Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Assine Locked Groove. Assine Locked Groove. Assine Locked Groove. Caso ainda não seja assinante, recomendo: assine Locked Groove. Ou, se você já é assinante, pode sempre passar para a versão paga, com direito a todo o proibidão. Quem já assina o pago ainda não ganhou o que merece, mas vou fazer o possível para recompensar em 2022. 😉
Intro.
Minha mala estava pronta antes.
Eu já estava acostumado: Paula sempre leva mais tempo para fazer malas.
E são uma obra de arte. Tudo cabe, tudo o que tem que ser dobrado está feito de forma meticulosa, o que não deve ser dobrado está impecavelmente estendido e sem amassado algum. Meias dentro de sapatos - aprendi que isso economiza espaço. Os cantos são importantes: peças de roupa menores cuidadosamente colocadas nos nichos que sobram nas reentrâncias da mala rígida.
Zip Woman, eu a chamo.
Piada interna de comunicação, mas hoje muita gente tem essa referência: um arquivo .zip provê uma compactação absurda e muitos Megabytes são comprimidos como mágica em uma ponta da transmissão, para serem descompactados quando chegam à outra. É presente na vida de muita gente hoje em dia, mas quando arquivos digitais gigantes são a norma - como acontece em qualquer redação/agência etc - torna-se essencial.
O apartamento era pequeno, em um predinho simpático de frente para o Parc de La Ciutadella. Praticamente uma quitinete: um quarto e sala com um banheiro e uma cozinha americana aberta. Havia sido minha casa por mais de uma semana, antes de Paula chegar. O último final de semana em Barcelona passamos juntos ali.
Uma pequena varanda se abria para a ruela embaixo. Dali, dava para ver a loja de conveniência de um marroquino de onde Paula pegou o wi-fi para me ligar, quando chegou. Uns metros para a frente fica uma associação islâmica que, pelo que entendi, funciona como um centro de ajuda e reunião para imigrantes islâmicos, em sua maioria religiosos.
Uma madrugada, fiquei olhando pela janela entreaberta enquanto um homem de túnica branca encostava a testa na porta, do lado de fora, na rua escura e vazia, murmurando alguma coisa que não entendi se era uma reza ou uma lamentação. Na pequena praça logo adiante, um restaurante onde tomei café algumas vezes nos dias anteriores ou comi algo antes de ir aos shows do Primavera Sound, que aconteceriam a alguns quilômetros dali.
A região era boa e eu sentiria falta daqueles dias de férias, na primavera barcelonense, andando pelas ruas da cidade antiga e cruzando o parque lotado no final da tarde, com os pais que buscavam os filhos nas escolas e passavam por ali na volta para aproveitar a luz do final do dia. Restaurantes bons, ruelas com descobertas a cada curva, a loja flagship da Norma Editorial (editora de quadrinhos) a poucas quadras, uma estação de metrô pertinho, El Born logo ali, virando a esquina. Boa região para se ficar.
Estávamos com bastante tempo para pegar o trem. Havíamos comprado as passagens para Perpignan, que fica logo depois da fronteira com a França. Era lá que pegaríamos o carro que alugamos para ir até Paris em alguns dias, via Vale do Loire, com paradas tranquilas. Depois, me arrependi de não ter ficado mais tempo em Perpignan. Pelo menos, para visitar a loja de discos dos Limiñanas, grande banda de garage rock que é da cidade.
Fechamos a última mala, juntamos tudo. Paula chamou o pequeno elevador do prédio de 3 andares. Eu dei uma última olhada por todo o apartamento. Não havíamos esquecido nada. Duas garrafas de vinho vazias desceriam com a gente para o lixo de recicláveis da entrada. O combinado com o proprietário era deixar a chave em cima da mesa e bater a porta. Ele depois passaria à tarde para pegá-las e ver se estava tudo em ordem no apartamento.
Foi o que fiz. Deixei as chaves em cima da mesa, olhei uma última vez para o apartamento. Bati a porta. Na hora, uma onda elétrica passou por todo o meu corpo e achei que não deveria ter feito isso.
Bobagem. O que poderia acontecer?
Descemos. O apartamento trancado com as chaves dentro. Chegamos até a porta. Tempo suficiente para pegar o trem sem pressa. Praticamente fazendo embaixadinha no meio de campo e tocando a bola para o lado para partir para o abraço ao final do tempo regulamentar.
Paula puxava uma mala com a mão, a outra estava na maçaneta da porta que dava para a rua, a mesma que eu havia visto que ficava destrancada o tempo todo, mesmo nas madrugadas em que cheguei do Primavera Sound com a chave já à mão e descobri que não precisava.
