Non sopporto i cori russi, la musica finto rock, la new wave italiana, il free jazz, punk inglese
A (minha) retrospectiva do ano na música.
Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.
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Já vou dar spoiler:
Melhor show do ano: Pet Shop Boys
Melhor show de alguém que você nunca ouviu falar: Kelela
Melhor pior festival de música: Primavera Sound
Não é aquela parte do Grammy ou do Oscar que acontece à tarde por serem prêmios técnicos e só passa no resumão entre um intervalo e outro. Isso aí tudo em cima eu falei na semana passada, quando fiz esse texto aqui, ó, sobre o Primavera Sound.
Não foi só isso, claro: esse ano vi alguns shows bons e foi, de fato, o melhor ano desde a volta dos shows ao vivo pós-pandemia. Teve Edu Lobo no Sesc, após vê-lo por acaso na rua - eu nem sabia que ele tocaria naquele final de semana em São Paulo; teve um ótimo Mimo Festival, de graça no Parque Villa Lobos, com o gente boa Don Letts discotecando, grande show de Jupiter & Okwess, banda congolesa bem legal, e Paulinho da Viola congelando no frio de São Paulo; teve os velhões do Cymande, grande banda britânica de funk, teve Seun Kuti, filho do Fela; e teve o Jane's Addiction, que até hoje é a banda preferida do meu eu de 14 anos. Como dizia o Angeli numa Chiclete com Banana antiga, “Agradecimentos a essa banda que faz um puta som fodido!”.
Um que quase levou de melhor show foi o da reunião dos Titãs, de que falei aqui. Pela primeira vez em muitos anos com todos os sete remanescentes da fase principal do grupo, o show no Allianz foi grande: só músicas da fase que vai até a saída de Arnaldo Antunes (teve um pequeno espaço dedicado a músicas do acústico, acho eu, mas eu não ouvia mais Titãs nessa época). Já vilipendiei muito a banda durante anos - acho que só sacaneei mais os Velhos Baianos Gil e Caetano. O show foi o que se esperava da melhor e mais influente banda dos anos 1980 no rock mainstream brasileiro: espetáculo de estádio, músicas boas, duas horas e meia sem encher linguiça, tocando bem e se divertindo.
Mas, principalmente, se não fosse pelo golaço do Pet Shop Boys aos 45 do segundo tempo, meu show preferido - até mais do que o do the Cure - teria sido da banda argentina Las Ligas Menores. Num lugar escondido no Centro de São Paulo - o porão que serve de sala de projeções do Cineclube Cortina. Quatro meninas e um cara (mas no show tinha um baterista substituindo a batera original, que estava grávida), influenciados por Pixies, Pavement, Guided by Voices, Sonic Youth e que tocam como se um 1992 lo-fi estivesse aí de novo. Grande banda, num lugar pequeno, como devem ser os melhores shows. Fizeram cover de Pixies que ninguém sacou qual era a música (da fase nova com a argentina Paz Lenchantin no baixo). Junte isso com o que já falei de ter gente nova curtindo demais Slowdive e dá para acreditar que boas bandas novas redescubram a última época em que o finado rock foi original em alguma medida.
Dito isso, podemos passar para a parte realmente inédita, sem remix, da retrospectiva de música do ano de 2023. Totalmente idiossincrática, pessoal e sem jabá.
Por aqui, andei ouvindo muita coisa desse ano. Ao mesmo tempo, ouvi muita coisa ESSE ano - ou seja, aquele bom e velho anacronismo.
Para mim, faz sentido falar de ‘melhor disco em 2023’ e não ‘de 2023'. Quem nunca descobriu algo muitos anos depois do que o disco já havia sido lançado? Hoje é bem mais fácil ter acesso a tudo o que é lançado em um clique ou uma dedada (opa!) na tela. Mas, anos atrás, era comum o disco mais ouvido por você e seus parças ter sido lançado no ano anterior ou até antes.
