Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.
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O táxi fez um caminho conhecido. Seguia por ruas por onde eu já havia passado bastante, por anos. Pompéia é um bairro antigo e tradicional em São Paulo. De onde saiu a banda mais importante do Rock brasileiro, os Mutantes; e, em poucos quarteirões, também saíram dali Tutti Frutti, Made in Brazil e Patrulha do Espaço. Rita Lee, os irmãos Dias Baptista, Luis Carlini. No Sesc Pompéia, ali perto, ocorreu o primeiro festival de punk rock do Brasil, O Começo do Fim do Mundo, em 1982. Foi também território livre para bandas novas e todas tocavam ali, todas ainda no início, como Ira!, Inocentes, Titãs, Fellini, Mercenárias. Anos depois, em outra época e com outra geração de bandas, fui muito ao Sesc ver shows e passei noites e mais noites pelas ruas do bairro, entre casas e prédios antigos e com muita história.
O bairro está bem mudado - agora, quarteirões inteiros foram colocados abaixo para dar lugar a obras. Os prédios novos que já estão prontos mostram a mediocridade da arquitetura que invade bairros antigos como esse. Na guerra sem trégua que construtoras e incorporadoras travam contra a cidade, a destruição de tudo o que veio antes é o primeiro estágio; na sequência, a gentrificação e a consequente transformação da cidade para pior. Descemos do carro e seguimos por algumas ruas até o estádio onde aconteceria o show.
Não sou de shows de estádio. Em geral, é gente demais, confusão demais para chegar e ir embora, tudo “montado” demais, som de menos - embolado, sempre pouco nítido se você está na pista, que é o único lugar de onde consigo ver show em estádio. Cadeira ou arquibancada, nem pensar.
Fila para entrar e muita gente na pista. Encontramos um lugar central, nem muito na frente, nem muito ao fundo. A pista VIP, essa invenção de gente que sabe tudo de negócio e pouco de música, ocupava metade do campo.
Eu não via um show dos Titãs há muito tempo. Mais do que eu gostaria de lembrar. Para se ter uma ideia, no primeiro show que eu vi ainda eram 7 Titãs - e não exatamente os mesmos 7 de agora, na turnê Encontro.
Falaram muito desses shows. Alguns textos saudosos do batalhão de colunistas que hoje povoam os jornais. Também resenhas do show, algo que praticamente desapareceu nos últimos anos no jornalismo cultural. Antes, era certeza ler nos jornais sobre shows, em geral no dia seguinte ou ainda depois. O mesmo valia para discos, livros etc. Hoje não tem essa: todo mundo dá palpite com poucos segundos de um lançamento, ou posta vídeos e opiniões do show em tempo real.
Até uma marota característica da imprensa paulistana deu as caras de novo: teve jornalzão dizendo que era ‘o primeiro show’ da turnê - a ignorar completamente os 2 meses e 16 shows feitos antes em outras cidades do Brasil. Nada de novo naquela imprensa que parece só prestar atenção ao que acontece nos limites entre os rios Tietê e Pinheiros.
Muita gente que nunca vai a shows acabou indo, pessoas que há muitos anos sequer prestavam atenção a qualquer assunto ligado a música. Até aqueles que abandonam o pop assim que entraram na faculdade ou quando casaram saíram do isolamento cultural para ir.
Da minha parte, não via show dos Titãs há muito tempo. Mas não porque deixei de assistir a shows ao vivo ou a me interessar por música: na verdade, pelo contrário.
Quando vi os Titãs pela primeira vez, era bem mais difícil assistir a shows ao vivo. Bandas nacionais tinham um circuito menor, bandas internacionais não vinham com tanta frequência - era um Beastie Boys no Olympia ou um Cocteau Twins no Projeto SP para cada festival gigante como o Hollywood Rock. Um show dos Titãs era um evento a que se ia, mesmo para quem não era fã.
Esqueci da banda por anos e anos. Não dava a mínima para o sucesso que foi o show Acústico MTV ou prestei atenção a qualquer música nova deles que tenha tocado muito durante esses anos. Em meio a bandas novas e shows diferentes, Titãs ficaram no passado.