Girou a maçaneta. Nada. Tentou de novo. Larguei a mala que eu segurava. Tentei.
Nada.
Como assim? Quem havia trancado? E por que justo nesse dia, depois de tantos dias em que ficava aberta direto?
Olhei para o relógio. O trem sairia às 12h. Eram 11h e poucos minutos. Girei de novo a maçaneta.
E de novo. E de novo. E de novo.
Nada de abrir.
1.
Rampa do Parc del Forum, quase dia, primeiras horas da manhã de sábado. Alguns passos até a avenida, Tram que passa pelo canteiro central ainda no ponto. Poucos passageiros àquela hora: a maior parte é de sobreviventes que ficaram até o final do segundo dia de shows. Trajeto rápido até o Parc de la Ciutadella, desci em frente ao Arc de Triomf e segui a pé preguiçosamente. A porta aberta do prédio, como sempre. Subi pelo pequeno elevador. Fechei as cortinas e deitei. Apaguei instantaneamente.
O telefone tocava, invadia o meu sono. Paula havia chegado - eu já estava há uma semana em Barcelona, ela viria me encontrar. Iríamos até Paris de carro, dois dias depois da chegada dela. Ela estava na loja de conveniência embaixo, onde pediu o wi-fi e ligou para mim.
Havíamos nos despedido no aeroporto, em São Paulo, dez dias antes. Trabalhávamos juntos e só conseguiriamos ter 10 dias de férias juntos - do sábado em que ela chegou a Barcelona, até a segunda feira em Paris em que ela embarcou para Berlim e eu voltei.
Paula me esperou para se despedir em São Paulo enquanto eu entrei na pequena fila de check-in da companhia aérea. No mesmo voo, um cara que parecia saído direto de um bar do Centro - camisa estampada, cabelo desgrenhado e ensebado, barba rala e bigode, calça skinny.
Na época, a noite do Centro de São Paulo era o que bombava - hoje, o hype parece já ter passado por Santa Cecília e agora se encaminha para Campos Elísios. Logo atrás correm construtoras e incorporadoras.
Ela conhecia esse cara. Já havia sentado em mesa de bar em grupos grandes em que ele estava também. E ele esteve ou não esteve em um aniversário que ela deu no antigo prédio - digo isso porque poderia tanto ser ele quanto algum outro clone desse exército de gente descolada que faz a alegria de pauteiros da Veja São Paulo. Ah, e toda vez que encontrava com Paula, apresentava-se novamente - um excêntrico e ensimesmado artista? Ou apenas a figura fantástica do amigo-do-amigo, que está sempre rondando por aí com quem é cool e aproveitando baladas e festas de outros?
Ouvi, logo atrás de mim, o diálogo que ele travava com a namorada, que estava arrumando as fivelas da bolsa que ele carregava a tiracolo: “Ei, que ótimo!” ele disse, com tom de voz condescendente, “descobrimos uma coisa que você faz melhor do que eu!”
Em Barcelona, reencontrei o cara no show da banda americana Replacements, acompanhado de outros 2 amigos brasileiros, todos devidamente vestidos da mesma forma. Bêbado, ele tentou entrar na rodinha de slam dance que alguns espanhóis haviam montado; com dois empurrões bem dados, nosso herói foi expulso da roda rapidinho e saiu de perto do palco.
A semana anterior ao Primavera Sound é cheia de eventos na cidade. Eu, que nunca havia estado lá, andei por parques ensolarados no calor do quase verão, por pérgulas que aliviavam o sol forte, por ruelas do Raval ou do Born que derrubavam a temperatura e eram sempre um refúgio seguro. Fui a museus, exposições - peguei uma sobre o Punk no CCCB, que mostrava até a mítica camiseta das Brigadas Vermelhas que Joe Strummer usava. Livrarias, restaurantes, bar no meio do dia, praças no meio de prédios antigos - nem precisava do festival para curtir a cidade e saber que iria voltar mais vezes.
Duas noites antes de Paula chegar, almocei em um restaurante bom, simpático e anônimo, vizinho ao apartamento em que estava. Já eram quase 6 da tarde, estava pronto para ir buscar a pulseira que dava acesso ao festival. Um senhor passou vendendo rosas, achou que eu estava acompanhado e falou "una sorpresa para tu novia". Expliquei que ela estava a milhares de quilômetros, em outro continente. Com um olhar triste, ele quis deixar a rosa mesmo sem cobrar nada. Agradeci, mas insisti tolamente para que ele não deixasse nenhuma. Magoado, seguiu caminho.
