Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.

Qual o primeiro disco que comprei na vida?
- Resposta fácil. Se tem Bowie no subtítulo, claro que vai ser dele, né? 😒
- Não, não vai. E quer saber? vai demorar a chegar lá. Vamos primeiro à introdução.
- ...
Más línguas (e eu sei quais são) vão falar que meu primeiro LP foi a trilha sonora do filme Over the top, esquecido filme dos anos 1980 sobre um caminhoneiro que disputa campeonatos de braço de ferro enquanto tenta retomar o relacionamento com seu filho adolescente. O braço duro e rosto de pedra Stallone passeia pelo filme ao som de músicas mais canastronas do que a atuação do Rocky Balboa do asfalto - tem Sammy Hagar, Robin Zander (um zé-ruela vocalista do Cheap Trick), Asia e outras farofas, sob a produção de Giorgio Moroder.
Mas - ah! gotcha! - esse disco nunca foi meu: meu irmão mais velho foi quem comprou, e eu apenas falava que era meu para impressionar meninas da distante quinta série. Mas, obviamente, errei rude e dava com o queixo na lona, sempre. Genéricos solos de guitarra não impressionavam ninguém naquela época, nesse rock "comercial-de-Cigarros-Hollywood" dos anos 1980.
Com um pouco mais de informação, fui atrás de rock and roll “de verdade” (ou pelo menos, o que passava por verdade naquela época), e não da versão enlatada que populava essa trilha sonora. Para isso, guardei mesada e comprei meu primeiro disco real, oficial: The Wall, do Pink Floyd. Qual garoto da sexta série (e mais importante ainda, qual garota) não se deixaria impressionar? Era um disco conceitual duplo, com arte de Gerald Scarfe, capa gatefold, encarte com letras que poderiam muito bem servir para se fazer plágios em redações de escola anos depois (não que eu tenha feito, claro 😬). E, ainda, tinha sons de bebê chorando, avião dando rasante, helicópteros levantando voo, muros caindo e outros ruídos incidentais mais pesados ainda que a mão do Roger Waters e sua história auto-centrada de um pobre astro do rock. Pepita de ouro, sem dúvida.
Mas isso durou até eu começar a pesquisar mais e ver, um dia na TV, o Kid Vinil indicando uma banda com um nome bem diferente: The Jesus and Mary Chain. Mas onde encontrar? Naqueles tempos pré-internet, não se ouvia facilmente um disco ou uma música se não fosse na rádio ou na TV. Loja de disco? Na cidade em que eu morava havia apenas uma, que tinha exatamente todos os lançamentos de 6 anos antes e algumas trilhas sonoras de novela.
De tanto procurar, encontrei em um Carrefour, em outra cidade, um exemplar do primeiro disco deles, Psychocandy - e aposentei completamente o The Wall. Jesus and Mary Chain era outro bicho: 2 ou 3 acordes, distorção de guitarras, músicas curtinhas, letras deprês, distorção de guitarras, jaquetas de couro e cabelos para cima bem no estilo pós-punk, distorção de guitarras. Ah, e já mencionei que tinha muitas camadas de guitarras distorcidas?
Foi uma porta de entrada para ouvir outras coisas. E também para ler sobre as influências, buscar de onde as músicas vieram. Primeiro, pós-punk inglês. Depois, o punk, dos dois lados do Atlântico (e, depois, da costa do Pacífico também). Aí chega-se em Velvet Underground e Lou Reed. Mais um pouco, em Iggy Pop e Stooges. E, mais um pouco ainda, em David Bowie.
O quê? Aquele cara com olhos de duas cores, que tinha um clip que passava incessantemente na TV? De fotos em que aparecia com um terno amarelo em frente a multidões? De dueto com outros dinossauros que ainda caminhavam sobre a Terra, mesmo depois do punk? Aquele ator do filme Labirinto? Aquele mesmo de quem o Nenhum de nós fez o cover que falava "o tolo teme a noite, como a noite vai temer o fogo"?
