Quando ouço a palavra cultura
A lenta agonia de uma livraria, numa típica história paulistana.
Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.
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Quando entrei na Livraria Cultura pela primeira vez, o que notei logo de cara foi o teto baixo.
A iluminação meio cavernosa e as estantes abarrotadas de livros ajudavam no aspecto claustrofóbico - já nem cabiam mais volumes. Tanto que havia pilhas e mais pilhas de livros em mesas e nos cantos. Muita gente dentro. Alguns deslocados circulavam meio que em fila indiana entre os grupos de bem-vestidos homens e mulheres (estas, em franca minoria). Eu estava numa dessas filas de avulsos - afinal, não conhecia ninguém ali. Não havia muita gente jovem nas rodinhas de conversa. Na verdade, quase ninguém.
Vi um professor da faculdade num dos grupos que conversavam animadamente. Ele era o único professor que dava aula vestido com um terno (completo, para fazer jus ao nome, com colete). Era criador da poesia Práxis, autor reconhecido e parça de Umberto Eco. Mas a única pergunta que os calouros faziam todos os anos era: “Professor, é verdade que o senhor conheceu o Jim Morrison?” Depois de parecer lembrar da cena por alguns segundos, ele respondia, como se fosse algo banal: “Sim, ele nos conheceu. Era bem quieto, chegava lá e ficava olhando. Era bem tímido, quase não falava. Mas não dei aula para ele não, ele é que ia aos encontros do grupo de que eu fazia parte, sentava lá e ficava ouvindo".
Esse grupo aí era de alguns escritores da California ou visitantes, incluindo uns beatniks como Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti. Em algum momento, Ítalo Calvino também passou por lá.
Passei reto sem nem olhar para o lado dele. Eu o conhecia das aulas, mas nessa época ele nem sabia quem eu era. Mais alguns meses e escrevi num trabalho um texto que ele gostou e conversamos sobre política e Talking Heads. Mas isso foi bem depois.
Nessa época eu havia chegado a São Paulo há uma semana. Fui conhecer a livraria de que tanto falavam. Como esperado, para mim parecia algum ponto de encontro de intelectuais; com certeza em Londres, Paris ou Praga devia ter alguma assim. Não que eu soubesse: nunca havia ido a nenhuma dessas cidades.
Alguns dos intelectuais das rodinhas saíam da livraria e pegavam taças de vinho numa lanchonete que existia perto de uma das colunas do Conjunto Nacional. Achei incrível e pensei em fazer isso todo final de semana. Depois pensei que uma taça de vinho desequilibraria meu orçamento e achei melhor não. Mas continuei a ir até lá religiosamente, todo sábado. Nessa época, creio que a livraria fechava às 18h - talvez até antes. Passava sempre por todas as estantes, tirava um livro ou outro para ler um trecho, devolvia, voltava a fazer o mesmo.
Fui ter dinheiro para comprar um livro só muitos meses depois - Lolita, de Nabokov.
Durante bons anos, a livraria existiu nessa caverninha em uma esquina da parte interna do Conjunto Nacional. Passava por lá quando saía do cinema - em geral, uma sala gigante onde vi alguns grandes filmes. Lembro especialmente de Cassino, de Scorsese, que valia bem a pena ver naquela tela.
Existiam alguns cinemas na galeria do Conjunto Nacional: esse gigante era o Cine Astor. Havia ainda o Cinearte, no mesmo piso, e alguns que ficaram esquecidos, fechados há muito tempo, que eram as duas salas do Alvorada (acho que era esse o nome), subindo pela escada rolante.
Uma vez, eu estava na fila para ver algum filme independente americano no Cinearte e observava a fila gigantesca que dobrava a esquina para o filme Titanic, no Astor. Um casal saiu irritado ao dar de cara com o aviso de ingressos esgotados para o filmão romântico. A menina falou “Vamos ver o que tem nesse cinema aqui, deve ter algum filme para vermos". O namorado, altamente contrariado e talvez tendo que segurar o abalo na sua masculinidade frágil por não poder se emocionar em primeira mão com o destino de Jack no naufrágio histórico, rebateu de pronto, irritado: “Ah, nessa cinema aí nunca tem nada! Vamos embora!” E saiu batendo pezinho pelo Conjunto Nacional.
