Se ainda não assina, clique no botão abaixo para receber um texto novo toda semana. Se já é assinante, você pode mudar para a modalidade paga.
Intro.
“Fogo na Luis Coelho!” dizia o meu post de Facebook, com uma foto de chamas alaranjadas, em close.
Para quem não é de São Paulo, a rua Luis Coelho é a primeira paralela da Avenida Paulista do lado do Centro, entre a rua Augusta e a Frei Caneca (eu morava exatamente nessa esquina da Frei Caneca). Para quem é jovem, Facebook era uma rede social que uma vez chegou a ser usada por pessoas com menos de 65 anos. Pelo menos era assim há 10 anos.
Era junho de 2013 e as ruas estavam no modo full pistola. Menos de meia hora antes desse post, eu havia passado pelo meio de um protesto gigante para conseguir chegar em casa, uma vez que a Paulista era o lugar preferido para manifestações desde sempre.
Minha foto ardente aparentemente viralizou na família. Em menos tempo do que se pode dizer “não é por trinta cen…”, meu irmão mais velho, atualmente coronel do Exército, já estava ao telefone com minha mãe.
-Fale com seu filho! - disse o preocupado fardado - Ele fica participando aí desses protestos, depois ainda leva uma bala de borracha na boca. Vai ficar retardado e você é que vai ter que cuidar dele, trocar fralda e tudo.
Minha mãe ligou para mim para contar sobre essa conversa. Na varanda do apartamento, eu segurava o celular com uma mão e a espátula na outra, virando as linguiças e o belo pedaço de carne que eu havia acabado de colocar na pequena churrasqueira. Nesse dia, havia ficado tão feliz com a brasa na temperatura certa que até postei uma foto no Facebook. 😇🥩🔥
1.
Já havia tirado as linguiças do fogo e cortado em cima de uma tábua, sob o olhar atento de uma bulldoguinha francesa esfomeada. Agora eu tomava conta da carne na grelha e olhava para a rua. Na Augusta, burburinho de vozes, gritos, alguns rojões disparados de vez em quando. Um grupo de manifestantes descia pela Augusta e eu conseguia ver bem o movimento, do meu ponto de observação privilegiado no nono andar. Na esquina da Augusta com a Luis Coelho, uma barreira foi criada com alguns pneus, caixas, sacos de lixo, mesas de bar e qualquer tipo de detrito. Logo seria incendiada pelos manifestantes, todos com rostos cobertos por panos. Observei, curioso.
Olhei para a esquina da Luis Coelho com a Frei Caneca no exato momento em que um caminhão cinza da Tropa de Choque estacionava. Vários soldados com coletes e capacetes pularam da parte de trás, já com armas em punho, uma verdadeira Blitzkrieg bem coreografada. Outros dois carros da polícia fecharam a esquina e os soldados tomaram posição. Acompanhei a coreografia do Choque, com um dos soldados ajoelhado numa pose heróica de boneco articulado e levando ao ombro o lança-granadas. Reparei que todos usavam máscaras de oxigênio e óculos de proteção. Acompanhei com o olhar a parábola da granada que deixava um traço de fumaça no ar, o pavio já aceso, até cair no meio da barricada dos manifestantes. Aos poucos, a fumaça começou a subir.
Corremos para fechar todas as janelas do apartamento, antes que a fumaça do gás lacrimogêneo, vinda das inúmeras granadas que agora voavam pelo ar, chegasse até o nosso andar. Ótimo projeto arquitetônico de Jorge Wilheim - apartamento arejado e todas as janelas dos quartos davam para a rua. Na sala, um janelão que ia do chão ao teto. Malditos arquitetos modernos.
Colocamos panos no máximo de frestas de janelas e portas e ficamos de olho no que acontecia na rua, que agora estava totalmente imersa na fumaça e onde só dava para ver as luzes laranja dos disparos do Choque. Na esquina da Augusta, víamos as barricadas em chamas e manifestantes que se moviam por trás da fumaça com rostos cobertos, para arremessar pedras e o que mais estivesse à mão. Da esquina oposta, ouvimos o barulho característico que anuncia a chegada da infantaria do Choque (e que já ouvi outras vezes): o barulho de dezenas de cassetetes batendo nos escudos em sincronia, estilo Legião Romana, num prenúncio do avanço de um bloco de soldados para dispersar a multidão.
