Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
intro.
Depois de uma semana do reencontro com a cidade, que contei na última newsletter, pensei em falar sobre outros assuntos e, oportunamente, voltar à Bienal e a outras exposições, como a da Pinacoteca; no texto anterior só passei por elas meio por alto, até pelo tanto que havia para falar.
E a ideia que eu tinha era ir novamente à Bienal. Marlos, um amigo fotógrafo, trocava mensagens comigo durante a visita que fizemos e falava que, apesar de já ter ido, queria ir mais vezes. Valeria a pena pela magnitude da exposição.
Dei-lhe razão, pelo pouco que havia visto até então, e sabendo que haveria muito mais ainda para conhecer e entender.
Em anos anteriores talvez não fizesse isso: iria sempre protelar as visitas seguintes, priorizar outras coisas, viver a vida no sol - e acabaria deixando de lado. Afinal, logo mais haveria outra. Sempre haveria.
A pandemia trouxe outra percepção. Junto com o bem-vindo silêncio, houve também uma sensação de perda. Perda de tudo aquilo que dávamos como certo e perene. Por exemplo, a certeza de que sempre haveria uma exposição para ir, um show, um cinema. Havia tantas escolhas que, muitas vezes, o hedonismo falava mais alto: como abrir mão da mesa de bar numa tarde de sol e se meter no prédio da Bienal por horas?
Já fiquei decepcionado em exposições passadas, já saí sem que as obras despertassem qualquer emoção. É do jogo. Mas essa Bienal, talvez por tudo o que a cerca, trouxe outra relação. Trouxe uma vontade de estar lá por horas, alheio ao que acontece fora, longe naquele universo tão diferente que é a vida no meio da pandemia. E não só pelo Covid-19: conta muito, também, esse processo de auto-destruição daquilo que já foi um país.
Por isso, ir de novo à Bienal virou uma prioridade. Reviver, tantas vezes quantas fossem possíveis, as subidas e descidas por rampas. Ver de novo obras já vistas. Descobrir novos detalhes. Até mesmo andar correndo pelo prédio da Bienal, como em Bande à part, de Godard, e ver tudo o que há de importante, interessante ou simplesmente aleatório em tempo recorde. Ou ver o que é sublime e, também, o que você pensa que é picaretagem, mas olha em volta para ver se alguém mais pensou a mesma coisa - ou se está fingindo tão bem quanto você que aquilo é legal.
A Bienal de Artes abriu múltiplas avenidas para mim. Poderia falar de muitas coisas, fazer muitas relações, relembrar outras exposições…ou contar anedotas bizarras.
Como a vez, anos atrás, em que um amigo apareceu transtornado, na faculdade, que era ali na Vila Mariana, perto do Parque do Ibirapuera. Do alto de seus dois metros, os olhos arregalados denunciavam sua angústia mental. Assim que se acalmou e sentou à mesa com todos os outros que ficamos bebendo cerveja depois da aula, em plena quarta feira, ele contou o que houve:
- Gente, vocês não acreditam! Acho que eu destruí uma obra!
Olhamos para ele entre a névoa, esperando o restante da piada. Que não veio.
- Sério, eu tava lá andando, vendo a Bienal, e aí chutei alguma coisa. E era de uma obra que tava no chão.
O riso dele era nervoso; mas o remorso, talvez, fazia parecer que ele zombava do ocorrido. Stress pós-traumático?
-Aí olhei para os lados, eu estava sozinho, ninguém tinha visto que eu chutei a obra. Aí vi umas coisas no chão, botei de novo no lugar. Ou sei lá, onde eu achava que era o lugar.
Deu uma risada de novo. E olhou para todos, preocupado.
-Será que fiz certo? Mas sei lá, tinha uma marcação no chão, acho que fiz, né?
Alguém serviu uma cerveja para ele. Acomodou-se, desajeitado, na cadeira de plástico; passaram a ponta para ele e fumou, agora mais calmo. Sem que os outros vissem, ele deu um riso estranho para si mesmo e ficou em silêncio.
