Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.
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Intro.
Imagine todas essas pessoas.
É fácil, se você tentar.
Executivos reunidos em uma sala, na primeira vez em que falaram de um evento musical que deveria fazer história.
Imagine. Eu me pergunto se você consegue.
“Vamo lá, timeeeeee! Vamo virá esse jogo, porraaaaaaaa!!!”
Imagine.
1. Do início.
Para quem não sabe: o festival de música Primavera Sound nasceu em 2001 em Barcelona, ancorado em artistas alternativos ao mainstream musical. Pablo Soler, o fundador, era produtor de shows de bandas noise espanholas e internacionais e juntou o máximo de atrações possíveis - dentro de seu orçamento contadinho - para viabilizar seu festival. Deu certo. Cresceu constantemente até virar o gigante que é hoje, com 3 dias de shows e festivais em diferentes países.
Em 2022, a marca se expandiu para a América do Sul, com festivais em São Paulo e outras capitais, em parceria com a LiveNation.
Segundo informações sussurradas por aí, a edição inicial do Primavera Sound em São Paulo não havia ido bem. Excesso de artistas, público disperso, local mal avaliado, confusões várias, pouco retorno financeiro.
O histórico em 2023 já estava complicado para a marca: a edição de Los Angeles no ano anterior foi única e flopou; a edição de Madri que espelhava a de Barcelona foi um flop parecido e ainda teve a destruição por condições climáticas adversas, com um dia cancelado; a edição do Chile de 2022 foi pouco memorável e a nova acabou cancelada por quebra de contrato pela produtora local - e, dizem, pela comparação desfavorável com outro festival, ironicamente chamado Fauna Primavera, que há anos é sucesso no país andino.
Diagnóstico: make or break. Para a coisa rolar, a fórmula teria de ser ajustada.
Mudaram de produtora: saiu a LiveNation, que ainda faz o de Buenos Aires e demais edições latinoamericanas, e entrou a T4F, brasileira, macacos velhos do showbusiness local e que enfrenta arduamente a gigante dos EUA.
T4F entrou em campo mais pressionada do que o Botafogo em rodadas finais do Campeonato Brasileiro.
2. Interlúdio: uma breve história fictícia.
Imagine os executivos de uma produtora com esse problema nas mãos.
“Bjork, Beach House, Mitski, Ar…Arctic Monkees?” - fala o executivo 1, lendo a partir de um relatório da edição anterior do Primavera Sound, para o executivo 2 e para um vice-presidente da empresa, sentados do outro lado da mesa.
“Arctic Monkeys. Minha filha ouve. Banda nova essa, parece que é rock pauleira" - responde o executivo 2.
“Ah, tá…e Interpol? O que é isso? Não é jogo de tabuleiro?” - pergunta o executivo 1.
“Olha” - o vice-presidente parece desanimado - “Não vamos chegar a lugar algum com isso. Ninguém sabe do que se trata esse monte de banda aí. É tudo muito flat. Essas pessoas parecem ter medo de ganhar dinheiro! Precisamos ser mais ousados, precisamos de sucesso de público, de algo que faça as pessoas atravessarem a cidade para ir lá para Interlagos".
“Eu vou todo ano na Fórmula 1. A gente podia fazer um festival junto com a F-1, seria demais, né? Mas lá em Interlagos é perigoso. Sempre acho que podem riscar meu carro” - fala o executivo 2.
“Que tal Ivete? Sempre funciona” - diz o executivo 1.
“Não, não, pop demais - fala o vice-presidente - “É aquilo que falaram: tem que ser Indie, não é disso que chamam essas músicas aí? Vamo lá, timeeeee!"
“Bom, estou confuso: então é para fazer sucesso com algo que não faz sucesso?”
"Peraí, não disse isso. Vamos pensar aqui: o briefing é ter algo popular, mas não tão popular assim. Precisa ter punch. Temos que nos challengear para pensar fora da zona de conforto, time!"
“Elon Musk uma vez…" - começa o executivo 1.
“Alok?”- pergunta o executivo 2.
“Elon de cu é rola, não quero saber disso, quero soluções" - fala o vice-presidente, muito irritado.
“Pensei agora numa coisa: eu ouvi falar que o Elon era casado com uma sapata que tem banda, peraí que vou dar um Google. O nome dela é Grimes" - o executivo 1 mostra o celular, triunfante. Os outros não conseguem esconder a estranheza com as fotos.
