Já teve a sensação de que foi enganado?
A grande farsa do rock'n'roll, nas eleições do espetáculo.
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1.
Papo reto e sem firulas, que os próximos dias serão intensos.
Escrevo na sexta feira, 4 de outubro. No domingo 6/10 tem eleição municipal e, especialmente nesse cafofo aqui, o foco é em São Paulo.
Como dizia o saudoso Troy McLure, talvez você me conheça de edições anteriores em que falei obsessivamente sobre política, ascensão da direita populista, modelos italianas tatuadas e saradas e, especialmente, os rumos que o nosso Bananão e o mundo têm tomado nos últimos anos.
É sequela da época das Ciências Sociais, faculdade que me deixou preso nesse crack chamado Ciência Política. Desde que frequentei aulas lá na FFLCH não consigo mais passar por eleição de forma tranquila, sem tentar entender algumas questões que estão abaixo da superfície desse grande lamaçal em que estamos.
Tenha em mente que lamaçal é a palavra certa - e não apenas pelo ringue de telecatch que virou a eleição municipal de São Paulo.
Muitos aí ainda devem lembrar que eleições antes eram tão monótonas que até Geraldo Alckmin brilhava. Eleição era pouco mais que um evento que acontecia entre a Copa ou Olímpiada e o fim de ano - mas sem chegar ao ponto de gritaria e dedo no zóio que são esses dois momentos pivotais na vida do brasileiro.
Uma grande número de pessoas só falava de política quando se tratava de reafirmar que “político é tudo ladrão” ou que futebol, religião e política não se discutem. Nem preciso dizer que esse contigente inclui aquele seu tio do almoço de domingo, o seu colega de trabalho que usa gravata feia ou a sua prima que só se interessava por fofoca e fiscalização da vida alheia - em geral, os mesmos que são, hoje em dia, esteio de candidaturas perigosamente viáveis, veja só.
2.
Recentemente, falei de a Revolta do Público, livro de um analista político gringo, Martin Gurri. (se não leu na época e tem interesse, clica aqui). Grosso modo, Gurri traz uma análise interessante, e que pode ser resumida em um ex-tuíte, citando literalmente o meu texto anterior:
a ascensão das redes sociais e a fragmentação da informação evidenciaram uma crise de autoridade das elites dominantes do establishment global. O público (entendido como o cidadão comum) passa a contestar ações e informações que, até então, eram implementadas e difundidas pelas elites culturais, políticas e econômicas de cada país.
Cabe aí nessa explicação a Primavera Árabe, os protestos na Espanha, nos EUA e em outros países no começo dos anos 2010, a eleição de Donald Trump, o Brexit e, finalmente, o 2013 no Brasil. Não é ciência exata: é uma das explicações possíveis, mas faz bastante sentido.
Na época eu não quis abrir outra aba para o leitor no texto anterior, mas tenho uma informação importante para entendermos melhor isso. Gurri se referencia, no título, a dois outros livros: A Rebelião das Massas, do filósofo espanhol Ortega y Gasset, publicado em 1930, e A Revolta das Elites, do historiador norte-americano Christopher Lasch, publicado postumamente em 1995.
O livro de Ortega y Gasset serve mais como curiosidade. Em linhas gerais, o espanhol fala como as classes médias deram origem ao homem-massa, devido a uma percebida “hiperdemocracia” do século XX. Gasset postula, num registro bem próximo de autores mais antigos e antiquados, que democracia era meio que uma perversão da República e uma elite deveria botar freio na “tirania das massas”. O ponto de Gasset, por mais oligárquico que pareça, é mais complexo que isso, mas basta para nós essa generalização para situar o assunto.
O que importa aqui é o livro de Christopher Lasch (1932-1994), cujo título completo é A Revolta das Elites e a Traição da Democracia. Lasch era um historiador igualmente influenciado por Marx, Freud e…Jesus Cristo. Conservador nos costumes, nascido no meio-oeste dos EUA, Lasch se inscrevia no que chamam por lá de “liberal populista” (liberal no sentido gringo, quase esquerda para gente daquelas latitudes).
Em seu livro, Lasch critica as elites liberais que dominaram a vida cultural dos EUA desde os anos 1960, acusando-as de traição dos ideais democráticos da América. Para Lasch, a ética do trabalho, a moral religiosa e a idéia de justiça vindas do senso comum do norte-americano médio eram a chave para uma sociedade igualitária. Segundo o autor, com a ascensão da contracultura, a classe média alta educada que inclui universitários, artistas, intelectuais e os gerentes e executivos do capitalismo (os trabalhadores white-collar) desvirtuaram o potencial democrático dos EUA ao assumir que o “talento”, o intelecto e a educação formal é que deveriam ser o motor da sociedade e, ao mesmo tempo, diferenciar quem era ou não parte da elite. Na perspectiva de Lasch, as antigas oligarquias foram substituídas por novas elites cosmopolitas, inseridas num sistema de pensamento global e que tinham mais a ver com outras elites globais do que com o cidadão médio dos EUA.