Olhei para a mesa atrás de mim. Só vi a bulldoguinha francesa sorrateiramente tentando puxar a toalha da mesa com a pata, num plano meticulosamente arquitetado para que a tábua com as linguiças cortadas viesse junto.
2.
Junho de 2013 ainda não foi devidamente entendido (ah, sério mesmo? 😱). Frase clichê, mas que é bem correta: é um momento de inflexão que teve inúmeras reverberações até hoje. Há analistas de tudo quanto é matiz a chegar a todas as conclusões possíveis, mas não parece fácil cravar uma hipótese que seja definitiva. Muitos comentaristas colocam essa data como o começo de uma radicalização do cidadão reacionário médio, que resultou naquilo que se convencionou chamar de Bolsonarismo, anos depois. Outros afirmam que foi um movimento autêntico, mas sequestrado por forças reacionárias logo depois. Alguns mervais por aí ainda mantêm que foi o início de algo potente (ui!), um alecrim dourado na vida pública brasileira, a Lava-Jato. O gigante adormecido finalmente estava em movimento, diziam.
Quem estava lá lembra: não havia uma única pauta unificadora, havia gente que você jamais imaginaria que sairia às ruas e, mais interessante ainda, não havia um líder ou um conjunto de líderes facilmente reconhecíveis. Muitos bateram no peito para falar que não era ideologia - por esse viés seria, simplesmente, o esgotamento total (e talvez seletivo) da paciência da população após anos e anos de uma putaria infinita na vida pública.
Ainda há muito a se falar sobre isso e é assunto complexo. As consequências (imputadas ou não aos atos de 2013) ainda devem ser bem pesadas e pensadas. Para muitos, parecia que finalmente haveria algum acontecimento cívico pivotal num país acostumado, por um lado, às acomodações improváveis e, por outro, à violência extrema e à perversão incivilizada. O espírito geral parecia ser quase de uma revolução, com gente comum entrando nos palácios, tomando as ruas, apontando o dedo no rosto de quem mandava.
Os anos seguintes provaram que não era bem isso e que logo um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo, já chegaria por aí. Na ressaca dos acontecimentos, ninguém entendeu muito o motivo dessa explosão que desapareceu tão rápido quanto surgiu. Ou melhor, quase ninguém.
3.
Martin Gurri é um tiozinho de bigode do meio-oeste americano, nascido em Cuba, em 1949. Fugiu do regime socialista de Castro com os pais e fez sua vida nos EUA. Tradicional e conservador, é daquele tipo que usa camisa social e calças bege, dirige um sedã Ford, faz churrasco na varanda de casa. Trabalhou a vida toda no serviço público - no caso, na CIA. Mas nada de emoção: era um burocrata no departamento de Open Source Information e fazia clippings informativos e análises de política internacional com base em notícias que saíam na mídia dos países sob sua responsabilidade. Com cara de vendedor de carros usados, talvez nem mostrando a carteira funcional e contando umas lorotas de insider conseguisse chamar a atenção de Jamie Lee Curtis.
Esse anti-herói tem um mérito inesperado: segundo muita gente esperta, Martin Gurri acertou na mosca numa explicação para o que aconteceu no mundo de 2000 para cá (e dá para incluir aí o junho de 2013 no Brasil). Aposentado da CIA depois de uma carreira sem grandes eventos, passou a ser consultor em política internacional e análise de risco para empresas dos EUA. Com os horários flexíveis da consultoria, escreveu um livro que, silenciosamente, passou a ser lido cada vez mais nos últimos anos: The Revolt of the Public and the Crisis of Authority in the New Millennium (A Revolta do Público e a Crise de Autoridade no Novo Milênio), que foi publicado em 2014.
O livro de Gurri passou em branco na época nos grandes jornais e nunca teve uma resenha propriamente dita em nenhum caderno cultural. Em seu livro, Gurri manda quase todas para o gol (ou sei lá como se chama isso em algum esporte que joguem lá naquelas latitudes): sua análise inclusive cai como uma luva no Brexit e na eleição de Trump, eventos posteriores ao lançamento do livro. Tanto que Gurri fez uma edição revisada, em 2018, para tratar desses temas.