O vice-presidente sabe que, como líder, não pode deixar sua equipe desanimar. E, afinal, é um brainstorm. Que mal faz? Não parece ruim, na verdade. Ele se lembra do que aprendeu naquele curso de Lideranças Insurgentes: precisa ser mais inclusivo, existe um público LGBT e tal por aí, tem agora essa onda identitária. Vai pegar bem. Sim, é isso. Murmura para si 'power, power, power'. Respira fundo. Mais calmo, fala:
“Boa, estamos aquecendo! O público do festival gosta de gente esquisitona e desconstruída, com lente de contato doida e cabelo descolorido, meio sem a gente saber se é mulher ou homem, né? Boa! Já temos uma, mas precisamos de more. Precisamos arrasar no lineup. More, more! “
“E se a gente procurar algum de rap, hip hop, funk, sei lá? Sempre vejo uma molecada passando de carro todo mexido que só ouve isso aí. Pode ser bom ter um lineup com mais pessoas de cor" - diz o executivo 2.
O vice-presidente levanta rapidamente o olhar, enfurecido, com o rosto vermelho. Em sua mente, aparece uma cena em que pega o telefone no meio da mesa e arremesa no rosto do subordinado. Respira fundo de novo e repete mentalmente “power, power, power”. O silêncio deixa todos constrangidos. O VP lembra do curso de comunicação não-agressiva que o obrigaram a fazer e pensa por alguns instantes. Fala pausadamente e tenta passar confiança aos subordinados. Ao mesmo tempo, tenta afastar a sugestão do executivo 2:
“Acho que não é o caso. Vamos focar no nosso consumidor ideal e na brand persona do festival. Vamos pensar na sua filha, nos meninos aqui que a gente vê na avenida lá embaixo ou no shopping, não nesses caras que andam no carro mexido. O público que a gente quer é o que faz boa figura na ativação de marcas”.
Feliz com a solução que arranjou, o VP dá a cartada final para motivar o time:
“Quero um compromisso desse time aqui: toda vez que a gente fechar um nome para o lineup, vamos levantar e gritar juntos, com o punho erguido: “POWER!”
As palavras parecem fazer efeito. Os dois executivos entreolham-se e sorriem aliviados. Estão no caminho certo agora.
“Peraí, vou consultar aqui minha filha que tá lá em casa” - o executivo 2 manda áudio para a filha. Depois de alguns minutos, chega a resposta - “Olha só, ela falou dessa banda aqui, The Killers. Alguém já ouviu?”
“Nunca ouvi, mas não importa. Ela é Gen Z, né? Deve saber do que fala."
“28 anos é Gen-Z? Não sei bem dessas tribos.”
Os três procuram no YouTube do telão da sala um vídeo de Mr. Brightside, do Killers. Animam-se com o que veem. Batem discretamente o pé ou tamborilam os dedos no tampo da mesa, ao ritmo da banda de Brandon Flowers.
Executivo 2 lembra de ter ouvido essa mesma música na festa de fim de ano da firma, num galpão da Vila Leopoldina. Recorda também, aliviado, que o cara do Jurídico garantiu que não havia testemunhas; então só tem que se preocupar com o depoimento da estagiária. Chega! Um problema de cada vez, pensa. Volta a seguir o refrão e se anima.
“POWER!” - grita o vice-presidente. Todos levantam os punhos no ar automaticamente. Os ânimos melhoram.
Horas de discussão. Passam por uma lista vinda do time do Primavera Sound da Espanha. Descartam a maioria dos nomes (dos quais nunca ouviram falar), mas aceitam outros. É para agradar, diz o vice-presidente, que emenda:
“Eles são donos da marca, mas quem vai virar esse jogo somos nós.Total self-esteem nesse time aqui!”- diz para os dois subordinados - “Vamo, timeeee! O que mais? Algum brasileiro? Agora tem essa moda de festival só com brasileiro. Gosto disso, tem um triple bottom line fantástico!"
“A maior parte dos brasileiros já está naquele Rock The Mountain. Ou no Coala".
“Pensem, pensem. O que jovem vai querer ouvir?”
“Xande de Pilares? Todo mundo no meu Facebook só fala dele" - o executivo 1 tenta mostrar proatividade, como foi ensinado pelo coach (pago do próprio bolso).