A minha retrospectiva aqui vai ser bem anárquica. Só tem uma regra aqui: não tem jabá - mas se alguém quiser me patrocinar, manda ver. Tá lá a versão paga dessa newsletter exatamente por isso. Pinga um capilé para o parça e já falo aqui que a sua obra é mais consistente do que a daquele homem lá que está no Brasil nesse momento. Paul o que, mesmo? 🤔
01. Melhor disco de outro ano
Esse aqui vai para La Voce del Padrone, Franco Battiato, de 1981.
Não é um desconhecido alternativo, aquele tipo de gente que toca dentro de um baú num sótão em Brera, Milão, como falaria Caetano Veloso.
Virou o disco mais vendido da Itália desde o lançamento, o primeiro a ultrapassar 1 milhão de cópias - talvez mantenha o título ainda.
Mas essa história de sucesso não é tão simples.
No início dos anos 1970, Franco Battiato fazia exatamente o que o bardo de Santo Amaro criticava: durante anos, militou no underground de Milão, a cidade italiana mais próxima da escrotidão de uma metrópole como Buenos Aires, São Paulo ou Nova York, para ficar nas mais italianas cidades do Novo Mundo e onde a música de vanguarda sempre tem um espaço de destaque.
Nessa época, a Itália estava numa treta complicada: eram os Anos de Chumbo e o país, um campo de batalha entre direita e esquerda. Guerrilha urbana, terrorismo, violência e militância sem limites davam o tom: a Itália parecia à beira de uma revolução ou de uma nova ditadura fascista. Mas boa arte floresce em tempos duros, como sabemos bem pelo século vinte.
Battiato era militante comunista e sua música refletia isso. Abandonou o pop quadradinho que fazia no começo da carreira e influenciava-se por Stockhausen e pelas bandas alemãs mais eletrônicas. Era cada vez mais vanguardista e seus concertos eram verdadeiros eventos políticos. Ser de novo parte do esquema do jabá das grandes gravadoras não atraía Battiato; mas com La Voce Del Padrone, o italiano voltou ao pop - em seus próprios termos. Músicas bem mais melódicas do que na fase experimental progressiva, mas ainda assim com muitas influências além do mainstream italiano.
Praticamente um disco de Art Rock, como chamavam na época (exemplo clássico: a trilogia de Berlim de Bowie, a carreira solo de Peter Gabriel), o LP misturou seu lado de compositor clássico com influências da new wave, da música eletrônica e do pop mais complexo da virada dos 1960 para os setenta. Continuava lutando o bom combate, com letras militantes. Sua música mais conhecida, Centro di Gravitá Permanente, fez sucesso em toda a Europa; é daí que sai o título desse texto - é uma ironia de Battiato com um eu lírico que despreza tudo o que ele usa no seu disco, de alguma forma:
Numa tradução livre:
Não suporto coros russos, rock fino *, new wave italiana, free jazz, punk inglês.
*também chamado de soft rock ou rock de iate, aquele estilo anos 1970 bem Steely Dan ou Fleetwood Mac
Meio como outro preferido da casa, o argentino Charly Garcia, Franco Battiato se reinventou muitas vezes e tem grandes discos para descobrir. E grandes músicas também, como vai aparecer aí embaixo, no segundo prêmio.
02. Melhores músicas desse e de outros anos
Aqui é sempre difícil. A melhor, melhor mesmo, depende de muita coisa - e varia de acordo com o humor, com a época do ano, com referências várias.
Num momento, cravo aqui Ghosts Again, do Depeche Mode, grande hit do ano (para mim). Agora uma dupla, lançaram um disco novo que é o melhor deles em muitos anos. Olha aí uma gravação bem boa na BBC e com a dança de Dave Gahan que vai bombar nas festas de fim de ano (pelo menos aqui em casa):
Centro di Gravitá Permanente, de Franco Battiato, é uma que apareceu para mim no meio de umas obsessões com música pop italiana dos anos 1970/1980. Falei de Franco lá em cima; essa música, especificamente, é o centro do disco (sem trocadilho) e inclui tudo o que o autor diz lá no título desse texto.
