Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
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Intro.
Barcelona me recebeu, mais uma vez, com céu azul e sol forte.
O festival que me levou de novo até lá, no ano seguinte ao que conheci a cidade, chama Primavera Sound - mas acontece praticamente no verão. Melhor época: o calor é forte, mas não tanto quanto em julho-agosto. Ainda é antes da alta temporada. A cidade fica mais cheia nessa época por conta do festival e, mesmo assim, ainda há espaço para outros eventos.
Se da outra vez eu havia ficado no Parc de la Ciutadella, lugar estratégico para ir ao festival de forma rápida, agora que conhecia melhor a cidade já arrisquei outra região. Também foi uma decisão econômica: ficar em um quarto de AirBnB e não em um apartamento inteiro. Paula não iria comigo dessa vez, já que viajaria no mês seguinte com os irmãos para uma última viagem da família a Paris com o pai - ele havia estudado lá décadas antes.
E com a vantagem de garantir a possibilidade de não me trancar para fora do apartamento, como aconteceu no ano anterior.
Já me locomovia bem pela cidade e o lugar que aluguei era exatamente o que eu esperava ser. Já contei aqui: era um antigo prédio que, fiquei sabendo depois, havia sido residência de alguma família nobre em séculos passados e era, em 2016, moradia para várias famílias em apartamentos amplos e razoavelmente baratos, em uma região central da cidade.
Minha hostess do AirBnB, Meriem, era marroquina e estudava e trabalhava em Barcelona. Esperou-me na frente do Mercat Boquería, ponto de referência combinado. Eu não imaginava que fosse tão perto - era literalmente colado ao prédio.
Nos dias seguintes, ouvia o movimento do mercado logo abaixo da minha janela do primeiro andar. Não era um grande problema: sempre ficava na rua até altas horas da madrugada e, quando chegava em casa para dormir, já não importava muito se estava rolando a montagem de uma das barracas ou se era um festival de Flamenco.
1.
Mal cheguei e já saí para andar pela cidade. Dois passos e estava na Rambla principal de Barcelona. Altamente turística durante o dia, com o mercado bombando até o anoitecer, vira outra coisa durante a noite. Africanos, sudacas1, mexicanos, árabes, ingleses bêbados, famílias inteiras de espanhóis - não há lugar que reúna mais gente diferente em toda a cidade.
Nas praças do Bairro Gótico, faixas de boas vindas aos refugiados da Guerra na Síria - e, na verdade, a todos os refugiados que buscavam a Espanha como um porto seguro.
Não foi sempre assim: a Inquisição castellana sempre foi uma das mais duras do mundo, antissemitismo rolava como se já fosse século XX e a bronca dos ibéricos com mulçumanos vem de longo tempo, desde a chamada Reconquista, guerra que durou séculos e que terminou com a queda da Andaluzia, último bastião mulçumano/africano/árabe em solo ibérico, já em 1492. Sergio Buarque de Hollanda falava que essa treta toda é que levou o espírito cruzadista dos espanhóis para a América - e quem sofreu, ao final, foi quem estava por esses lados aqui, quando eles chegaram.
Barcelona é uma cidade que tem toda a cara de ser pluralista e tem um histórico antifascista que vem dos tempos da Guerra Civil Espanhola. Como Antony Beevor2 conta, foram os anarquistas e comunistas radicais que seguraram a cidade quando o golpe de Franco ameaçou derrubar a República Espanhola democraticamente eleita. Nas ruas de Barcelona, após a reação popular contra o golpe fascista dado por militares, imperava a liberdade total: assembleias populares decidiam os rumos da cidade, dividiam-se mantimentos igualmente e mulheres saíam em patrulhas em pé de igualdade com os homens, nas milícias populares formadas contra o golpe fascista. Beevor narra como açougueiros saíram às ruas para combater fascistas, no começo da Guerra, ainda usando os aventais sujos de sangue - o que devia causar horrores para a moral das tropas de Franco.
No prédio ao lado do Boquería em que morei por aqueles dez dias, conheci a família que morava em frente. Eram marroquinos e o pai era um bonachão que usava Fez, o tradicional chapéu do país e eu nunca soube o que ele fazia da vida. Ele me deu dicas da região - incluindo bares, apesar de mulçumano e, supostamente, não consumir nada de álcool. Aparentemente se davam bem com Meriem, que me alugava o quarto do AirBnB e que não era religiosa.