“Não sei não. Precisa ser mais cool, mais hype. E tem que fazer sucesso, E ser indie ao mesmo tempo, o que quer que isso seja.” - fala o vice-presidente. Volta a murmurar ‘power, power, power'.
Executivo 1 se sente challengeado pelo superior e não para de levantar hipóteses mentalmente, meio como o meme da Nazaré confusa. Olhar do dono, ele pensa, Tenho que ter olhar do dono. Finalmente se anima com uma ideia. Arrisca.
“E Marisa Monte? Toda vez que minha esposa me manda ir no Pão de Açúcar, toca música da Marisa Monte lá. Deve ser sucesso, as pessoas ouvem muito. Já ouvi no Uber também e no clube. E ela tem umas roupas muito diferentonas, né?”
“POWER!” - grita o vice-presidente, ao lembrar do Allianz Parque lotado com o show dos Tribalistas - “Estamos chegando lá! Falta só mais um agora!"
O executivo 1 olha para o telão. No Youtube, depois da música do Killers roda uma playlist aleatória, feita por algoritmo. É nesse momento que começa um vídeo, ambientado no que parece ser um porão. Uma banda desce correndo as escadas, pega os instrumentos, começa a tocar. Bolhas flutuam em torno da banda, pessoas montam e desmontam um palco, mudam móveis de lugar, os músicos põem e tiram chapéus e máscaras. O vocalista tem cabelo desarrumado e armado para cima, batom borrado, rímel escuro nos olhos, pele bem branca.
O Executivo 1 ri sozinho. Fala para os outros, apontando para a tela:
“Lembram daquela novela que tinha um dark? Era engraçado aquilo! Não era o Eri Johnson?”
Todos olham para o telão.
O vice-presidente olha para o nome da banda no bumbo da bateria e vê que está na lista de nomes que veio da Espanha.
Ele levanta o punho e grita, animado: POWER!”
Logo os dois executivos levantam os punhos também e começam a cantar o mantra: “POWER! POWER! POWER!”
3. Just like Heaven.
Os organizadores do Primavera Sound deveriam acender uma vela especial para São Robert James Smith, da Sacrossanta Congregação da Cura Milagrosa.
Se vai existir mais um ano do festival nesses tristes e góticos trópicos, boa parte do mérito deve ser creditado ao impacto causado pelo show de domingo. O mar de gente visto de cima (estimam em cerca de 50 mil pessoas) e os inúmeros posts, reposts, stories e comentários até de quem não foi, compartilhando o momento mágico das duas horas e meia de show do The Cure, fizeram com que o festival parecesse um sucesso gigante. Já garantiram que haverá mais uma edição.
Pouco importa se SMS eram disparados com descontos para os ingressos que pareciam encalhados, menos de 24 horas antes. O que fica mesmo é a ideia de que foi um momento histórico e levantou o nome do festival.
O fracasso foi evitado, mas não foi por falta de gente que remava na direção contrária. A tática da T4F deu certo, mas jogou fora a água, o sabonete, o bebê e a própria banheira do conceito do Primavera Sound. Enumerando:
pouca variedade na escalação, em que o velho trinômio de qualquer festival medíocre deu as caras: rock burro de rádio + nomes gigantes que atrairiam gente mesmo em show solo + farofada pop para levar fã-clube;
shows óbvios e repetidos: eu mesmo já fui a TRÊS festivais com Killers no Lineup;
falta total de ousadia e curadoria, com bem pouca coisa apontando para o futuro. Sobraram artistas que já passaram do auge há muito tempo, mesmo que tenham feitos shows bons, e artistas novos que não dão conta de sequer segurar show em festival;
a tenda dançante era praticamente um lugar para ficar na sombra e fugir do sol - e só. Uma vergonha que não dá nem para comentar. Parecia clube do interior tocando as melhores da Pan. Fiquei com pena de quem tocou lá: gente profissional que claramente já viu estrutura melhor em eventos bem menores e menos badalados.
Mas o pior aconteceu antes até do festival.
Primeiro, a cara de pau de passar meses com ingressos à venda só com The Cure anunciado como atração, enquanto os boatos davam conta de várias bandas fechando nos festivais vizinhos ou em shows solo (Blur, Pulp). Na revelação do lineup oficial, todas as expectativas e promessas se esvaziaram.