Primeiro pensei que ele talvez estivesse aliviado, por ninguém ali ter censurado essa distração iconoclasta. Ou, ainda, talvez estivesse feliz por ter se safado, já que ninguém viu o ocorrido e os milhões do seguro não foram acionados. Também não foi imobilizado por seguranças e apresentado com algemas num programa sensacionalista, como integrante de um grupo anarquista que destruía obras de arte como forma de protesto. “Esse vai para o xilindró, não vai, Capitão Wellington?” imagino o apresentador do vespertino programa policial, com seu jeito de cidadão de bem, em meio a perdigotos; e o agente da lei, bovinamente orgulhoso, responderia “Positivo, Alborghetti, isso aí é perturbação da ordem pública e dano patrimonial, tá ok?”
Ou talvez o risinho indicasse, naquele momento, que se sentia pronto a repetir o feito. Que monstro teria sido criado nessa tarde, em que ele experimentou essa impunidade que se apresentava de forma tão banal? De quantas mais poderia se safar, e continuar seu vandalismo como forma de intervenção artística, sem ser incomodado? O objeto que havia chutado longe ele devolveu, malandramente, ao que poderia ser seu lugar - mas, e se não fosse ali? Ou se fosse de cabeça para baixo? Ou, então, se nem fizesse parte da obra? Seria uma intervenção na obra de algum artista islandês, que havia levado anos para posicionar os pedaços de pedras vulcânicas milimetricamente no espaço delimitado; e o nórdico pedante estaria na mesma hora em Reykjavík, tomando vodka e fazendo sei lá o que islandeses fazem, sem saber que, a milhares de quilômetros, sua obra passara a ter a co-autoria de um estudante do primeiro ano de faculdade. Sim, poderia fazer mais. E pior. Era isso que o riso indicava, concluí naquele momento.
Tentei esquecer o risinho maníaco que pensei ter visto e, naquela mesa abarrotada de garrafas e mais garrafas de cerveja, foquei minha atenção em algum outro assunto. Mas, de vez em quando, ainda desviava o olhar para ver se o riso zombeteiro continuava.
Agora posso voltar dessa digressão absolutamente sem sentido e falar daquilo que eu deveria falar, de fato. Retornar dessa ladeira por onde desci em disparada é difícil. Mas, ofegante, volto ao caminho em que estava.
Procrastinar não ajuda em nada. E junto todas as minhas forças para trilhar de novo as proverbiais avenidas de pensamento que a Bienal havia aberto para mim.
1.
À medida que o táxi se aproximava do Parque do Ibirapuera, dava para ver as duas serpentes coloridas se mexendo no lago lentamente, com o movimento da água e o vento.
Isso me faz lembrar da vez em qu
Chega. Nada de procrastinação a partir de agora. Foco.
As serpentes faziam parte da 34ª Bienal Internacional de São Paulo, que era o que tínhamos ido ver numa manhã chuvosa.
“Estão prontas para dar um bote em Pedro Álvares Cabral”, disse Jaider Esbell, artista indígena contemporâneo e criador da obra denominada Entidades. Melhor, impossível - quem sabe arrastassem para o lago aquela estátua de Cabral, que é uma ocupação ilegal do Parque do Ibirapuera. Foi colocada ali em 1988, no final do governo Jânio Quadros. Tão ilegal, aliás, quanto a Assembleia Legislativa, logo do outro lado da rua, inaugurada 20 anos antes. Ambas em espaços que deveriam ser do Parque e, portanto, só poderiam estar ali se constassem do projeto original de Oscar Niemeyer, conforme ficou definido em 1954.
Dentro do prédio da Bienal fica claro o papel central que a obra de Jaider Esbell tem: nitidamente é um dos eixos da exposição - que tem uma forte valorização de artistas indígenas. A participação de Esbell se dá tanto com obras, na Bienal ou na instalação das serpentes do lago, como na curadoria da Mostra paralela do MAM, apenas com artistas indígenas.
