurantes ou um naufrágio trágico, hoje acontece o mesmo com as batalhas entre super-heróis e vilões ou qualquer outra configuração que se pense. Hollywood naturaliza o que até então era alternativo ou esquisito.
Ainda há muito o que faturar com essa fórmula, mas uma nova mudança já está em curso. O filme Tudo ao mesmo tempo em todo lugar (2022), dos Daniels - o Kwan e o Scheinert - grande vencedor do Oscar dá a pista do que pode ser a próxima força motriz para o cinema comercial.
Muito se falou do Multiverso e tals com o filme. Alguns descontentes falaram que não entenderam e não conseguiram passar dos primeiros 15 minutos ou da metade do filme. Justo. Eu mesmo confessei há algumas linhas que dormi no meio de Matrix e nem por isso a Terra saiu do eixo para mim. Outros que nem sequer entenderam até hoje como funcionava o Orkut já saíram falando que era um filme ‘Tik Tok'. Incompreensível, fragmentado, frenético - cada um que não gostou tinha um monte de adjetivos como esses.
Se tanta gente assim não gostou, algum mérito deve ter. Mas demorei para ver.
Fui assistir sem preconceitos. (Mentira, fui como sempre faço em shows de bandas que gosto, em filmes e em livros de autores que gosto: carregado de preconceitos e com os dois pés atrás. Prove-me que é bom, digo eu sempre).
E o filme é BEM bom. Genial até, arrisco dizer.
Mistura ao mesmo tempo vários elementos dos filmes da Nova Hollywood, do high concept dos filmes blockbuster dos anos oitenta, do olhar ampliado para os meandros da cultura pop dos noventa, do fascínio juvenil do fandom do século XXI de filmes de super-herói. Até mesmo o elenco é esperto: tem Jamie Lee Curtis, que começou fazendo filme de gênero (que Hollywood detesta, e Jamie fez questão de falar isso quando recebeu seu Oscar); tem Ke Huy Kwan, o menino em Indiana Jones e o Templo da Perdição e Goonies, em um aceno aos oitenta; tem Michelle Yeoh, que Tarantino, com seu amor por filmes de Kung Fu e policiais de Hong Kong, escalaria facilmente para um grande papel (só não o fez em Kill Bill porque não a via apanhando em cena, de tão fodona que ela era em filmes de Hong Kong).
E de onde vem a forma alucinada de misturar tudo isso, que Tudo ao mesmo yadda yaddda yadda usou? Dos games.
É onde está o entretenimento mais interessante para quem chegou agora - ou seja, para aquela proverbial audiência que Lucas descobriu lá atrás, a faixa etária que começa nos 7 ou 8 anos de idade e chega a pré-adolescentes e adolescentes. Não por acaso, a indústria dos games já movimenta o mesmo dinheiro que o cinema ou até mais.
As críticas parecem vir, em sua maioria, de quem não faz a mínima ideia de como é esse universo. Que não entende, não quer entender e acha que é tudo uma grande besteira e que bom mesmo era o que rolava nas décadas passadas.
Meu sobrinho de 11 anos não quer nem saber dessa discussão. Para ele, que joga Fortnite dia e noite, talvez o filme seja bem menos diferente do que para os tiozões que dizem que é Tik Tok. O filme tem o mesmo conceito dos games mais conhecidos: múltiplos universos colidindo em um único campo de luta. Para meu sobrinho, esse mundo não deve ser estranho - ele navega por esse multiverso da mesma forma que milhões como ele. E por isso é que o cinema comercial se volta para essa grande mina de ouro.
Fortnite, para quem não sabe, é um sucesso esmagador nos games. Junta o Battle Royale de antigamente, super-heróis de agora (Batman e outros já fizeram crossover com o jogo) e mistura tudo em um multiverso com inúmeras possibilidades - e, mais que isso, em um multiverso até dos usuários, em que jogadores se conectam de diferentes partes do mundo num mesmo jogo.
Quem não conhece esse universo pode, inclusive, aproveitar o curso grátis que os Daniels dão em seu filme. Se até uma instituição careta como a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas já fincou bandeira nessa batalha, é para ficar de olho: o cinema comercial sempre soube como pegar o que está há tempos bombando no underground e colocar no centro do palco, mesmo que com certo atraso.
Ao fim e ao cabo (adoro essa expressão que dá uma autoridade professoral a quem a usa, como se a conclusão fosse cristalina e inabalável), essa última transição do cinema para incorporar os games é só mais uma das mudanças que Hollywood faz de tempos em tempos. Só para ficar no que falei aqui, dá para traçar uma linha clara entre a desconstrução da Nova Hollywood nos anos 1970 que resultou nos blockbusters de Lucas e Spielberg nos oitenta, que por sua vez transmutou na abertura para a cultura alternativa com o auxílio do cinema independente nos anos 1990 e, por fim, resultou nos super-heróis que caminham sobre a Terra do século XXI. Agora, o alvo são os games. E Hollywood se reinventa de novo, para continuar fazendo o que faz há mais de um século.
“Se você quer que as coisas continuem como são, tudo tem que mudar".
_Tancredi Falconeri, o arrivista picareta de O Leopardo (1960), de Visconti
“Isso não é o final de nada. É o começo de tudo."
_Princípe Fabrizio Salina, tio de Tancredi, também em O Leopardo.