A tese defendida por A Revolta do Público… é, em linhas gerais, sobre como a ascensão das redes sociais e a fragmentação da informação evidenciaram uma crise de autoridade das elites dominantes do establishment global. O público (entendido como o cidadão comum) passa a contestar ações e informações que, até então, eram implementadas e difundidas pelas elites culturais, políticas e econômicas de cada país.
As instituições que herdamos do século XX, aponta Gurri, são hierárquicas e estamentais, uma herança da Revolução Industrial que criou grandes corporações e grandes aparatos estatais ao mesmo tempo, num consenso que seguiu vitorioso por um bom tempo até o século XXI.
Um sistema institucional centralizado e hierarquizado depende de um semi-monopólio da informação para ter legitimidade, sustenta Gurri. Na era da fragmentação das fontes de informação, o discurso e a visão de mundo das elites permaneceram estanques e se distanciaram cada vez mais do público. Um abismo se formou, ainda segundo o autor, entre os gatekeepers da sociedade que ditaram durante décadas o que deveria ou não ser abordado, discutido e adotado em termos políticos, sociais, econômicos e culturais e o público em geral, para quem as utopias prometidas desde o pós-Guerra não se materializaram.
Com base em sua experiência, Gurri conta como, até o início do século XXI, seu trabalho no Departamento de Open Source Information consistia em resumir e analisar o que acontecia em diversos países. Para isso, lia dois ou três jornais diários e assistia aos canais que dominavam a audiência. Em suas palavras, “bastava procurar o equivalente ao New York Times do país”. A partir da expansão da internet no começo dos anos 2000, isso passou a não ser mais suficiente.
Ao mesmo tempo, informado pela Primavera Árabe dos anos 2010, pelos protestos do Occupy Movement na América do Norte e dos Indignados na Espanha, Gurri constrói sua tese de que houve uma movimentação sísmica na vida pública sem que houvesse um impulso ideológico para tanto - ou seja, não se tratavam de movimentos de direita ou de esquerda, democratas ou autoritários, revolucionários ou conservadores. Sequer havia a dicotomia secularismo x religião, tema importante nos países árabes. Era, na verdade, uma revolta geral contra as elites, baseada no acesso a novas fontes de informação e disseminação de informação. Em bom português, o famoso “Contra tudo isso que está aí”. É como se, pela primeira vez em muito tempo, o cidadão médio estivesse farto de tudo e saísse da sua inércia habitual.
No filme Network (1976), direção de Sidney Lumet e roteiro do gênio Paddy Chayefsky, um âncora de telejornal em decadência, Howard Beale, toca o foda-se no ar e vira uma celebridade populista da noite para o dia ao inspirar os espectadores à revolta. É como se Beale se materializasse em cada um desses lugares e incitasse a fagulha da desobediência, para logo desaparecer. E foi, de fato, uma revolta aparentemente espontânea.
Gurri, em resumo, defende que o consenso de elites se tornou cada vez mais dissociado do cidadão médio e levou a uma revolta silenciosa, que fermentou por anos até o ponto de não-retorno. Em um determinado momento, a avalanche de informações, a fragmentação dos meios de comunicação e a crescente concentração de dinheiro e poder em poucas mãos criou as condições para que a revolta explodisse do mundo virtual para o real. Em algum momento dos anos 2000, o público decidiu gritar:
"I'm as mad as hell, and I'm not going to take this anymore!"
(Estou muito puto e não vou mais engolir isso!”, numa tradução livre e sem censura da frase de Howard Beale em Network).
4.
A Revolta do Público… traz um ponto importante: todos os movimentos que Gurri cita não tinham um programa claro de tomada do poder, ou um caráter revolucionário - como ele mesmo disse sobre o 6 de janeiro nos EUA, “se fosse mais Bolchevique e menos QAnon*, teríamos problemas”
*QAnon, para quem não sabe, é um movimento dos doidinhos de plantão na internet, a espalhar teorias da conspiração sem pé nem cabeça - e caso tenha cabeça, com chapéu de alumínio nela).