Comecei a ouvir música em uma época em que Bowie era um enigma: quanto mais eu lia, mais descobria que ele era uma influência gigante em todas as bandas que eu descobria e gostava; mas, ao mesmo tempo, nada do que aparecia sobre ele na mídia parecia fazer sentido com essa informação. Bowie, nessa época, era tão uncool que perigava Ayrton Senna aparecer em uma entrevista em sua mansão, com um disc-laser do Bowie nas mãos, para mostrar como ele relaxava no descanso do guerreiro-motorista.
Continuei intrigado. Como ele poderia ser tão reverenciado se, nos anos 1980, era tão jogado para escanteio? Corri atrás, li sobre Ziggy Stardust, li sobre os anos 1970. Comecei a entender melhor, mas sem conhecer a música. Até o dia em que comprei meu primeiro disco de David Bowie.
1.
Low, 1977
Quis o acaso que o primeiro disco de Bowie que eu comprei fosse um dos discos mais difíceis e radicais da carreira dele. Eu não sabia muita coisa; havia lido algumas coisas sobre sua época de Berlim. A capa foi o que me fez decidir: era esteticamente muito diferente de todas as outras dele e de outros artistas. A foto de perfil, tirada de um fotograma do filme The man who fell to earth, virou uma das imagens mais icônicas do rock. Pensei que, com essa capa, o disco deveria ser bom. E era. Mas eu não entendia ainda.
Dava para ouvir disco na loja, mas era naqueles tempos em que lojas de discos andavam cheias e você tinha de esperar sua vez, em uma fila interminável. E o vendedor cabeludo e de ar blasé, com o cofrinho aparecendo, que deveria ser fã de algo odioso como Deep Purple ou Jehtro Tull, fazia cara feia sempre que você pedia para ouvir algo - e se, depois de ouvir, você decidisse não levar, ele bufava e olhava para você com cara de que iria empalar seu animal de estimação. Desisti. Resolvi comprar mesmo sem ouvir - e, naquele tempo de dinheiro contado, era uma decisão bem radical. Arrepender-se de uma compra não era o mesmo que mudar de playlist no celular. Você ficava com aquele albatroz pendurado no seu pescoço, por anos, maldizendo-se por ter sido impulsivo. Revender era garantia de prejuízo, sempre por centavos. Trocar com alguém era fora de cogitação: eu simplesmente não conhecia ninguém que ouvia Bowie naquela época.
Mas cheguei em casa e fui direto ouvir. E estranhei muito. Era diferente de tudo o que eu havia ouvido, desde as músicas dele que martelavam em rádio ou tv, da fase superstar dos anos 1980, até às bandas que eram influenciadas por ele. Não conseguia ver conexão entre esse disco e o que eu gostava em outras bandas. Mas segui. E o lado B era ainda mais diferente: faixas instrumentais. Quem ouvia isso? Coloquei para tocar algum disco do New Order ou dos Smiths e fiquei com aquela sensação em segundo plano de que havia acabado de tomar uma decisão equivocadíssima. E um albatroz, simpático, mas bem filho da puta, pendurado no meu pescoço, ria da minha cara.
E um dia aconteceu: depois de ouvir o recém-comprado Zimbra, do Talking Heads, fui ouvir Low de novo. Brian Eno1, produtor de Zimbra, havia começado a trabalhar com Bowie em Low e depois tocou em toda a trilogia de Berlim com ele - além desse, tem também o “Heroes” e o Lodger. Achei que deveria ouvir com mais calma. Comecei a prestar atenção na dinâmica do disco: em como Bowie comandava com elegância a sequência de músicas, os finais abruptos, os sons de guitarra completamente diferentes do que eu estava acostumado. Conseguia entender melhor como os detalhes construíam as músicas, à medida que ouvia. Era muito mais ambiente e espacial (no sentido físico) do que eu estava acostumado.
Intrigado, corri atrás de tudo o que Bowie fez nessa época em que morou em Berlim: "Heroes”, Lodger, Before and After Science, do Brian Eno, The Idiot e Lust for Life do Iggy Pop (para quem Bowie tocou teclados na turnê de lançamento, como se fosse mais um da banda, em um puta favor para o amigo desafortunado).