Depois de algum tempo, a livraria mudou de lugar. Uma reforma grande numa área central do Conjunto Nacional criou um espaço completamente novo para a Cultura. Num final de semana, cheguei lá todo pimpão e vi a esquininha a que estava acostumado fechada por tapumes. Sem entender, andei sem rumo, até ver que havia uma nova Cultura: reluzente, iluminada, sem o aspecto de porão de cidade européia que havia na livraria que eu frequentava até então.
Tudo era mais claro, mais bonito, estantes em ordem, muito mais espaço. Madeira clara por todo canto. Parecia até algum ponto de encontro de intelectuais; com certeza em Oslo, Estocolmo ou Copenhague devia ter alguma assim. De fato, algumas rodinhas de bem-vestidos conversavam entre os livros, mas agora era mais fácil andar pelos amplos corredores. Rodei pela livraria toda, passei por todas as estantes, tirava um livro ou outro para ler um trecho, devolvia, voltava a fazer o mesmo.
A esquininha da livraria original continuou na história: virou a filial da Cultura só para livros de arte. Gostei. Frequentei muito também e dobrei o tempo que passava no Conjunto Nacional, com sucessivas visitas a uma e a outra.
Em algum momento dos anos 2000, correu a notícia de que o Astor iria fechar. Aquele cinema gigante com alguns milhares de lugares - o que já era raro na época - ficava num ponto bem valorizado da cidade, valorizado demais para um cinema. A conta não fechava mais, dizem. A concorrência com salas de shopping centers era grande e o público de cinema de arte não dava conta de lotar a casa.
Alguns possíveis novos inquilinos eram comentados. Expansão da empresa de telemarketing do andar de cima era uma possibilidade. Outra era a abertura de uma igreja pentecostal. Era um movimento que acontecia em bairros e cidades do interior: a área e a estrutura de um cinema eram adequadas para os cultos que atraíam muita gente - logo, algum cinema em dificuldades era sempre alvo de pastores a fim de um teto para suas pregações.
Como acontece nessas terras bandeirantes, acendeu-se o sinal de alerta. Para quem não sabe, o Conjunto Nacional tem pedigree e muita gente de sobrenome antigo ainda tem escritórios no prédio acima; além disso, gente endinheirada vive nos grandes apartamentos residenciais que poucos sabem que existem ali. O Fasano já foi no Conjunto Nacional, no terraço, e hoje no mesmo lugar existe o Blue Note, bar de jazz e MPB com preços extorsivos. Talvez aguentar um trânsito constante do populacho que frequenta igreja pentecostal fosse demais para um símbolo tão grande de pujança paulista. Em menos tempo do que se pode falar “ei, e se colocarmos outro negócio nes…” a Livraria Cultura pegou o espaço para si e expandiu mais ainda seu domínio sobre esse quarteirão da avenida Paulista.
Rei morto, rei posto: a Cultura virou a livraria com maior área construída em toda a América Latina e, além do espaço do antigo cinema, passou a ocupar não só seus endereços anteriores como ainda mais dois dentro do conjunto Nacional, com lojas exclusivas de editoras grandes. Um aporte de capital de um grupo de investidores estava em negociação e, em breve, unidades da Cultura brotariam por todo o país, numa expansão bem parecida com a da Fnac francesa ou a Barnes and Noble norte-americana.
Nenhum lugar para ir, a não ser para o alto. Quem poderia pensar diferente?
Aprendi muito nos corredores da Livraria Cultura. Olhava todos os livros que não poderia comprar, escolhia cuidadosamente os que cabiam no orçamento, aproveitava correndo alguma pechincha que talvez ninguém ainda tivesse descoberto. Foi na Livraria Cultura, ainda no espaço antigo, que vi pela primeira vez um livro da NYRB Classics - o melhor selo literário do mundo, com cuidadosa curadoria e olhar atento a todos aqueles autores que valem a pena, mas que saíram de catálogo ou que nunca foram sucesso de vendas. Muitas vezes eu sequer sabia quem era o autor: via na estante e tentava descobrir do que se tratava, mas o selo já indicava que poderia ser uma boa surpresa.