Andamos pelos quilômetros de exposição até, finalmente, chegar ao terceiro andar, onde se encontra Carta ao Velho Mundo, uma obra síntese da própria Bienal. Nela, Esbell apresenta um livro, Galeria Delta da Pintura Universal, adquirido em um sebo e diligentemente reinterpretado pelo artista com pinturas e desenhos sobre as obras e textos dessa visão “oficial” sobre a arte. É tanto um comentário sobre o que é a tal da Pintura Universal (que no livro, sem surpresa alguma, só abarca a pintura de alguns países da Europa Ocidental) e também sobre temas como Eurocentrismo x Universalismo, alteridade e cosmogonia. (sem links aqui, procure você mesmo saber o que significa tudo isso).
Fiz um resumo rápido. E, como sempre falo, alguém mais esperto do que eu tem muito mais a falar sobre a obra de Jaider Esbell e com muito mais propriedade. O que me importa aqui é entender, de forma leiga, que o eixo conceitual de toda a Bienal tem bastante a ver com essa obra.
Saí do prédio de Niemeyer ao encontro da leve garoa no gramado do parque, ainda pensando em como essa Bienal era exatamente o que eu precisava: um reencontro com a arte, com a cidade, com um lugar icônico de São Paulo. E, mais do que isso, um encontro com perspectivas diferentes.
Pensei em voltar mais vezes. Por um lado, para ver as obras que não vi com tanto cuidado ou rever o que gostei; por outro, para estar novamente num lugar que sempre foi importante para mim em São Paulo e que sempre me fez pensar em como há rota de fuga dos diferentes becos sem-saída que encontramos constantemente nesse país.
Isso até 2 de novembro, quando vi a notícia de que justamente o autor de uma das obras que mais me marcaram na Bienal havia sido encontrado morto em sua casa. Ainda não foi divulgada a causa da morte de Jaider Esbell, de 41 anos, poucos dias após ter obras suas compradas para o acervo do Centre Pompidou, de Paris - a própria Carta ao Velho Mundo entre elas. De repente, esse reencontro com a cidade, que havia sido tão leve e necessário, tornou-se um pouco amargo.
2.
Na Pinacoteca do Estado, outra mostra artística forma uma simetria com a Bienal e a morte de Esbell. A Enciclopédia Negra, trabalho gigante de Flavio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz, foi apresentada em exposição, junto ao lançamento do livro. São centenas de biografias de pessoas negras (muitas escravizadas) e cujas histórias, em sua maioria, foram apagadas com o tempo. Muitos têm apenas o primeiro nome (Daniel, Caetana, Rosa…) ou há registros de diferentes nomes e apelidos; outros, mais conhecidos (tem até Mussum e Simonal nos verbetes), são, mesmo assim, “esquecidos” após décadas de suas mortes. A exposição traz boas interpretações, por artistas negros, de alguns dos biografados.
Dentre as inúmeras biografias, uma que está apenas no livro me chamou a atenção: Joel Rufino dos Santos. O escritor e professor não foi representado pictoricamente na exposição da Pinacoteca, mas aparece, não por coincidência, com uma das obras importantes e inusitadas da Bienal.
Em 1972, Rufino dos Santos era professor e integrava a equipe que escrevia a coleção História Nova do Brasil, coleção de livros didáticos que recontava a história do Brasil e tentava corrigir manipulações, injustiças e apagamentos propositais. Ao mesmo tempo em que se buscava o fim do analfabetismo e a democratização do ensino, Rufino dos Santos ensinava, como depois definiu para seu filho, “muito mais do que o Regime permitia que se ensinasse". Por conta disso foi preso, torturado e enclausurado por 2 anos no Presídio do Hipódromo, em São Paulo. Foi lá que escreveu as cartas expostas na Bienal: eram para seu filho, então com 8 anos, com o objetivo de manter alguma proximidade e evitar o apagamento da memória que o menino Nelson teria do pai.