Depois houve a farsa do Primavera na Cidade, que dizia trazer artistas do festival e outros inéditos para shows em lugares menores, como é tradição no original de Barcelona. Detalhe: lá, quem usa a pulseira que comprova a compra do passaporte do festival tem entrada garantida, sem precisar de gincana alguma; aqui, deixaram os compradores do passaporte se degladiarem por uns 10 ou 12 ingressos para, em seguida, vender o restante quase ao preço de dois dias de festival no primeiro lote. Vi um show de Seun Kuti que consegui pegar no esquema gratuito. Em um lugar com capacidade para 3200 pessoas, imagino que umas 400 ou 500, no máximo, assistiram ao ótimo show do filho do Fela. Desses, estimo em metade o número de jornalistas e desocupados amigos-dos-amigos que entraram de graça.
Por último, ainda promoveram à parte shows solo de bandas importantes como Killers e Pet Shop Boys, o que esvaziou ainda mais o ineditismo do festival. Dois headliners com shows solo na cidade, fora do Primavera Sound - o que isso diz sobre o festival?
Sombrias perspectivas. A impressão era que, na vontade de fazer tudo ao mesmo tempo e em todo o lugar, o Primavera Sound acabaria sendo um flop pouco visto anteriormente.
Como toda má ação gera uma reação, o festival virou motivo de piada.
Eu esperava tudo de pior: estrutura caótica, má-vontade geral, artistas burocraticamente aguardando o pix cair. Expectativa zero de ver algo a mais do que os bons shows de quem eu já sabia que entregariam: The Cure e Pet Shop Boys.
Mas a música sempre dá conta. Sempre vai triunfar, não importa o que aconteça. Não importa o quanto os ‘donos’ do festival desconheçam o que ela é.
O primeiro show que vi já deu o tom. Não esperava muito do The Hives. Vi há anos e nunca prestei muita atenção. No sol e no calor da primavera da mudança climática, cinco suecos pingando de suor mostraram que dá para extrair um pouco mais desse cadáver insepulto que é o rock. Divertido, pesado, sem um minuto de pausa a não ser para as tentativas do vocalista de falar português, The Hives mostrou como é que se faz show em festival para um público que não está exatamente ali para vê-los.
E teve de brinde ainda a bronca que o vocalista Pelle deu num fã de The Killers. No meio da plateia, Pelle chamava todos à sua volta para o refrão apoteótico da última música, ao mesmo tempo em que um cururu fã de Brandon Flowers lutava por cada centímetro do espaço que ele guardava com unhas e dentes, mochilas e cangas, para ver um show que aconteceria dali a seis horas.
“I don't care if you are waiting for the Killers. You have to partake. Don't block the other guys, get out!” - Pelle Almqvist, o Conquistador.
Depois de dois minutos, já havia esquecido dos Hives e estava pronto para outro show. Ou seja, missão cumprida: Hives gabarita como banda de rock com louvor.
Deixei o palco para os fãs do Killers guardarem lugar até o show que queriam ver. No meio disso, ainda haveria show de Marisa Monte. Sorri ao pensar que essa espera seria meio como aguardar mesa num Coco Bambu, com Marisa Monte de som ambiente. Castigo merecido.
E sorte é o que os organizadores tiveram até mesmo com o cancelamento de Grimes em cima da hora: a solução foi colocar uma das poucas artistas realmente novas no lineup: Kelela. Um show completamente diferente do restante do festival. Para começar, média de idade bem mais baixa, público muito mais diverso (chuto dizer que o mais diverso que vi em muito tempo), músicas bem boas, com uns graves estourados que faziam tremer o chão. Público sabia todas as músicas e letras; claramente um show para fãs. Kelela falou, entre uma música e outra: “Uso um software de tradução no meu twitter, porque 40% das mensagens são em português". Beleza.
Isso e mais uma molecada que se divertia muito no show dos velhos shoegazers do Slowdive me encheram de esperança de uma geração muito mais legal do que pode parecer. Segundo soube, o sucesso de Slowdive com esse pessoal que tem talvez metade da idade da banda (que foi formada em 1989 e que era trilha de muitas madrugadas nos clubinhos alternativos de quando eu estava na faculdade) se deve ao TikTok. E acho bom. Na saída do show, vi um menino indo para o trem, talvez de uns 20 anos. Usava camiseta preta do Slowdive, all star velho preto, calça jeans preta bem straight - parecia saído da fila de entrada do Retrô, nos anos 1990. Há um futuro diferente e muito mais animador do que aquele que se desenha para os fiéis se ajoelham aos pés daquele mórmon coxa-creme do Brandon Flowers.