Fito Paez, outro hit no meu universo paralelo, rodou muito aqui com Ojos Rojos, de seu disco de 2003, Naturaleza Sangre. Um disco que não ouvi na época e fui atrás após ter voltado a ouvir bastante Paez, depois de seu disco Los Años Salvajes (visionário, esse título de Rodolfito deve batizar os anos de Milei na presidência, pelo visto). Grande música sobre a diáspora argentina na crise de 2001, que praticamente implodiu o país (que chegou a ter 5 presidentes em 11 dias, como bem lembrou o grande portorriquenho Residente, numa música que já recomendei por aqui). A música que começa com “Amanecía en Leblon” e conta uma história de uma adolescente argentina na madrugada carioca fica melhor com o dueto com Rita Lee - num disco que conta ainda com Charly García e Spinetta, praticamente uma santíssima trindade do rock sulamericano.
Por falar em Rita Lee, falecida em 2023, outra música-chave do meu ano: Ovelha Negra, do álbum Fruto Proibido, de 1975. Talvez o melhor disco de rock do Brasil (Mutantes não conta - os três primeiros discos são muito acima de tudo o que era produzido por aqui e até a maior parte do que se fazia nos EUA ou no Reino Unido). Rockão bem Stones com o Tutti Frutti, banda dos irmãos Carlini e outros grandes músicos, com Rita Lee no vocal, a grande estrela do rock BR desde sempre. A música é a melhor num disco que não tem música mais ou menos.
Dem Bow, de Shabba Ranks, faixa de 1990 que tocou muito aqui por conta da deliciosa história do riddim que deu origem a todo o reggaeton - uma dupla jamaicana está com um processo aberto que pode mudar a história da Música, ao alegar que todo o gênero reggaeton é baseado no ritmo criado por eles. Se ganharem e tiverem royalties a receber, vai ser um furacão como nunca visto antes. História bem boa aqui.
Muitas músicas mais de outros artistas bons: Fever Ray, Slowdive, Fatoumata Diawara, WITCH, Kelela…bastante coisa, seja de 2023 ou de antes. Mas para isso tem outras categorias vindo aí.
03. Prêmio Neil Young de artista de longa distância
Wilco tem prestado bons serviços desde 1995. Depois de um dos melhores discos da história do Rock, Yankee Foxtrot Hotel, de 2001, o Wilco poderia ir pra casa e só colher royalties de um puta disco que, ainda por cima, foi sucesso de vendas.
Mas os caras continuam por aí. Fazem discos com regularidade, alguns bem próximos de outros, não são tão falados pela imprensa musical hoje em dia, de olho em outras novidades (e, a bem da verdade, crítica musical morreu há alguns anos). Mas continuam tocando bem e criando bem.
Cousin, de 2023, é o tipo de disco que Neil Young faria nos anos 1990 ou 2000: depois de décadas de estrada, não tem erro. É um disco coeso, bem tocado, com equilíbrio de músicas pop/experimentais e tudo mais a que o Wilco acostumou seu público. Não é um disco que vai ser falado por aí, não vai ter gente dizendo que é revolucionário: mas vai ter aquele jeitão de que você pode mergulhar sem medo que o Wilco entrega mais uma vez um grande álbum.
04. Melhor disco de Luiz Caldas de 2023
Luiz Caldas é gênio: com seu projeto Música sem fronteiras, o bardo de Feira de Santana, o Santana do circuito Barra-Ondina, o Guitar Hero dos trios elétricos tem lançado um disco por MÊS desde 2013. E são sempre bons.
Cada disco é em um estilo musical diferente do anterior e tocado e produzido com maestria, como cabe bem a um cara que tirou de ouvido Sultans of Swing quando tinha apenas uma semana de estudo na guitarra elétrica.
Pode até parecer um ChatGPT cuspindo músicas a torto e a direito, mas Caldas tem um esforço genuíno e joga nas onze: toca instrumentos, produz no estúdio, divulga, faz parcerias com gente importante, tem agenda de shows sempre lotada.