Comprei muita coisa que não se encontrava em lugar algum, naqueles tempos em que a internet ainda era mato e Amazon era só um corregozinho. Os atendentes na Cultura eram altamente qualificados e se orgulhavam disso: você poderia falar o nome de um autor completamente desconhecido que, se não soubessem do que você falava, aprendiam rapidinho. Indicavam livros sem seguir o jabá de editora. Mantinham uma organização muito criteriosa: jamais aparecia, por exemplo, um livro de comédia involuntária do futuro youtuber Olavo de Carvalho ao lado da obra de algum autor alfabetizado. A Livraria Cultura era um lugar de aprendizado, conhecimento e descobertas. Você começava a ver rostos familiares, descobria qual era o livreiro (uma ótima definição para o staff da Cultura) que poderia saber o que você procurava e fazer indicações certeiras.
A Livraria Cultura era um empreendimento comercial como tantos outros, mas havia uma alma. A impressão que se tinha era que quem trabalhava lá gostava, de fato, de livros; ou, ainda, que os donos eram vocacionados e que literatura e conhecimento eram tratados com respeito e devoção. Num caso exemplar de branding, o nome da livraria parecia resumir muito bem do que se tratava o negócio.
Em algum momento dos anos 2000, um grupo investidor sacou seu talão de cheques e a Cultura virou um mega empreendimento. Abriu lojas gigantescas em várias capitais do Brasil, em grandes cidades do interior do estado, até mesmo várias unidades na cidade de São Paulo. O centro dessa teia era a gigantesca loja do Conjunto Nacional, que vivia lotada. Virou ponto turístico em São Paulo.
Os sinais do crescimento acelerado começaram a aparecer - e não eram exatamente bons. Agora, ficavam expostos os best sellers do momento, com centenas de cópias empilhadas e espalhadas pela loja. Trabalho muito mais da editora, acredito, do que da loja. Havia muito mais vendedores. Os rostos conhecidos sumiram - algumas vezes, para reaparecer em livrarias concorrentes, como a Martins Fontes. Uma vez, perguntei a um desconhecido vendedor por livros de Jorge Luis Borges - ele perguntou se esse autor era de ‘literatura’ ou de livros técnicos.
Muita gente circulava, tomava café, sentava nos degraus da grande escada no centro da livraria a folhear livros; mas não parecia haver tanta gente assim comprando. Era muito mais um parque temático do que uma livraria.
Ao mesmo tempo em que essa mutação acontecia houve também uma mudança geracional: a sucessão familiar na Livraria colocou na presidência o filho de Pedro Herz, que por sua vez havia sucedido à mãe, Eva, fundadora da livraria ainda nos anos 1940. Não por acaso, a entrada do grupo investidor no negócio e a sucessão eram os dois lados de uma mesma moeda: o filho é que tivera a ideia de expandir o negócio com investidores parças do mercado financeiro.
Ao mesmo tempo, o novo presidente da agora gigante Livraria Cultura logo se deparou com uma nova forma de concorrência que já se insinuava há anos: a chegada da Amazon ao Brasil sedimentou de vez a internet como o canal de vendas primordial para o mercado editorial brasileiro.
O deslocamento do comércio de livros para a internet foi um catalisador para a decadência acelerada da Cultura, mas não a causa. A tragédia anunciada da entrada da Amazon - um gigante que vende livros por uma decisão comercial lógica e acertada feita há muitos anos, mas cuja ambição é ser um marketplace universal, que vende de tudo - só deu um empurrão em uma situação que foi cuidadosamente engendrada por anos e anos de decisões erradas.
Com a expansão, a Cultura parece ter mirado em ser uma Fnac, a gigante francesa que ainda hoje mantém sua força na Europa. Mas num país em que a taxa de leitura é baixa, cultura é tido como domínio de uma elite reduzida e o consumo de bens culturais é restrito, o teto para um empreendimento gigantesco como esse é muito baixo. A própria Fnac, que entrou no Brasil nos anos 1990, também ficou pelo caminho, assim como Saraiva, Siciliano e La Selva, redes brasileiras de livrarias.
A exaustão do modelo de grandes lojas em uma ampla rede parece ter sido resultado de alguns movimentos paralelos e complementares: a subestimação do comércio eletrônico, o surpreendente desconhecimento dos limites do mercado brasileiro e, acima de tudo, um dogma dos proverbiais apologistas do ‘mercado’ que professam a crença de que basta despejar dinheiro em um empreendimento para o sucesso bater à porta. Como é característico das constantes crises cíclicas do capitalismo, a disputa entre as redes de livrarias se deu no limite da irresponsabilidade. A destruição da concorrência, apesar de não dito abertamente, era o objetivo de qualquer das redes de livrarias que buscava o domínio do mercado. Ao final, morreram todos abraçados.