Falei mal deles. Muitas vezes. Titãs apareciam marginalmente para mim, principalmente em tempos de MTV, e viraram sinônimo de banda que parece ter virado um emprego do qual os caras não querem abrir mão por comodidade e inércia. Vi um show dos Strokes uma vez e pensei: “parecem os Titãs. Os caras têm jeito de estarem entediados com o que fazem, só devem pensar no cachê".
Não ajudava que, de vez em quando, um Titã abandonava a banda para fazer coisas que parecia estar muito mais a fim: carreiras solo, ou então outras trajetórias, como Charles Gavin que virou um grande arquivista da música brasileira, ou Paulo Miklos, ator. E valia até para quem ficava na banda, como Tony Belloto, que parecia dar muito mais atenção à boa carreira literária do que ao day job como Titã.
Definitivamente não ajudavam, também, as constantes mutações: “Vamos chamar o Jack Endino para produzir o disco…mas não, não estamos entrando na onda Grunge, imagina”; “Vamos colocar um DJ para tocar junto no palco. Claro que já éramos da música eletrônica antes de todo mundo pensar nisso, olha lá o nosso começo"; “Acústico? Sim, vamos fazer, mas não é porque virou o formato da moda, é um desafio para nós". E por aí vai.
Eu ia além: zoava os plágios do Gang of Four (Titãs não tocam mais Corações e Mentes, notei), ou quando Arnaldo Antunes imitava David Byrne e Ian Curtis no palco, ou ainda quando Nando Reis usava bandana. Era fácil criticar, mais fácil ainda deixar de lado.
Durante anos, ouvi muita coisa, comprei muito disco, fui a muitos shows. Eu procurava, como dizia Caetano (em tom de crítica), por aquelas bandas que tocavam dentro de um baú num sótão de Camden Town. Eu era contra o grande esquemão do establishment musical: espinafrava sem dó a 48ª turnê do Deep Purple pelo Brasil, o show caça-níqueis do RPM, a mão-pesada do Roger Waters no The Wall, os elogios às vacas sagradas da MPB que pareciam feitos por IA. Se o artista iniciante já chegava ajoelhado nos círculos certos do jabá e do tapinha nas costas, eu pegava um completo bode de imediato. Tacava garrafa d’água em qualquer bocó que começasse a cantar “Olha! Olha a água mineral!"
Não apenas nisso. Até mesmo com artistas que eu admirava eu ficava com todos os pés atrás. Vi a volta do Sex Pistols quando essa moda de reunion tours ainda estava no começo. Ao final do show, olhei para um amigo que estava de muletas - ele havia torcido o pé dias antes do show - e nem precisei perguntar. “Eu preferia ter ficado com uma boa imagem do Sex Pistols", ele disparou. Concordei.
No ano seguinte, deixei de comprar ingresso para ver David Bowie. Pensei “Quem quer ver versões Drum'n'Bass de músicas clássicas dele? Há quanto tempo ele não lança um disco bom?". Da mesma forma, nunca fui a shows dos Stones - na época, o fato de uma banda não fazer parte, sei lá, dos 100 artistas que mais gosto, era motivo suficiente para não ir. Havia sempre muito mais para ver e descobrir e eu só queria saber do que pode dar certo, não tinha tempo a perder.
Sem concessões. Take no prisoners, como é o nome de um disco ao vivo super confrontacional de Lou Reed.
Continuo quase assim.
Ainda ouço as músicas mais obscuras, busco aquele jazz experimental que assusta e afugenta, os discos perdidos da vanguarda japonesa, um eletrônico esquecido; ainda curto as bandas mais radicais, descompromissadas e agressivas que se possa pensar, ou os artistas mais vilipendiados pelo bom gosto vigente (alô, Chiclete, alô, Guilherme Arantes, estou sempre com vocês). Ainda reviro os olhos quando ouço falar de Jota Quest. Sempre que leio sobre os shows de Coldplay ou U2, ainda penso no proverbial falecimento de um panda bebê.
Era fácil para mim dar risada com Noel Gallagher num discurso ao aceitar um Brit Awards das mãos de Michael Hutchence, do INXS: “has-beens should not be presenting fucking awards to gonna-be's". Apesar da grosseria extrema e de Noel ser mesmo um grande escroto, é divertido, inconsequente e tal.