Fica clara a referência que Gurri faz ao livro de Lasch: as elites dissociam-se cada vez mais do cidadão médio e o abismo criado causa ressentimento em quem se sente excluído e subjugado. Quando a informação deixa de ser “monopólio” da elite dominante, ocorre a explosão da revolta desse público excluído, segundo a proposição de Gurri.
Tá, e o que isso tem a ver com o que estamos falando?
3.
Aí é que entra o tema desse texto. A eleição de 2024, assim como foram todas desde 2016, é resultado direto das mudanças que vêm ocorrendo nas últimas duas décadas. Figuras marginais da política - Bolsonaro, Trump, Milei - são alçados ao protagonismo e tornam-se depositários de angústias e frustrações de grandes parcelas da população. A antipolítica sempre esteve aí, seja na figura do rinoceronte Cacareco, do macaco Tião ou do médico Enéas Carneiro; porém, nunca esses animais irracionais alcançaram tamanho destaque como agora é conferido aos novos reis do gado direitista.
Antes, o voto de protesto “contra tudo isso que está aí” se materializava meio como uma revolta irônica, quase um voto nulo personificado no candidato dessa fauna esdrúxula e que pudesse representar o maior ‘foda-se’ possível. A intenção era vandalizar um sistema que esse eleitor considerava excludente e pouco representativo. Tudo mudou de figura quando personagens bizarros das franjas da política começaram a ter representatividade - e pior, a gostar do jogo e a tirar vantagem dele.
Um dos ideólogos (talvez o maior) dessa nova direita populista é o manjado Steve Bannon, que comandou a campanha de Donald Trump em 2016. Caiu em desgraça e foi processado por motivos vários, mas continua na ativa. Em uma entrevista com David Brooks, no NYTimes, Bannon cita exatamente Christopher Lasch e fala de bastante coisa que Gurri usa em seu livro. Está em inglês, mas vai nesse link abaixo para ler, se quiser:
https://www.nytimes.com/2024/07/01/opinion/steve-bannon-trump.html
Legalzão que sou, vou poupar seu trabalho e, ao mesmo tempo, aproveitar para segurar o tráfego aqui ao invés de fazer você ir ao NYTimes. Por isso, faço um bem-bolado de tudo o que o meliante falou.
De cara, Bannon solta essa:
"Bem, penso que é muito simples: as elites dominantes do Ocidente perderam a confiança em si mesmas (...) Eles estão cada vez mais desligados da experiência vivida pelo seu povo."
A entrevista toda deixa transparecer bem o modus operandi do ideólogo de Trump, que deixa claro que o ex-presidente talvez seja um moderado, em relação ao que está por vir.
"A esquerda histórica está em pleno colapso. Eles não compreendem que o movimento MAGA (Make America Great Again), à medida que ganha impulso e se desenvolve, move-se muito mais para a direita do que o Presidente Trump. Eles olharão com carinho para Donald Trump."
E, finalmente, mais um outro take de Bannon, sobre a direita européia e, especificamente, Geert Wilders (Países Baixos), Nigel Farage (ideólogo do Brexit), Giorgia Meloni (Itália) e Marine Le Pen (França):
"Fizemos de Nigel um rockstar e de Giorgia Meloni uma rockstar. Marine Le Pen é uma rockstar. Geert é uma rockstar. Falamos sobre essas pessoas o tempo todo."
A sociedade do espetáculo a serviço da extrema-direita.
4.
E, finalmente, chegamos à São Paulo de 2024.
Depois que os conchavos de sempre haviam sido feitos, Pablo Marçal, coach pilantra e mentiroso contumaz, foi enfiado de última hora na corrida eleitoral (ó, aqueles clichês da imprensa hereditária) e pode tirar do segundo turno o candidato à reeleição Ricardo Nunes, que tem como vice um coronel zé-ruela indicado por Bolsonaro.
Bolsonaro fez parte da negociação da frente ampla da canalhice, com Tarcísio, Kassab e a fina flor dos donos do poder de São Paulo. Em tese, uma coalizão vencedora: os quatrocentões elitistas, a Faria Lima, o novo malufismo de Kassab e, finalmente, os novos-ricos da direita populista Tarcísio e Bolsonaro - que, apesar de político velho, não é da velha política. Magoado com Kassab e receoso do protagonismo cada vez maior de Tarcísio, o ex-presidente costurou a entrada de Marçal na disputa.
Agora, Marçal arrisca ir ao segundo turno ou pior. E pode entrar agora um solo bem clichê de bateria do Manifesto Bar: chegamos exatamente no ponto da entrevista de Steve Bannon que citei lá em cima. E a verdade pode ser dura.