Aprendi na viagem anterior que em Barcelona só se usa Uber ou Táxi em último caso - tudo dá para fazer com transporte público (eu, que não tenho carro mesmo morando em São Paulo, agradeço pela graça alcançada). O metrô era perto e fácil de ir para muitos lugares. Estando nas Ramblas era fácil se locomover para todo lado. No começo, fiquei preocupado se era uma região perigosa - mas na primeira madrugada que voltei a pé já percebi que era tranquilo. Mas, paulista que sou, a cada madrugada chegava ao prédio por um lado diferente ou fazia mudanças inesperadas no trajeto, para confundir quem por acaso estivesse me seguindo.
Pobre paulista.
2.
Fui ao 24 Tapas de sempre: aquele tipo de bar que que sempre vai estar lá para você. E também passei de novo pelo restaurante em que várias vezes almocei e jantei na vez anterior e que não lembro o nome, mas era perto do meu apartamento da época.
Passei pelo Bodega 1900, de Albert Adrià, pela segunda vez, e continuava bom - e a brasileira que trabalhava lá e conheci no ano anterior lembrou de mim. Em 2015 ela contou que nos últimos anos pensava em voltar ao Brasil, mas que havia começado a ter dúvidas. No ano seguinte ela tinha certeza que não voltaria mais.
E fui ao Shunka, restaurante japonês em uma ruela atrás de uma igreja, bem low-profile e com portinha escondida, com uns peixes super frescos e uns cortes que nunca comi melhores. Altamente recomendado: os irmãos Adrià contaram, numa entrevista, que a inspiração quando começaram na culinária era o discreto chef Hideki Matsuhisa, do Shunka.
O Dos Palillos, restaurante asiático do hotel Casa Camper, também era outro ponto alto, mas por outros motivos além da ótima comida e do clima de boteco: era pertinho do Primavera Al Raval, onde aconteciam os shows gratuitos do Primavera Sound, no meio da cidade, e era só chegar. Fui ver shows durante a tarde e a noite toda, voltei para comer algo, fui ver shows, voltei para beber algo, fui ver shows, voltei para comer de novo, fui ver shows, voltei, fui v
3.
No metrô, uma senhorinha de uns 70 anos carregava duas sacolas que pareciam bem pesadas. Andava um pouco, colocava as sacolas no chão, esperava, andava de novo. Eu vinha por um corredor longo e fui vendo todas as paradas que ela fazia, exausta. Todo mundo passava como se nada acontecesse e sequer olhavam para ela. Peguei uma das sacolas, que estava bem pesada, e fui com ela até a plataforma. Contou que era de Maracaibo, Venezuela. Uma sudaca. Lenço na cabeça, roupas velhas e pouco usuais, pele escura. Apesar de cansada, sorriu o tempo todo, contando que morava em Barcelona há mais de 40 anos. Que tinha sido despejada de onde morava e estava indo encontrar um parente num bairro distante que não entendi qual era. Ajudei-a a colocar as sacolas no metrô - ela perguntou se eu não iria entrar, falei que iria esperar um pouco antes de ir. Na verdade, meu trem era na outra plataforma, estávamos na Plaça de Catalunya, hub de várias linhas. Acenou de dentro do trem. Esperei a composição sair, segui caminho para a outra plataforma.
4.
Fui a uma loja de vinis, Discos Paradiso. Uma loja peculiar: não conheço 80% do acervo. Quanto aos outros 20%, não faço a mínima ideia do que sejam.
Olhava os discos nas gôndolas que davam a volta na pequena loja do Raval. No balcão, o vendedor fazia cara de que aquele white label que estava na gôndola à minha frente era algo a se considerar. Já o single de 7 polegadas que eu pegava em mãos e tinha uma marca de caneta na capa era motivo para ele fazer um esgar de desprezo e me dava a compulsão de deixar de lado, mesmo que fosse uma edição limitada. Estava com minha camiseta da turnê de Patti Smith do ano anterior para os 40 anos de Horses, seu disco de estreia. Mas ali alguém acharia isso cool?
Perguntei de um disco de Sly and Robbie que encontrei e o balconista falou “esse aí é pirata, a qualidade de som não é muito boa. Mas vale, se não encontra o original", meio desinteressado. Fiquei na minha.
Voltei diligentemente a olhar os milhares de discos durante a preguiçosa tarde barcelonesa, esforçando-me para avaliar se o disco valia de fato o selinho dourado, preto, prateado ou verde - selinhos, bem entendido, são aquelas bolinhas adesivas que, quando você pergunta ao balconista, parece que ele inventou na hora o preço e, estranhamente, sempre para mais do que vale.