Luiz Caldas é incansável: o projeto já está no álbum nº 142. É tanto disco que quase nem dá para escolher um só. Só esse ano foram doze. Mas tenho um favorito: Multiverso, lançado em julho. Guitarras melhores do que 90% do que foi feito com o instrumento no Brasil desde Fruto Proibido. Tem uma temática que permeia todo o disco, num álbum conceitual sobre inteligência artificial, futuro, multiverso - cujo conceito a faixa-título tenta explicar, inclusive.
E Luiz Caldas brilha até na parceria com um baú-sem-alça como Pedro Bial - é a música Átomo, feita com o auto-intitulado jornalista, diretor, dramaturgo, escritor e poeta. Mas sinto muito, Bial: o verdadeiro homem do Renascimento, aqui, é o gênio das seis cordas do Farol da Barra, o grande Luiz Caldas.
05. Melhores discos de 2023
Memento Mori, do Depeche Mode, é o melhor álbum deles desde Playing the Angel, de 2005. O disco desse ano não começa com uma sequência tão absurda de hits como as primeiras cinco do outro álbum, mas é muito mais equilibrado e completo.
Dave Gahan e Martin Gore estão na quarta década como banda - um feito e tanto para quem a imprensa britânica escanteava no começo da carreira como quase uma boy band. Ao vivo, continuam um dos melhores shows: foram headliners do Primavera Sound original em Barcelona, junto com Pet Shop Boys e New Order (ótima curadoria que faltou ao PS de São Paulo).
Mas por mais carinho que tenha por esse álbum e pelo Depeche Mode, o melhor disco de 2023 acabou vindo de Fever Ray. Metade do antigo duo The Knife, a sueca Karin Dreijer tem uma boa carreira solo e grandes discos. Nesse, o irmão Olof (a outra metade do The Knife) e os produtores mais relevantes de hoje, Trent Reznor e Atticus Ross, ajudam a criar o que talvez seja o disco mais inovador do ano. Esqueça a capa horrenda (a própria Karin como um palhaço apocalíptico): Radical Romantics não tem exatamente um hit que puxe o disco, mas é hipnótico e grandes músicas do começo ao fim.
De Kelela já falei - fez um dos melhores shows do Primavera Sound. Raven, seu álbum mais recente, é bem bom; mas o show foi tão fantástico com aqueles graves típicos de soundsystems de responsa que pensei depois que, se o disco fosse muito mais pesado e sujo, teria virado outra coisa. Mas ainda assim é um dos grandes do ano.
E por falar em som poderoso, imagine quem está de volta com discos bons depois de décadas? Claro que a maioria das pessoas não vai mesmo imaginar, já que era um movimento alternativo no rock: o shoegaze (termo até pejorativo criado pela imprensa britânica).
Voltaram a ser cool essas bandas que se caracterizavam por uma parede sonora barulhenta, boas melodias pop aparecendo entre o feedback ensurdecedor de guitarras e presença de palco do menino da bolha de plástico (daí o nome do gênero, inspirado por músicos dessas bandas com cabelos cobrindo o rosto e olhando para os pedais de distorção, sem levantar o olhar para a plateia). Foi talvez o último momento em que o rock anglo-saxão foi original em alguma medida e apontava para o futuro, antes de bandas regressivas e conservadoras como Oasis ou Strokes dominarem o mundo.
Esse ano saíram grandes álbuns de originais do shoegaze ou influenciados, como Drop Nineteens - esse, depois de quase 30 anos - Slowdive, Daughter e Blonde Redhead. Deve ter no streaming mais perto de você, é só procurar. E dica: Shoegaze está voltando muito pela força do TikTok - depois que vi uns garotos curtindo o show do Slowdive, banda que tem quase o dobro da idade deles, como se tivessem descoberto um segredo bem guardado, passei a respeitar mais o app.