Pablo Marçal, entre cadeiradas e canalhadas, é um rockstar.
O apelo de Marçal é exatamente o que sempre movimentou muita coisa na cultura pop e que Steve Bannon, cinicamente e de forma antiquada, sintetizou com a definição de “rockstar”.
Rockstar no sentido mais rasteiro do termo: calça de couro, badulaques de ciganinha, cabelão com laquê, estampas de oncinha, tatuagem cafona, bota de couro de cobra e por aí vai. Meio que uma mistura de Steven Tyler, Kid Rock, Vince Neil do Motley Crüe, David Lee Roth ou qualquer zé-ruela que cante em bandas como Extreme, Mr. Big ou Journey. Gente com aquela vibe Cocaine Cowboys do Eagles, que canta com o pé em cima do retorno fazendo careta, faz solo costas com costas com o guitarrista ritmíco, manda o roadie convidar umas meninas da plateia para ir para o backstage. Quem sabe até aquele vocalista de bandana que manda pendurar a bandeira Confederada no fundo do palco e grita para a plateia “I wanna rock!”.
É esse tipo de rockstar que está na cabeça de Bannon. O conservadorismo em estado puro, rockão burro disfarçado de transgressor. Rock populista para a direita populista, feito para o público que usa camiseta de Jack Daniels e faz o sinal do demo com os dedos quando a câmera passa num travelling.
Marçal, assim como os outros que Bannon citou - e até os que não citou, como Milei, que já teve banda de rock clássico - tem esse carisma de rockstar clichê.
É o carisma do 171. Do cara do golpe do bilhete premiado que você encontra na rua e acredita na história que ele conta. Do colega de trabalho que exagera o currículo. Da influencer que afirma ter estudado no MIT. Do primo que defende o empreendedorismo, mas se pendura em negócios (e negociatas) públicos.
5.
Não espanta, portanto, que Marçal mobilize o voto de “protesto”. Junta em torno de si todos os recalcados que se sentem excluídos, explorados pelo Estado, humilhados pelos intelectuais, artistas e qualquer um que tenha frequentado universidade pública. É o público frustrado pelo cotidiano, mas que quer ter uma redenção e ser ‘vingado’.
Marçal protesta contra tudo isso que está aí com os mesmos movimentos cronometrados e coreografados de um vocalista de rock de arena. É espetáculo feito para despertar as emoções no momento certo, como os fogos de artifício que sempre estouram quando Paul McCartney toca Live and let die. Dá ao público o que ele pagou para ver.
A direita populista, na concepção de Bannon, é rockstar porque agrada a uma audiência semelhante ao fã de rock clássico que diz “hoje nada presta, antes é que era melhor”. Da mesma forma, vale para os fãs de Marçal que acreditam que hoje tudo é mimimi e que o mundo está ficando mais chato. Daí a redenção que sentem pela postura confrontacional e sem limites de Marçal.
Deu tão certo que Marçal já atraiu para si uma boa porcentagem do público que era de Bolsonaro e, inclusive, à revelia do próprio ex-presidente. Mais uma profecia de Bannon: um movimento que prescinde do precursor. Marçal é a versão atual do “contestador anti-sistema” que foi representado por Bolsonaro em outra temporada.
No cartaz do espetáculo da direita populista, Marçal, Nikolas e outros são os que aparecem em letras maiores, nas primeiras linhas, e Bolsonaro é o legacy act - na linguagem do show business, o artista que já está na descendente de popularidade, mas ainda atrai um público saudoso, meio como um Deep Purple no meio da molecada do Trap do Rock in Rio.
A metáfora de Bannon serve para resumir bem esse lamaçal todo, mas o que importa mesmo é que essa estratégia que já está em curso há alguns anos trouxe um elemento que sempre faltou à direita tradicional: um verdadeiro apelo popular.
O objetivo de Bannon talvez seja reproduzir aquele sentimento comum a adolescentes que começam a ouvir Rock (para ficar na metáfora proposta). São fãs que abraçam o gênero como se fosse a própria vida e acreditam que aquele cara em cima do palco canta sobre algo que bate diretamente no coração. São esses mesmos fãs que, depois, irão se fechar a novas referências ou influências e voltarão sempre ao Rock clássico, com as músicas que ainda dizem as mesmas coisas e seus clichês imutáveis. É, no fundo, a pura essência do conservadorismo.
Ever get the feeling you’ve been cheated?
_John Lydon, ou Johnny Rotten, vocalista dos Sex Pistols, no último show da banda, em 1978.
Vale a pena ler também o livro de 2014 da Nadia Urbinati, "Democracy disfigured", em que ela categoriza muito bem as distorções que a democracia representativa vem sofrendo nas últimas décadas. Uma dessas categorias é o populismo. É um livro MUITO teórico, mas excelente.