Ao meu lado, abaixado, um gringo olhava os caixotes embaixo das gôndolas. Olhava discos e mais discos, tirava um ou outro do caixote. Olhei uma hora que ele levantou, cansado de estar agachado nos caixotes, e trouxeram outro caixote para que ele sentasse para continuar em sua busca.
Era James Murphy, do LCD Soundsystem.
Pensei se deveria pedir para tirar uma selfie com ele. Um dos motivos para eu ter comprado o ingresso para o festival desse ano era a volta do LCD Soundsystem, que eu havia visto na "turnê de despedida", 5 anos antes.
Fiquei de lado, disfarçadamente olhando para o que esse garimpeiro discográfico procurava. Mas eu estava lá.
I'm losing my edge to the Internet seekers who can tell me every member of every good group from 1962 to 1978.
I'm losing my edge.Losing my edge, LCD Soundsystem, 2005
E aí Murphy pega um disco de Roberto Carlos. Uma cópia com a capa meio zoada, bem anos 1970, que eu não lembro exatamente que disco é, mas que eu reconheço da caixa de CDs que eu dei para minha mãe, grande fã do Roberto e que viu shows dele em todas as décadas desde os anos 1960, menos nos 2020.
Olho para ele disfarçadamente enquanto ele fixa o olhar na ficha técnica da contracapa. Puxa o disco de dentro da capa de papelão mole, olha o selo, olha o disco no contraluz procurando riscos. A capa está meio gasta, mas o disco parece bom. Fico procurando lentamente nas gôndolas algo que me interesse, enquanto Murphy continua abaixado. Um olho no 7 polegadas, outro no Roberto.
James Murphy coloca o disco do Roberto de volta no caixote.
Levanta-se, vai ao outro lado da loja. Para em frente a uns 12 polegadas de Detroit. Olha meio por cima, cumprimenta o pessoal da loja. Todos respondem imediatamente, mas tomando cuidado para não demonstrar muita empolgação. Ele sai.
Achei um da banda alemã Neu!, o quarto LP, de 1986. Vou até o caixa, confiante. Ele fala algo em catalão que não entendo. Repete em inglês, entediado: “Você viu que é reimpressão, não?”. Confirmo que sim. Pago e saio da loja, para mais andanças pelo labirinto de ruas do Raval.
5.
Dois dias depois, no Parc del Fòrum, LCD Soundsystem é a última banda a se apresentar na noite. Público aglomerado em frente ao palco. Já era mais de uma da manhã.
Dance Yrself Clean começa a tocar. Aquele começo baixinho, num crescendo. Tenho convicção, mas não provas, de que foi surrupiado de Anunciação.
Olho para trás. Pelo menos umas 30 ou 40 mil pessoas em frente ao palco, eu bem próximo.
E explode, com milhares de pessoas pulando ao mesmo tempo num pogo alucinado quando James Murphy canta "Don't you want for me to wake up?"
E não para mais. Uma hora e meia depois, todos exaustos e sem saber para onde ir. Fiquei no meio da pista ainda pensando se pegaria ainda algum show (tem DJs até as 5h) ou se já era hora de ir embora.
Alguma boa alma colocou o show inteiro nesse link aqui, ó:
Confira comigo no replay se estou mentindo.
6.
No último dia de música, saí o mais cedo possível - já meio dia - para pegar os shows no Primavera Al Raval, os shows gratuitos e muito bons no centro da cidade. Tinha os preferidos da casa, Mudhoney, de quem já vi 9 shows na vida.
Café da manhã com vermut e jamón na Xarcuteria La Pineda. Viro uma esquina para pegar a avenida e dou de cara com uma manifestação com bandeiras listradas em vermelho e amarelo. Palavras de ordem em catalão, gente aplaudindo e gritando das janelas dos simpáticos prédios.
Era grauzinho a mais na temperatura da grande panela de pressão que é o movimento pela independência da Catalunha. O referendo aconteceria no ano seguinte, 2017, com ampla vitória da proposta republicana e separatista - 92% dos votos, para ser exato. Logo depois, Carles Puigdemont, governador da Catalunha, promulgou a independência e a formação da república catalã. O governo central acabou com a festa, interveio na província e botou todo mundo em cana. Vi na internet as batalhas campais na cidade após a intervenção: reconheci o Parc de La Ciutadella, onde estive por tantas vezes, no meio de tiro, porrada e bomba.