A fase de Berlim de Bowie foi o que me ganhou - e, de repente, começou a fazer sentido toda a evolução do pós-punk a partir desses pouco mais de 2 anos em que Bowie esteve na capital alemã. Ficava claro de onde vinham Joy Division, Depeche Mode, os New Romantics todos, alternativos como REM e vários outros do pós-punk. O interessante era que cada um pegava a ‘sua versão’ de Bowie: o que cada um entendia daquilo que estava ouvindo. Passei a ir atrás de tudo o que pudesse ler sobre essa época. E Bowie abriu portas para mim: livros, filmes, outros discos, outros artistas, pintores - da mesma forma que ele tinha interesse em conhecer e aprender, comecei a querer conhecer cada vez mais. Descobri muita coisa por conta dele, numa educação completamente autodidata, guiada por um autodidata - Bowie nunca pisou em uma universidade, mas conhecia literatura, arte e música como poucos.
Don't you wonder sometimes
About sound and vision?- Sound and Vision - Low, 1977
2.
The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, 1972
Bowie abriu as portas de muita coisa e para muita gente. Ele compartilhava suas influências de muitas maneiras - por meio de referências nas letras, pelas entrevistas que dava, pelos filmes que fazia, até mesmo pela forma de se vestir.
Comecei a ouvir bandas alemãs como Neu, Can e Kraftwerk por conta de discos como Low. Conheci Brian Eno aí - o que me levou a muitas outras descobertas. E a cada artista que citava Bowie, eu ia seguindo mais um fio, mais um caminho para conhecer mais.
A curiosidade se expandia na própria carreira de Bowie: quantas fases ele poderia ter, além da de Berlim ou a de superstar nos anos 1980? (e, depois, mudei minha opinião dessa fase que era considerada ruim - principalmente pelo álbum Let's Dance, de 1983 e pela música Loving the Alien).
Eu tinha um conhecimento marginal do Bowie que, ainda no começo dos anos 1970, teve seu primeiro sucesso com a fase do glam rock, de The Man who sold the world, Hunky Dory, Aladdin Sane. Mas foi principalmente o disco de 1972, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, que eu tive mais um momento de expansão.
Era a “Fase Imperial” de Bowie - essa expressão foi cunhada por Neil Tennant, do Pet Shop Boys, para se referir àqueles momentos em que o artista não erra uma. Em pouco mais de um ano, Bowie foi altamente revolucionário: na música, com um disco fortíssimo; comportamentalmente, com a androginia; culturalmente, com as referências todas, a criação da imagem de um personagem com uma história própria. E, de quebra, ainda ajudou seus ídolos, Lou Reed e Iggy Pop, que estavam por baixo, após anos de ostracismo pela indústria musical.
Em retribuição a toda a influência que Reed e Pop tiveram sobre ele, Bowie os levou para a Europa - colocou-os sob a tutela de seu manager, produziu para ambos seus melhores discos e tornou-os conhecidos de um público muito maior, o que mudou a trajetória de suas carreiras. Lou Reed era o melhor escritor do rock e Iggy Pop, o melhor performer; Bowie, grande fã de ambos, era uma mistura dos dois. Como bom ladrão que era, pegou de ambos.
Ficou famosa a conversa dele com James Murphy, do LCD Soundsystem: Murphy falou, encabulado, quando finalmente conheceu o ídolo: "fico constrangido, roubei tanto de você". E Bowie respondeu: “Querido, você nunca pode se sentir culpado por roubar de um ladrão".
Talvez o grande talento dele fosse descobrir o que era inovador, antes das outras pessoas - ele não era um pioneiro, mas era quem conseguia entender o que seria importante nos dias, meses e anos seguintes. Sempre com uma urgência de aprender, como se tivesse pouco tempo sobrando.
Five years, that's all we've got
- Five years - The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, 1972
E, mais uma vez, Bowie me levou para conhecer mais, aprender mais, fazer novas conexões. Mais um período de educação autodidata.
O resultado imediato foi me fazer aguardar, ansiosamente, uma volta de Bowie à boa forma: afinal, os anos 1990 traziam cada vez mais artistas influenciados por ele. Mas algo faltava: os álbuns que Bowie lançava seguiam decepcionando. Algumas poucas e boas ideias, faixas interessantes - mas tudo muito esparso. E, naqueles anos 1990, com muita coisa acontecendo, bandas boas surgindo, novidades a cada semana (mesmo deixando de lado o retrógrado britpop), Bowie veio fazer um show em São Paulo, em 1997. Fiquei com um pé atrás. E, logo em seguida, com os dois pés, quando li que ele usava a maior parte do show para mostrar músicas de seu último e fraco disco e que, além de tudo, fazia versões eletrônicas de músicas da carreira passada. Não comprei ingresso. Foi a última chance que tive de ver um show dele.