Bem pouco maduro, o que até que é bom - como falei na semana passada, maturidade é inimiga do pop.
Só tem um senão: de uns anos para cá, descobri que não dá para ser combativo o tempo todo, ficar na trincheira e dormir em cama de campanha com um olho sempre aberto.
Não abri mão do bom combate. Longe disso. Mas, em tantos anos nessa indústria vital, aprendi bastante. Primeiro que, quem emenda aula na faculdade com balada no inferninho do Retrô na sequência e com trabalho no dia seguinte e ainda volta para o bis, sem dormir, vê tudo com o ódio que Jesus lhe deu e está sempre pronto a dar uma boiada (ops, não essa que vota 22) para não sair da briga. Que vai achar mesmo que quase todo mundo é vendido, fraco, corrupto ou simplesmente cínico. Que vai querer valorizar ao máximo a noção de que não vale nada uma banda que não toque dentro do armário num porão em Shepherd's Bush (ou algo assim, você entendeu).
Comecei aos poucos a mudar. Li uma vez um jornalista britânico que entrevistava Lou Reed e trazia o ativismo do U2 à baila só para chapiscar a cara desses irlandeses coroinhas de missa, que faziam shows para combater a fome na África. O velho Lou, ao contrário do que o jornalista esperava, falou “Você está louco? Por que falar mal desses caras que tentam fazer algo e são sinceros no que fazem, mesmo que você não goste da música?”.
Depois, vi Steve Albini, o chatíssimo e genial produtor de bandas fundamentais do rock americano, que falou horrores do Nirvana, do Fugazi (produziu ambas) e de todo mundo por aí e que chegou até a ser considerado um fascista disfarçado, assumir que ele pensava que havia um sólido alicerce democrático na sociedade atual que permitiria que ele falasse o que fosse, fizesse o que fosse e que tudo ainda estaria lá; mas viu que com a ascensão dessa nova extrema-direita e de Trump, tudo era mais frágil do que ele imaginou e mudou a perspectiva. Passou a se preocupar mais, a ser mais humanista, menos niilista.
Vi Jello Biafra do Dead Kennedys, punk raiz total, pedir desculpas pessoalmente na Rio-92 por ter chamado Jerry Brown (governador da California por alguns mandatos) de Zen-Fascista e espinafrado o cara na música mais famosa da banda. Reconheceu que Brown era um ativista coerente e lutava pelo que era certo.
Ou ainda Henry Rollins, que sempre foi o mais treteiro do hardcore - chegava a trocar socos com skinheads fascistas no meio dos shows do Black Flag - mostrar que é possível aceitar diferenças e tem uma carreira longa em programas de rádio com inúmeros convidados com quem ele não tem muito a ver e mostra que é importante ouvir quem está disposto a conversar.
Titãs tem um mérito: por mais que se possa criticá-los na música, nas escolhas de carreira ou na evolução que tiveram, nunca se afastaram do que eram originalmente. Seguiram ondas, humores do mercado, empresários jabazeiros, mas nunca tentaram passar por algo que não eram.
Entregam tudo o que prometem: show de estádio com tudo a que se tem direito num palco grande, dezenas de músicas, duas horas e meia de show. No setlist, só os clássicos: Cabeça Dinossauro (1986) quase inteiro, bastante de Jesus não tem Dentes no País dos Banguelas (1987); o restante vem quase todo da fase inicial. Músicas pop espertas para um público diverso. Para mim, tinha até algumas músicas do acústico ou dos anos 1990-2000 boas para ir buscar cerveja ou entrar na fila do banheiro (Gracias, Arnaldo Antunes, por não estar na banda durante a época do Acústico MTV - claramente a intenção dessa turnê era mostrar a banda como era antes das progressivas diminuições de elenco, o foco foi até 1991).