7.
Último dia em Barcelona, embarcaria para Amsterdã à tarde. Acordei com muito tempo de sobra. Meriem, minha hostess, estava de folga nesse dia e conversamos um pouco na sala, enquanto ela passava roupa, antes de eu sair para uma última volta pela cidade.
Desci ao Boquería, comprei um bom jamón já cortado e embalado a vácuo que dava para levar na mala, despedi-me do vendedor pensando se deveria ter comprado mais ou se era o suficiente, segui até uma loja de azeites do lado de fora do Mercado, mas desisti de comprar algo. Passei por um sebo das redondezas onde eu já havia entrado antes e caminhei de volta ao apartamento, para pegar minha mala e chegar com calma no aeroporto.
Despedi-me de Meriem, peguei um táxi perto do Boquería. O taxista era brasileiro, morava há anos em Barcelona e tinha um Bulldog francês. Ele contou como o pobre bichinho do focinho curto pegou uma forma canina de leishmaniose e ele se endividou para salvar o bulldog com um tratamento veterinário caríssimo, num país que tem medicina gratuita para cidadãos e residentes. Com lágrimas nos olhos, ele falou “mas tem que ser assim, né? Ele é parte da nossa família".
Cheguei com tempo, o aeroporto é moderno e fácil de se locomover. Havia pagado com dinheiro a corrida, fui arrumar a carteira e percebo que faltava o cartão de crédito. O único que eu havia levado na viagem. O outro cartão, dias antes de embarcar, havia sido cancelado pelo banco por suspeita de fraude.
Reproduzi mentalmente, de trás para frente, todo esse trajeto do ítem 7 aqui desse texto. Onde poderia ter deixado o cartão? Esqueci no apartamento? Perdi no dia anterior na Sala Apolo depois de muita bebedeira? Ou foi antes ainda? Caiu na rua?
Apenas cancelar o cartão não adiantaria; ainda teria mais uma semana em Amsterdã e só o dinheiro vivo não daria. Tentei lembrar onde poderia ter deixado o cartão. Como um filme, lembrei da loja do Mercat Boquería, o vendedor me entregando a sacola com o jamón, eu colocando o cartão na máquina e ele atendendo o telefone ao mesmo tempo, puxando o meu comprovante e eu falando que não precisava e já saindo da loja. E não lembrava de pegar o cartão de volta. Era ali.
Olhei para o relógio. Voltar era arriscado.
Lembrei de Meriem passando roupa à luz da janela. Mandei mensagem para ela. Estava de folga o dia todo. Expliquei tudo, ela desceu até o mercado. Eu não lembrava o nome da banca onde havia comprado, mas expliquei mais ou menos onde era. Fiquei esperando.
“Sim, está aqui. Posso levar aí para você, pego um táxi".
Foi a mensagem que Meriem me mandou enquanto eu entrava na fila para despachar a bagagem e torcer para que ela chegasse logo. Despachei e esperei na entrada do embarque. Contava os minutos. Olhava para o painel, voo estava no horário. Em algum momento, eu teria de entrar ou perderia o embarque, já estava no limite.
Meriem apareceu bem nessa hora.
8.
Cheguei aliviado ao portão de embarque. Não vi mais o painel de voos, segui para o portão onde deveria embarcar e vi a fila de passageiros se alongando pelo salão. Respirei, finalmente, e sentei em uma das poltronas livres. Olhei para o painel, apareceu como voo atrasado, aguardando confirmação.
Menos mal, pensei. Depois de tudo o que passara nos minutos anteriores, um atraso como esse seria o menor dos problemas. Mais uma vez, ir embora de Barcelona trazia um perrengue que não havia acontecido nos outros dias.
Foi uma espera de quase uma hora. Quando finalmente pudemos embarcar, o senhor à minha frente perguntou o motivo do atraso. Simpático e completamente transparente na explicação, o comissário de bordo contou que os voos entre Barcelona e Amsterdã vão e voltam em intervalos de tempo pequenos - tipo uma ponte aérea - e o avião que nos levaria ficou retido em Amsterdã por mais tempo. Alguém havia deixado um pacote no compartimento de bagagem. Na paranoia com o Estado Islâmico, chamaram a segurança. Esquadrão antibombas, cachorros, a porra toda. Após checagens minuciosas, tudo liberado e o pacote encontrado não oferecia perigo.
O motivo do atraso?
Alguém havia esquecido uma perna de jamón ibérico, daquelas gigantes.