As cartas, ferozmente censuradas e editadas pelo regime militar autoritário, são emocionantes: com bons desenhos ultracoloridos ao longo do texto, Rufino dos Santos explica muito da Cultura Afro-brasileira, ensina ao filho história do Brasil, fala sobre assuntos prosaicos do dia-a-dia no cárcere. A intenção é estar presente de alguma forma na vida do filho, de quem foi separado pelos gorilas fardados da repressão. Com maestria, escapa da censura - talvez os burocráticos censores sequer entendessem alguns conceitos e metáforas que Rufino dos Santos incluía em suas cartas, junto a descrições da vida cotidiana.
Preso sem acusação formal, apenas por conta de suas aulas e de seus escritos, Joel Rufino dos Santos não foi apagado pelo regime autoritário. Durante anos foi isso o que tentaram: foi cassado de seus cargos de professor, ficou dois anos preso sem direito a habeas corpus e sem acusação formal e só teve os direitos políticos restituídos em 1979. Suas cartas, além de evitar o apagamento das memórias de si próprio para o filho, também eram uma forma de evitar que seu apagamento pelo Estado fosse completo.
Rufino dos Santos morreu em 2015, não sem antes aparecer nos jornais, dias antes da morte, pela última vez; mas não como subversivo procurado pelo regime militar - coerente com sua história, subverteu a “ordem” ao evitar o linchamento de um jovem negro acusado de furto, em Copacabana.
3.
Esbell, nascido na terra indígena da Reserva Raposa do Sol, conviveu a vida toda com violência e ameaças, por conta da demarcação da reserva que nunca foi aceita e tem sido constantemente sabotada - processo que se acelerou no governo atual, que estimula o vandalismo contra os direitos indígenas. Sua avó morreu há poucos meses de Covid, mais uma vítima do descaso genocida governamental.
A obra de Jaider Esbell, talvez, impeça que sua história seja apagada, como aconteceu antes com muitos indígenas e negros. O resgate das exposições da Bienal e da Pinacoteca pode ajudar a reconstituir as histórias que existiam antes de apagamentos propositais, realizados pela versão vigente da História, e que agora podem ser revertidos.
Mas, seja qual for a causa da morte de Esbell, é emblemático que tenha ocorrido exatamente agora: em um período sombrio da História brasileira, no qual caiu o tênue verniz que mascarou, por décadas, a ideologia escolhida em 2018.
Estão de volta ao poder os mesmos que perseguiram Joel Rufino dos Santos, que destruíram povos indígenas por décadas, que promoveram o apagamento histórico de nomes e causas. Mas agora não há cortina de fumaça de tanques na rua: os genocidas estão no poder pelo voto. Entre o apocalipse e a utopia1, o Brasil escolheu o apocalipse.
As obras que mais me tocaram na Bienal são, ao final, de duas pessoas lutando contra o apagamento e buscando novas formas de compreensão do mundo: Esbell por meio de sua arte, Rufino dos Santos por meio do ensino. Ambos democráticos e pluralistas, ambos recuperando a história apagada.
A morte de Jaider Esbell trouxe um desalento grande. Ironicamente, aconteceu durante a Bienal. Mas pensei depois que não há mais como apagar as histórias dissonantes, por mais que se tente. Por isso, vou voltar mais vezes à Bienal. Quero ver de novo artistas que vi rapidamente, mas quero também passar mais tempo vendo em todos os detalhes as obras de Esbell, que sairão daqui para o Pompidou; quero ler de novo as cartas de Joel Rufino dos Santos para seu filho e aprender também.
É o que é urgente fazer agora.
vai chegar.
O tema da Bienal vem do verso do amazonense Thiago de Mello:
faz escuro, mas eu canto /
porque a manhã vai chegar
Criado na década de 1960, esse verso foi entendido, por um lado, como uma esperança por reforma agrária e pautas progressistas; por outro, como uma resistência sussurrante e esperançosa contra o autoritarismo.
Fazia sentido na época, faz sentido hoje. Cada vez mais.
Em algum momento, vai chegar.
“A esperança é universal, as desigualdades sociais são universais também (...). Estamos num momento em que o apocalipse está ganhando da utopia. Faz tempo que fiz a opção: entre o apocalipse e a utopia, eu fico com a utopia”, afirma o escritor Thiago de Mello, que fez o verso do tema que norteia a 34ª Bienal.