Saí antes do final do show de Kelela - que, aliás, tem um dos melhores discos do ano; semana que vem falo disso. Precisava pegar desde o começo o show dos Pet Shop Boys.
No Primavera Sound de Barcelona, houve um esforço curatorial em trazer os três maiores nomes da música eletrônica britânica dos anos 1980: Depeche Mode e New Order formaram com o duo Tennant/Lowe a santíssima trindade das pistas e todos continuam a fazer grandes shows já na quarta década de existência. Em São Paulo, havia só Pet Shop Boys - e foi um acerto. Melhor show do festival.
The Cure foi o grande show que sempre é, em todos os sentidos. E não há dúvida alguma: o público saiu com a sensação de ter visto um dos melhores shows da vida e me incluo entre esses; havia visto em um Hollywood Rock muitos anos antes e não perdeu nada da força nesses anos todos.
Pet Shop Boys foi gigante também - apresentou um espetáculo que inclui música boa, estética visual incrível, dinâmica de setlist impecável. Com hits de montão, não tem como dar errado, mas Neil Tennant e Chris Lowe entregam muito mais que isso.
Neil Tennant é um dos caras que mais entende de música pop na história. Sabe que sua banda já teve a imperial phase, o sucesso de público merecido e já tem o nome num capítulo próprio da música pop no século XX, mas ainda assim Pet Shop Boys parece estar num auge que já dura muito tempo. Os dois mantém a banda relevante, sem grandes mutações - não embarcam em modas passageiras, não transformam o Pet Shop Boys em bailinho da saudade. É uma estratégia bem diferente dos Stones, por exemplo, que não se importam em simplesmente seguir uma carreira de carteiradas com sua relevância histórica comprovada. Tennant e Lowe apresentam-se com um espetáculo visual de ponta, extremamente adequado a shows em estádio e com músicas que soam atemporais. É como se você estivesse vendo uma banda que entrega a mesma qualidade de show seja em 1987, seja em 2023. Isso fica evidente nos vídeos bem editados do telão: dialogam com as músicas, com um Neil Tennant jovem “interagindo” com suas versão 2023 de forma natural.
The Cure mostrou porque é relevante até hoje em suas duas horas e meia de show, em que teve domínio total do público. Mas foram os Pet Shop Boys que fizeram o melhor show do festival e, arrisco dizer, do ano.
Teve mais: Beck, El Mató a un Polícia Motorizado, Bad Religion, Roisin Murphy. Mas todos mais ou menos estabelecidos, numa escalação sem muita ousadia e sem querer fazer muita marola.
Ao final, a nova administração do Primavera Sound segurou o empate dentro de casa, jogou pelo resultado e garantiu uma nova edição. Jogou feio, mas poderia ter sido pior.
Ainda não foi dessa vez que o Primavera Sound em São Paulo alcançou a fórmula do original e é justo esperar mais, com o histórico que o PS de Barcelona tem. Nos tristes trópicos, não há sequer uma pretensão de curadoria ou de apontar novos caminhos, o que sempre caracterizou o Primavera barcelonês. Dadas as condições atuais da música pop e a saturação de eventos no ano, pode ter sido o festival possível nesse momento. É pouco, porém.
Talvez tenha sido o pior melhor festival do ano de 2023. Mas, ainda assim, salvou-se por um fio do cabelo desgrenhado de Robert Smith. Para mim, trouxe o melhor show do ano, com Pet Shop Boys, e também a melhor revelação, com Kelela.
Por enquanto, os executivos da nova produtora do Primavera Sound devem mesmo agradecer a todos os santos - desde os mórmons Killers, passando pelos apóstatas do Bad Religion, chegando à Cura Milagrosa de Robert Smith que, com seus milhares de fiéis, ressuscitou esse festival que tinha tudo para dar errado. Que agora andem de joelhos pela reta dos boxes de Interlagos, carreguem suas cruzes naqueles infindáveis metros que separam o autódromo do trem, benzam-se com água benta na mesma quantidade da que negaram aos fãs de Taylor Swift algumas semanas antes. A graça foi alcançada.
POWER! ✊🏼