Era uma espécie de Niilismo institucional. Era a destruição pela destruição, sem ter o que colocar no lugar. Não por acaso, foi o que abriu um flanco por onde quem estava nas franjas pudesse assumir um papel que, anos antes, jamais seria possível.
No Brasil, Bolsonaro é o caso clássico da ocupação desse vácuo. Não teve qualquer tipo de participação no movimento de 2013 e continuou um deputado do baixo clero no Congresso até mesmo depois do Impeachment de Dilma Rousseff em 2016, onde teve seus 15 minutos de infâmia no plenário. No ano seguinte, foi candidato à presidência da Câmara e teve somente dois votos além do próprio, tamanha a sua irrelevância. A reviravolta: em 2018, foi eleito presidente da República. Saqueou o espólio do que veio depois de 2013, como uma hiena, apesar de não ter sido protagonista ou sequer coadjuvante nos atos de protesto. Anos depois, já como presidente, Bolsonaro falou orgulhosamente que não estava no poder para construir nada - que seu papel era desconstruir e desfazer. Em teoria, a mais pura expressão do niilismo institucional.
A direita radical populista foi bem-sucedida em atrair a revolta difusa contra tudo e contra todos, com um candidato anti-sistema e outsider, em contraponto à autoridade falida das elites. Foi o template iniciado por Trump nos EUA em 2016 e seguido por Bolsonaro. Com um programa de destruição calculada, a direita passou a ter a primazia das ruas, após décadas de domínio da esquerda (como em Maio de 1968 ou nas greves dos anos 1970-1980). Nessa medida, pode-se considerar que as chamadas Jornadas de 2013 abriram a porta para que essa nova direita populista assumisse bandeiras “revolucionárias" - no caso, com muitas aspas.
Uma pequena pausa aqui. No caso brasileiro, o candidato anti-sistema de preferência talvez fosse outro que não Bolsonaro. A Lava-Jato, na esteira dos atos de 2013, desacreditou mais ainda a política tradicional e as elites desgastadas, cutucando o público que já estava em revolta. Talvez o fato de Bolsonaro e não Moro ser o candidato anti-tudo ainda precise ser estudado, mas a janela de oportunidade aí passa pela atuação da Lava-Jato, em grande medida.
A revolta do público detectada por Gurri foi instrumentalizada pela direita populista com pautas que, na superfície, parecem radicalmente libertárias: a defesa intransigente da liberdade de expressão absoluta, as demandas de uma parcela da população que se sente ameaçada pelas políticas de inclusão e diversidade, a desconstrução de políticas públicas e do Estado, o ataque a instituições públicas. Tudo o que é abraçado pela direita populista soa como se fosse uma luta anti-autoritária contra o status quo, mas na verdade reforça um viés reacionário que, ao fim e ao cabo, vem da mesma concepção de sociedade que gerou a autoridade, agora contestada, das elites atuais.
5.
O modelo de sociedade que Gurri cita como hierárquico e centralizado foi gerado a partir do Iluminismo e das revoluções do final do século XVIII; basicamente, o que se convencionou chamar, em História, de Idade Contemporânea. A vitória sobre os totalitarismos do Eixo na II Guerra Mundial reafirmou a tradição Iluminista e, finalmente, tornou hegemônico o modelo de democracia representativa ocidental. O Liberalismo (no sentido político, progressista), em certa medida, tornou-se a régua pela qual as sociedades se organizavam.
A partir da segunda metade do século XX, em ritmo lento, mas constante, índices de pobreza extrema caíram no mundo todo, direitos humanos tiveram avanços notáveis e as instituições se fortaleceram em boa parte do mundo. Hoje, regimes autoritários clássicos são minoria, a despeito das democracias imperfeitas que existem ao redor do planeta. Não foi o bastante: a expectativa de que instituições, Estado e grandes corporações conduziriam a uma utopia de bem-estar e riqueza não se manteve por muito tempo.