Paula chegou ao meio-dia de um sábado. Era o último dia do Primavera Sound e eu havia comprado um ingresso para ela. Algumas horas depois da chegada, saímos para comer e beber - Tapas 24, meu bar de tapas favorito de todos os tempos da última semana, era o destino. Alguns degraus abaixo do nível da rua, um bar apertado que fica numa rota turística, Passeig di Gràcia, perto da Casa Battló. No primeiro dia, fui a esse prédio famoso por conta de Gaudí e paguei 20 euros para entrar. Pelo preço, achei que deveria ter uma tourada lá dentro, ou pelo menos um espetáculo de Flamenco; mas nada.
O Tapas 24, apesar de estar num lugar turístico, é catalão em excesso; no menu, na aparente rispidez de quem serve no balcão, mas que depois você percebe que é só impressão inicial, e na bagunça generalizada de um bar a todo vapor durante todo o dia, sem parar. É praticamente um bar para locais que foi descoberto por estrangeiros; por isso mesmo, não faz muitas concessões. Ou quase nenhuma.
"Não peça isso, é para turistas” ouvi do meu vizinho de balcão, na primeira vez que fui, no começo da semana. Havia acabado de pedir La Bomba de la Barceloneta, uma ‘bola’ de batata com jamón dentro. Desfiz o pedido.
O senhor ao meu lado contou que era arquiteto, tinha escritório perto e almoçava ali quase todos os dias. Tomava um vinho branco, eu estava no vermut. Perguntou de onde eu era, e quando soube que era brasileiro, mudou para um português ibérico - havia trabalhado anos com arquitetos portugueses e conhecia São Paulo.
Apontou o que era o mais interessante no cardápio: Anxoves, Xipirons, Seitons. Completou, ainda, que eu estava convidado a dividir com ele uns tapas de Anchovas com tomate e manjericão. Antes que eu pudesse falar algo, chamou o balconista com um Si us plau e orientou-o a servir uma taça de vinho branco para mim, da garrafa devidamente gelada que ele havia pedido antes.
Conversamos durante o almoço e o arquiteto, mesmo tendo tomado 3/4 de garrafa de vinho, ainda trabalharia durante a tarde. Da mesma forma, todos os barcelonenses em volta estavam bebendo também. My kind of town, pensei. Falamos sobre arquitetura - nessa hora, saber quem era Alvaro Siza ajuda a manter a conversa - e ele me disse que considerava que Portugal virava as costas para a Europa, que poderia se integrar mais. Pensei imediatamente no Brasil, que não dá a mínima para os vizinhos hispânicos. Deve haver relação.
Com Paula, na terceira vez que fui no Tapas 24 em uma semana, eu já estava escolado no bar e podia até arriscar o si us plau e pedir o menu em catalão. Comemos, bebemos e, obviamente, as mais de 12 horas de viagem de Paula fizeram-se sentir.
Fui para o Parc Del Fórum ver os shows do último dia de Primavera Sound, Paula iria me encontrar depois de dormir um pouco. Antes que ela dormisse, expliquei exatamente onde pegar o metrô e descer na entrada do festival. Quando a encontrei, horas depois, ela falou “não fazia ideia alguma do que você havia falado de tanto sono que estava, então peguei um táxi".
Andamos pelo Parc Del Fórum entre shows, copos de vermut, taças de vinho e, principalmente, cones com cubinhos de jamón - a melhor invenção de comida para um festival de música. Em algum momento, passamos pelo hipster-Santa Cecilier-cineasta whatever que tínhamos visto na fila do voo. Ele, que estava fazendo massagem nos ombros de uma menina, nitidamente disfarçou; talvez tenha reconhecido finalmente alguém, quem poderia saber?
Na saída, procurávamos um jeito de voltar para casa. Como era o último dia, muita gente saía ao mesmo tempo, metrô estava lotado e o Tram já havia deixado de funcionar. Novamente, o onipresente hipster da camisa estampada estava no nosso caminho. Paula cutucou o ombro dele só de zoação e falou "oi, tudo bem?". O hipster levou um pequeno susto, ficou atônito olhando para nós. Seguimos caminho em busca de um táxi.
No dia seguinte, saímos cedo, mas já com o sol alto. No Parc de la Ciutadella, bem ali do lado, havia um show da banda The Ghost of a Saber Tooth Tiger.
Vimos as últimas músicas - antes, havíamos aproveitado o domingo de sol pela cidade. Era o último show e saímos bem pelo lado onde ficavam os trailers com os backstages. Na porta de um deles, o vocalista da banda tirava fotos e dava autógrafos, simpático. Chegamos bem na hora em que ele fazia menção de entrar no trailer - Paula hesitou e não falamos nada, passamos reto.