3.
The Next Day, 2013
David Bowie sofreu um ataque cardíaco em 2004, após um show na Alemanha.
Recuperou-se. E desapareceu do olhar público. Foi viver sua vida, cuidar da sua filha pequena, ter uma rotina normal. Deixou de fazer shows. Não lançou mais discos depois de Reality, de 2003.
10 anos depois, após trabalhar em total sigilo por meses, lançou The Next Day.
Era como a volta de um velho amigo. Como uma conversa que se retoma depois de muito tempo: as músicas eram familiares, revisitando variás fases da carreira dele. Não é um disco saudosista, por mais que tenha essa recapitulação de outras vidas. Quando ouvi, soou como um novo disco que retomava a trilha de bons discos do final dos anos 1970, começo dos 1980. E, também, uma forte carga de Berlim - a própria capa já dá a pista, brilhante em sua desconstrução de “Heroes", por Jonathan Barnbrook.
Comprei o LP duplo em uma das lojas preferidas de Bowie em NY, a algumas quadras de onde ele morava desde o começo do século. Somente anos depois que soube que a extinta Bleecker Bob's Golden Oldies era a que ele mais frequentava. Comprei o disco no último mês de funcionamento: fechou logo em seguida, vítima da especulação imobiliária.
Meses depois, eu estava em Berlim - o disco era o elo que faltava na ideia de retraçar, pela cidade, os passos de Bowie.
Had to get the train
From Potsdamer Platz
You never knew that
That I could do that
Just walking the dead- Where are we now? - The Next Day, 2013
Pelas ruas de Berlim, como já contei antes, refiz as rotas de Bowie, anônimo, como ele gostava de fazer. E fui até a loja de discos preferida dele em Berlim - nada nela faz com que você saiba que ele a frequentava. Não havia discos dele para comprar que eu já não tivesse. Comprei um Arcade Fire recém-lançado, Reflektor. O vendedor resmungou sobre o preço alto do disco duplo.
Só quando cheguei em casa, dias depois, que vi que Bowie canta na faixa-título do disco produzido por James Murphy, do LCD Soundsystem.
Mais uma coincidência.
Ao contrário do que muitos falaram, The Next Day não era um testamento de Bowie, que havia se retirado dos palcos anos antes. Ainda lançou mais um disco, Blackstar, no dia de seu aniversário - 8 de janeiro de 2016.
Brincou com Tony Visconti, seu produtor de longa data, que, finalmente, falariam mais dele nesse dia do que de outro artista com quem ele dividia o dia do aniversário: Elvis Aaron Presley.
PARA SABER MAIS, EM 5 CLIQUES
Bowie era grande leitor: são vários os relatos de que ele lia compulsivamente durante as turnês. Essa matéria no site da Biblioteca Pública de Nova York traz a lista de seus 100 livros preferidos, de uma lista que ele compilou há anos. Tem em livro também, com uma boa edição, mas não vi versão em português. Ninguém perguntou, mas vou falar mesmo assim: li 18 desses.
O show do Hammersmith Odeon em Londres, em 3 de julho de 1973, era o último de Ziggy Stardust and the Spiders from Mars. Bowie depois deixou para trás a fase glam e passou por várias outras metamorfoses na carreira.
Boa matéria sobre a exposição David Bowie Is, que passou por aqui no MIS, em 2014. Fui ver em uma madrugada, para escapar das filas que se formaram. Impressionante e completa. Muita coisa veio dos arquivos do próprio Bowie, que guardava tudo meticulosamente.
Tem muita biografia do Bowie por aí. Mas a que mais gostei foi essa aqui: David Bowie: The Oral History, por Dylan Jones, jornalista da GQ britânica. Vale, mas não tem tradução em português.
O Brasil maltratou muito Bowie com as versões indigentes de Seu Jorge. Mas aqui tem uma raridade: um compacto que a Globo fez do show de 1990, na Praça da Apoteose, no Rio.