O constante progresso econômico e social do pós-Guerra durou até meados dos anos 1970 na maior parte das sociedades ocidentais; a partir daí, crises, recessões e até mesmo o progresso tecnológico levaram a um sistema mais concentrado e exclusivo. Na competição restrita no topo da pirâmide, estabeleceu-se um modelo de democracia que privilegia o consenso entre os grupos dominantes (e razoavelmente homogêneos), ao mesmo tempo em que aliena a base. A insatisfação do público, excluído e controlado por um discurso vindo de cima, teria levado à revolta da “maioria silenciosa”.
Ao mesmo tempo, a esquerda saiu de uma posição revolucionária e de transformação utópica para participar da competição eleitoral entre as elites. As propostas da esquerda saíram do plano do “sonhar”, da utopia, e passaram a ser mais realistas; como alguém já definiu, a esquerda passou a focar na administração do possível e da escassez, aceitando o jogo democrático e, ao mesmo tempo, as regras não-escritas do sistema, como responsabilidade fiscal e austeridade monetária. No outro lado do consenso, a direita institucionalizada e racional contrabalançou seu modelo econômico capitalista com uma atitude progressista em termos socioculturais, também em direção ao centro. Para quem não se sente representado - e é muita gente, por diferentes motivos - os dois lados agora parecem ser até mesmo indistinguíveis.
Nessa perspectiva, aqueles que se sentem excluídos assumem “verdades" que simplesmente são o oposto do que a autoridade falida das elites postula. Vem daí o bingo completo do WhatsApp da direita populista: a Lei Rouanet privilegia alguns poucos, Universidade pública é local de doutrinação ideológica, o Estado atrapalha a meritocracia e a livre iniciativa, políticos invariavelmente roubam nosso dinheiro com corrupção, políticas de diversidade e inclusão dividem as pessoas e criam privilégios, leis existem para coibir e tirar a liberdade, legislação trabalhista é entrave para o empreendedorismo e por aí vai.
6.
O período de Bolsonaro na presidência mostra o quão superficial é a “revolução” da direita populista. O ex-militar era um candidato anti-sistema que, ao assumir o poder, não levou a cabo seus projetos mais extremos e tudo o que conseguiu destruir foi logo depois revertido no governo seguinte. O que foi destruído, ao final, deveu-se mais à incompetência e à inação do que a um caráter revolucionário.
Especificamente no Brasil, o movimento de domesticação de Bolsonaro demonstrou que a revolta do público é apenas uma oportunidade de monetização para essa direita populista da geração 1.0. Um político com 30 anos de carreira nas sombras do baixo clero não é exatamente um ícone da anti-política pronto a liderar uma revolta contra o sistema, por mais que sua retórica seja essa.
Isso tudo pode mudar de figura com a próxima mutação do chorume populista. Na Argentina, Javier Milei é outro animal - outsider de fato, bem mais folclórico, radical e, ao mesmo tempo, muito mais conectado ao mundo do algoritmo das redes sociais. No Brasil, um equivalente surgiu na figura de Pablo Marçal, coach picareta e golpista petequeiro, com milhões de seguidores na internet e que sabe como usar os instrumentos ao seu alcance - e sem escrúpulos para isso.
Ambos surgiram do universo digital e, não por acaso, já se tornaram alvo da cooptação da direita tradicional. Talvez não resistam muito tempo como outsiders. Milei se associou com o jurássico pilantra e nepobaby da ditadura Maurício Macri, ao passo que Marçal já foi procurado pelos mesmos empresários que viabilizaram a campanha de Bolsonaro e recebe conselhos de João Dória, notório surfista calhorda das ondas anti-política, mas enfiado até o pescoço no lamaçal do establishment conservador.
Niilismo institucional é um bom negócio só até determinado ponto e quem agora sobe no barco de Milei e Marçal sabe disso. A direita populista até então marginalizada foi mais rápida em instrumentalizar a revolta do público detectada por Gurri, mas o seu objetivo não é desmontar a sociedade hierárquica que dizem combater; é, na verdade, mudar para que tudo continue da mesma forma, só que com outras moscas - eles mesmos - a voar ao redor.
O pânico se instalou em quem disputa a eleição com Marçal. O que fazer? Fugir do debate? Criar memes engraçados? Cantar o hino nacional com linguagem neutra? Fazer a revoltadinha que tem costas quentes e olha para o coach com cara de “você estragou o almoço do papai"? Ou, quem sabe, fingir demência e continuar a acreditar que os seus maiores apoiadores não estão costeando o alambrado para se juntar ao coach?