Não mudaram também nas letras, que continuam lá como eram, sem nuance ou necessidade de interpretação, como Polícia, Bichos Escrotos, Igreja. Em Nome aos Bois (1987), Nando Reis enfileira os nomes dos facínoras mais conhecidos e coloca “Bolsonaro” no lugar do esquecido fascista Afanásio Jazadji (para quem não sabe, um radialista do mundo cão jornalístico de São Paulo, que chegou a ser deputado e aparentemente rastejou de volta para alguma boca-de-lobo). Ao nosso lado, um Faria Limer de jaqueta de gominhos olhou irritado e meneou a cabeça quando os gritos de “Ei Bolsonaro, vai tomar no cu!” começaram. Saiu de perto e foi dançar as músicas que possivelmente nunca entendeu - cantava feliz em Polícia, talvez por achar que fosse uma ode aos otários fardados.
Homenagearam Rita Lee com cover de Ovelha Negra, homenagearam a Pompéia, de onde muito do rock brasileiro veio e onde eles começaram a ter destaque, no vizinho Sesc Pompéia. Branco Mello recém saído de uma operação por conta de um câncer na garganta cantou e estava lá com todos os outros, na resistência. Lembraram de Marcelo Fromer, uma morte besta num dos momentos mais absurdos desse país: em 2001, foi atropelado em uma rua escura, ironicamente perto do Museu da Imagem e do Som. Era época do Apagão energético do governo FHC, maior símbolo da destruição de um país então à beira da falência - a rua onde Fromer corria, num bairro nobre de São Paulo, tinha postes de iluminação pública acesos alternadamente, para economizar energia.
Paulo Miklos, na última música do show e primeiro hit da banda, Sonífera Ilha (1984), lembrou as origens pop da banda:
“Nos nossos primeiros shows, tocávamos essa música no começo; quando começava a cair a energia, tocávamos de novo no meio; e aí tocávamos de novo no final, para terminar no auge".
Titãs nunca foi uma banda perigosa, alternativa, contracorrente - mas sempre trouxe esse universo de alguma forma, meio que à distância, para muita gente. A banda nunca significou uma ruptura e não tinha intenção de destruir nada - tanto que os Titãs sentem-se bem à vontade no establishment musical/cultural do Brasil. Mas sempre foi, ao fim e ao cabo, uma porta para outros mundos em que alguém pode escolher entrar e descobrir algo novo; ou, então, ao contrário, pode-se também escolher curtir a banda do alto de sua total incompreensão das letras, feliz no colo quentinho do conservadorismo.
No meio do gramado do estádio, enquanto esperava pela última parte do show, pensei no motivo de ter comprado ingressos para essa turnê depois de tantos anos sem dar a mínima para Titãs. Nostalgia, talvez?
Sim, nostalgia.
Mas não é daquela groselha toda de “ain, antes sim que existia rock de verdade” ou “sempre foi o som da minha juventude!", “eu era muito punk, mêooo, fui muito no Madame Satã lá em 2006, super pioneiroo, tá ligado!” (por favor, aqui leia imaginando a voz do Boça).
Percebi que estava nostálgico, na verdade, pela possibilidade que os Titãs sempre trouxeram de que havia outro mundo lá fora - de que havia muito mais do que só aquilo que está na superfície. Era sempre um indicativo de que se pode ir atrás, conhecer mais, saber quem eram os caras das dancinhas copiadas por Arnaldo Antunes, quem era Gang of Four e porque era tão essencial, ou até mesmo permitia pensar que, se esses caras estão fazendo sucesso e falam sobre Igreja, miséria, violência policial e tudo mais, talvez tenha algo a se entender sobre isso fora do mainstream.
Isso fez muita falta num país em que uma parcela significativa da população parece ter se tornado cada vez mais orgulhosa de sua ignorância e desumanidade; cada vez menos interessada em cultura, menos afeita ao convívio com o diferente, com o contraditório. Um país, enfim, que abraçou um conservadorismo tacanho e regressivo e que é o oposto daquilo que, anos atrás, quando eu morava no interior, observava e respeitava em artistas como os Titãs, mesmo não sendo fã.
Depois de quatro anos aterradores, como disse Nando Reis em uma das noites da turnê em São Paulo, ver um show dos Titãs pareceu, para mim, como se fosse recepcionar de volta um antigo conhecido que andou desaparecido, com quem se perdeu contato durante as inúmeras mudanças da vida. Mas logo tudo parece ser como antes e acaba rendendo boas conversas, uma boa bateção de cabeças e um bom pogo noite adentro.