E outro que bebe dessa fonte: Yves Tumor no disco de título quilométrico Praise a Lord Who Chews but Which Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds). Até o produtor é Alan Moulder, responsável por grandes discos dos anos 1990. Grande disco que mostra bem que há futuro em revisitar essa fase do rock - há ideias por lá que ainda merecem ser expandidas e valem mais do que a enésima reciclagem de rock conservador de rádio que toca por aí.
Outra volta que levou mais tempo ainda foi do WITCH, grandes do Zamrock - rock de Zâmbia, que era considerado todo um gênero específico dentro das Músicas africanas (sim, não existe algo como 'música africana', como se o continente fosse um monólito único).
Depois de 45 anos, Emmanuel Chanda volta com o novo disco Zango e, na verdade, uma banda totalmente nova. A história é bonita e triste ao mesmo tempo: apaixonado pelos sons que ouvia nas rádios de Zâmbia no final dos anos 1960, Chanda montou sua própria versão do rock que tanto amava. Com o apelido de Jagari - vindo de Jagger, por sua presença de palco influenciada pelo britânico - comandou a banda mais famosa do país, até que toda a cena implodiu em meio à crise econômica do final dos anos 1970, gerada pela queda do preço do principal produto de exportação, o cobre. A situação só piorou com a infeliz e explosiva localização do país entre África do Sul, Namíbia e Moçambique e Angola durante um período de guerras intensas e, por fim, com a epidemia de AIDS dos anos oitenta que dizimou a população. Metade da banda, aliás, foi vítima da AIDS.
Jagari sobreviveu de vários bicos no garimpo e de seu trabalho como professor de escola secundária. Chegou a ser preso por tráfico de drogas, numa história mal-explicada e da qual foi inocentado. Hoje, retomou a banda e excursiona pelo mundo, quase 40 anos depois do último disco (e pior: o último com Jagari foi em 1976). A volta mais improvável de 2023 merece lugar entre os melhores.
06. Prêmio James Osterberg de melhor ao vivo
Ninguém faz shows como Jehnny Beth. Vi a francesa anos atrás com sua banda Savages, em Barcelona. Era uma mistura de Iggy Pop com Siouxie Sioux - domínio total do palco e do público, cantou em pé sobre as mãos da plateia. Tenho até foto disso. Um dos shows mais intensos que vi até hoje.
Agora em carreira solo, continua com shows incríveis. Além disso, tem tido um trabalho sólido como atriz. Tocou no Brasil esse ano no festival Mita, no Centro de São Paulo, mas não pude ver. Olha só aí embaixo como é ao vivo, num dos trechos mais calmos do show.
Com o parça Nicolas Congé (a.k.a. Johnny Hostile), os shows de Jehnny são um vendaval de white noise, gritaria e adrenalina alta o tempo todo. Recomendado. Lançaram um EP ao vivo em 2023, LIVE EP.
07. Aqui jazz - melhores de 2023
The Comet is Coming foi o melhor do ano, com Hyper-Dimensional Expansion Beam - que, a bem da verdade, é de 2022, mas só ouvi esse ano. Não é jazz tradicional e mistura um monte de coisas, bem como os grandes do jazz de hoje como Kamasi Washington. E isso é ótimo.
Um gênero que parecia morto e enterrado depois que as experimentações dos anos 1960 e do jazz-rock dos setenta resultaram em música de elevador nos 1980, o jazz ganhou fôlego novo com essa nova geração que mistura tudo das décadas anteriores e faz um som forte o suficiente para colocar um meio sorriso no rosto do ranzinza mais querido do jazz, Miles Davis - seja lá onde ele estiver, se entre nuvens celestiais ou nas profundezas de algum abismo gelado.
Por falar em clássicos, o celestial Pharoah Sanders veio em reedição de Pharoah, álbum de 1977. O genial parça de Coltrane morreu em 2022, mas estava bem ativo e buscando novos caminhos, como prova o grande disco com Floating Points, que também vale a visita. Essa reedição tem um Pharoah quase pop, o que mostra o quanto ele era aberto a novos sons. Vi um show dele uma vez (obrigado, Sesc: vi quase todos os grandes nomes do jazz em shows pequenos ao longo dos anos) e o cara mostrou conhecimento enciclopédico da música, militância política de sobra e uma espiritualidade que converte qualquer um.