Não há resposta fácil, mas há uma certeza: Marçal não é a autêntica personificação da revolta do público, do niilismo institucional, do “vamos acabar com tudo isso que está aí!”. É só mais um charlatão que a direita lança mão, de vez em quando, para continuar a nutrir a fábula de um ‘sistema’ que ameaça a liberdade. Antes eram os otários fardados de verde oliva; agora, é gente de terno feio e oratória de pastor evangélico.
Bolsonaro, Marçal e coaches vários estão aí apenas para bater a carteira do público, por mais confusão que causem. São simplesmente os jagunços de quem realmente manda e que não arriscaria dinheiro em nada que seja realmente revolucionário. O coach pau-mandado pode até levar a eleição e assumir - mas, como já aconteceu no passado, não vai passar no moedor de carne das elites que ele supostamente está aí para derrubar, como creem muitos de seus apoiadores.
Epílogo.
De volta ao livro A Revolta do Público…, Martin Gurri acerta em linhas gerais: a revolta do público é palpável e a alienação das elites, idem. Mas a análise de Gurri parece muito voltada à sociedade ianque e suas idiossincrasias. Ao final, o público do qual o livro trata é sinônimo de classe média, com as angústias e demandas típicas de quem se equilibra entre dois extremos. A sensação de se estar cada vez mais perto da base da pirâmide e longe demais do topo é o principal combustível da revolta percebida. Nos EUA e Europa, o conflito é entre dois lados, pela hegemonia sobre o modelo de sociedade ideal. Não é revolução, mas tem muito potencial de “chacoalhar o coreto", como dizia Paulo Francis. Gurri acredita que uma renovação radical, ou até substituição de elites, é a única solução possível.
No Brasil, essa equação se coloca de outra forma. A classe média, que foi um dos motores de junho de 2013 e da guinada em direção à direita populista a partir de 2016, é de fato um poder significativo em regiões como o interior de São Paulo ou a região Sul. Sua revolta com a República de coalizão vigente no Brasil desde 1985 tem muito a ver com o panorama que Gurri analisa em seu livro. Mas há também um outro contingente populacional excluído que é ainda maior e que tem outras demandas, frustrações e aspirações.
Em última análise, a revolta da classe média no Brasil tem um certo viés elitista, no sentido de querer se afastar ao máximo da grande base miserável da pirâmide social brasileira. A ‘traição’ das elites, nessa perspectiva, é por abandonar seu aliado natural, a classe média, deixando-a à própria sorte na luta contra a ascensão da base pobre. A não-revolução de Bolsonaro, Marçal e outros tira sua força exatamente daí, mas também pode ser a ruína desses charlatões - a revolta do público é real, mas dada a situação, a classe média sempre irá cerrar fileiras com as elites existentes, mesmo que isso signifique acomodar as diferenças num grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo.
No Brasil do capitalismo periférico, essa revolta do público, representada pela ascensão da direita populista, tem sido tema central para as camadas média e alta da população - ou seja, um círculo mais ou menos pequeno. Não é de se estranhar que essa discussão seja tão circunscrita. A mídia que cobre dia sim e outro também as disputas do Judiciário com outros poderes, ou dá palco para Bolsonaro, parece falar para um país que se auto-define à imagem e semelhança do Brasil urbano laico e não demonstra muita vontade de cobrir e entender o que acontece nas periferias dos grandes centros ou no interior rural do país. Tudo o que fica de fora desse recorte soa estranho, exótico, incompreensível. Talvez, por isso, confunde-se a revolta da classe média com uma rebelião muito mais ampla e gaste-se tanto tempo em discutir se o Brasil está ou não mais reacionário.
A revolta da classe média será em algum momento aplacada por mais uma acomodação com a elite, como tantas que já existiram. Já a outra revolta, que ainda não tem nome, continua a ser alimentada e fermentada no escuro do Brasil que não aparece nas notícias. Uma hora dessas talvez isso exploda, com demandas muito mais radicais do que as de agora.
E eu só quero ver o que vai acontecer quando Zumbi chegar.