Depois, ela falou que havia ficado desconfortável em fazer o cara tirar a milésima foto com fãs no dia e, ainda, porque poderia parecer armação demais pela camiseta que ela estava usando: estampada com uma foto dos pais dele, em um evento pela paz, 45 anos antes.
O simpático vocalista da banda era Sean Lennon.
2.
Acordamos na segunda, depois de fazer toda a rota dos bares de Barcelona na noite de domingo. E tem muita coisa aberta - ficamos na rua até a Plaça Reial começar a ser lavada por funcionários da prefeitura com mangueiras acopladas a caminhões-tanque. Lá, deve ser o equivalente ao último cliente ir embora do Sujinho da Consolação.
Havia tempo de sobra para chegar até a estação onde pegaríamos o trem para Perpignan. Mas a porta para a rua não abria. E não havia interfone, porteiro, fantasma do comunismo, nada que pudesse nos ajudar por ali.
Paula tentou ligar para algum número que estava em uma placa no hall de entrada - talvez dos administradores do prédio? E teve a ideia de tentarmos que alguém dos outros apartamentos abrisse a porta para nós.
Subi as escadas, fui batendo nas portas. Nenhum tinha campainha. Os dois primeiros pareciam não ter ninguém - ou, se tinham, estavam dormindo profundamente. No terceiro apartamento, bati e ouvi um barulho dentro.
“Hola, ¿puede ayudarnos a abrir la puerta, por favor?"
“No habla español”, veio a resposta, voz de homem, com sotaque britânico.
Melhor. Nem eu. Mudei para o inglês.
Nada. O cara repetia para ligar para o número na plaquinha no hall de entrada. O mesmo para o qual Paula ligava, sem sucesso.
Tudo passou pela minha mente. Como fazer para comprar outra passagem de trem. Como alugar outro carro depois da nossa reserva ter caído em Perpignan por conta do no-show. Como atrasar a reserva do hotel em Paris. Como sairia nas páginas policiais do La Vanguardia: “Pareja de turistas muere de hambre tras quedar atrapada en edificio".
Insisti. O cara do outro lado da porta respondia, firme, que era melhor ligar para aquele número.
Paula subiu os degraus. Encostada à porta, começou a explicar tudo minuciosamente, com calma, sem atropelos: estávamos hospedados no prédio há dias; tínhamos vindo pelo Primavera Sound; alguém havia trancado a porta e estávamos sem chave, que havíamos deixado dentro do apartamento; precisávamos pegar o trem na estação senão perderíamos a viagem. Só precisávamos que alguém abrisse a porta para nós.
Do outro lado, uma voz feminina falou algo que não ouvimos bem o que era. A voz masculina falou um “ok".
Ouvimos a chave girar na porta do apartamento. Um inglês ruivo barbudo, pulseira do Primavera Sound no braço esquerdo, saiu com cara de sono. Desceu conosco para abrir a porta da rua.
Da calçada, percebemos que havia uma mulher na sacada do primeiro andar vendo-nos sair, enquanto o inglês fechava novamente a porta. Paula acenou, enquanto eu buscava um táxi na rua.
Na estação de trem Barcelona Sants chegamos em cima da hora - corremos pelo saguão, observando os telões com horários de partida, tickets numa mão e mala na outra. Corremos por toda a extensão do saguão, descemos escadas. Várias plataformas e não sabíamos se havíamos descido na correta.
Finalmente, o número da plataforma, a indicação para França e Perpignan. Corremos. Não havia mais ninguém na plataforma. Um guarda de uniforme azul e quepe acenava para nós - já havia percebido que era aquele trem que procurávamos. Corremos até ele, um longo apito tocava e alguma voz repetia algo em espanhol, catalão e inglês e que eu não conseguia entender. Ele fez sinal para entrarmos. Entramos os dois, a porta fechou assim que puxei a última mala.
Fomos os últimos a embarcar, em tempo, a caminho de Perpignan.
Demorei muito para visitar Barcelona.
Sempre foi uma cidade que eu pensava ser incrível. Conhecia das HQs da El Víbora, revista espanhola; principalmente Sangre de Barrio, de Jaime Martín, grande autor espanhol e que traduzia o pós-punk para páginas em preto e branco, traço simples e histórias que tinham muita alma. Sempre lembrava também das fotos de Robert Capa, das histórias todas que fizeram a cidade famosa por anos e anos. Mas, por algum motivo, fui deixando - sempre outro lugar entrava no meu roteiro e Barcelona caía. Um dia vou, pensava.
Finalmente fui. E foi como se a cidade não me deixasse ir embora.
Conto mais disso na semana que vem.