08. Between the covers
Numa época em que há muita cópia e pouca originalidade, em que tudo talvez já tenha sido feito - apesar de os bons discos desse ano apontarem novas direções - as versões ganham espaço cada vez maior. Pensei até que poderiam ser uma categoria em si.
Até os Rolling Stones poderiam concorrer aqui, já que lançaram álbum esse ano e, como fazem há quase meio século, conseguem soar como banda cover de si próprios. Só não entra na lista porque achei o disco bem burro e preguiçoso, mesmo com a tentativa de atualização do som ao chamar produtor da moda. Não aguentei passar da terceira faixa - ou seja, mais ou menos como acontece com qualquer disco dos Stones a partir de Black and Blue, de 1976.
Mas vamos ao que interessa.
Para começar, um disco do qual já falei: Ziggy Stardub, Easy Star All Stars, que reimagina músicas do clássico de Bowie em outra linguagem musical. Funcionou muito e mostra como Bowie estava bem ligado, também, nos sons que ouvia na Londres dos 1970, quando as diferentes formas da música jamaicana davam as cartas no underground.
Cat Power reproduz faixa a faixa um show clássico de Bob Dylan em Cat Power sings Dylan: the 1966 Royal Albert Hall Concert. Segue exatamente o concerto original, com uma boa banda que faz até a transição do acústico para o elétrico. E tem até um gaiato na plateia que grita “Judas!", para ajudar no clima. Discão. Cat Power com banda boa sempre vale muito a pena, como vi uns anos atrás; e vai ter show no próximo ano, no C6 Festival. E é legal ouvir as músicas de Bob Dylan com alguém que sabe cantar. 😈
Mas o melhor mesmo nessa categoria vem do projeto Jeffrey Lee Pierce Sessions, que já acontece há alguns anos e coloca gente boa para cantar as músicas de um compositor importante e injustamente esquecido, Jeffrey Lee Pierce, fundador do Gun Club, banda influente do pós-punk. Pierce escrevia sobre blues, sons da América pré-música pop, rockabilly e punk na revista Slash e achava tempo para ser presidente do fã-clube de Debbie Harry, do Blondie. Pierce era também obcecado, além da música, por dinossauros e filmes de terror B japoneses. Depressivo, confrontacional e instável, levou uma carreira errática, sempre com grandes músicas que tinham um público cult fiel, mas que não faziam sucesso nas paradas. Morreu jovem, de um AVC - um fim estranhamente suave para alguém que vivia intensamente.
O projeto começou com um ex-guitarrista do Gun Club, com a ideia de que outros músicos fizessem versões de músicas de Jeffrey, incluindo até músicas que Pierce nunca gravou. Debbie Harry cantou com Nick Cave, outros Bad Seeds como Mick Harvey e Warren Ellis também entraram, Mark Lanegan tem participação grande - um verdadeiro Who's who do pós-punk. O último disco que saiu agora é The Task has Overwhelmed Us, gravado durante anos com idas e vindas - até o finado Lanegan aparece. Ponto alto: a ótima Mother of Earth, com Dave Gahan, do Depeche Mode, outro fã de carteirinha de Jeffrey.
Versão de música é sempre uma homenagem a quem compôs originalmente. No caso do projeto, dá para dizer que Jeffrey Lee Pierce era uma unanimidade: foi gravado por amigos, fãs, ídolos, gente que começou na música ao mesmo tempo que ele, outros que foram influenciados por Jeffrey. Boa forma de encerrar o ano: ouvir todos os discos do projeto, que têm versões incríveis das incríveis músicas de Jeffrey.
Eu me alonguei demais nesse texto. Culpa dos bons sons, já que 2023 foi um ano bem interessante na música.
Semana que vem tem mais: falo sobre as melhores histórias do ano que passou. E vai ser o centésimo giro desse Locked Groove. Até lá.