Erros mercadológicos à parte, talvez o que de fato destruiu a Livraria Cultura tenha sido, ironicamente, um inside job, obra e graça da própria empresa.
Fácil entender. A Livraria Cultura foi, durante anos, um empreendimento com alicerces muito claros: identificação com o negócio para além dos critérios mercadológicos, identificação com o seu público, curadoria e posicionamento claro de valorizar a literatura para atingir objetivos comerciais dentro de um determinado universo intelectual. Era elitista, em certa medida, uma vez que comercializava ítens que não eram de consumo fácil para a imensa maioria da população. Mas não havia exatamente uma barreira de entrada: vendia livros populares e best-sellers e a loja encontrava-se em um local de ampla circulação (ao contrário de algumas lojas do período da expansão acelerada, que localizavam-se em shopping centers exclusivos e intimidadores). Era destinada a poucos pela conjuntura, mas não era exclusivista.
A expansão dos anos 2000-2010, ao contrário do que pode parecer, não popularizou a livraria - na verdade, serviu para transformá-la em um exemplo de ostentação, ao abrir lojas suntuosas, gigantes, com muito mais produtos à venda. Se antes a curadoria era o ponto forte, a venda massificada passou a ser o que caracterizava a livraria. Nesse processo, a livraria perdeu o que a definia e a diferenciava da concorrência. Em resumo, perdeu sua alma.
A transição geracional foi um momento decisivo, de acordo com muita gente que trabalhava na Livraria Cultura. Típico filho da elite paulistana, o novo presidente da livraria foi o responsável pela entrada de investidores externos e pela política de expansão. Aplicou à livraria a lógica de tantos outros negócios tipicamente capitalistas (e paulistanos) do novo século, como a expansão imobiliária ou o mercado de capitais: ocupar todos os espaços, dizimar a concorrência, criar um virtual monopólio e dominar todas as variáveis do mercado em que se insere. Dominação total como o objetivo mercadológico máximo.
Ao mesmo tempo, relatos de assédio moral e confusão administrativa começaram a aparecer. Funcionários e ex-funcionários anonimamente denunciavam situações complicadas de trabalho, direcionamento caótico e assédio moral até mesmo por questões políticas.
E, como aconteceu muito nos últimos anos aqui nesses tristes trópicos, o retrocesso conservador também estava presente. Se antes a livraria se caracterizava como um pólo de discussão intelectual e conhecimento para muita gente, a Livraria Cultura passou a ter destaques escolhidos a dedo por um viés ideológico, como destinar lugar nobre na loja para stands com um livro sobre Sérgio Moro ou livros nitidamente conservadores, sem qualquer tipo de equilíbrio. Mas o ponto alto aconteceu em uma das poucas vezes em que estive lá nos últimos 10 anos: a título de fazer uma curadoria denominada “Para se compreender o Brasil", havia uma gôndola com sugestões de livros cuidadosamente escolhidos como Manual do perfeito idiota latino-americano, do filho ainda mais fascista de Vargas Llosa; Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de um obtuso jornalista vindo de alguma boca de lobo abaixo do trópico de Capricórnio; e, ainda, tudo isso coladinho com um clássico dos anos 2010: O Imbecil Coletivo - Atualidades Inculturais Brasileiras, de um agora esquecido influencer e subcelebridade dos porões, Olavo de Carvalho (que anda bem sumido, né?).
O cai-não-cai da Livraria Cultura já virou meme e piada. Para cada falência decretada, a livraria consegue reverter em algum tribunal e volta a abrir as portas. Como um cadáver insepulto de filme ruim de terror, continua a vagar por aí, sem nada que lembre a loja que já foi.
A decadência da Livraria Cultura poderia ser só mais uma etapa nessa longa agonia do século XX, com o fim de muito do que se convencionou tratar sob o nome de Indústria Cultural. Em outro registro, poderia ser ser considerada como uma história de como o comércio eletrônico destruiu completamente o brick-and-mortar (ou seja, loja física), como dizem aqueles iluminados lá de cima que começaram a falar sobre isso. Mas a morte lenta e desgraçada da Cultura é um outro bicho.
Da mesma forma que gente conservadora, elitista e de direita já foi mais humanista e democrática, mas agora se aninha no colo de luminares da extrema-direita boçal como Bolsonaro e Tarcísio de Freitas, o fim da Cultura é indicativa de uma gigantesca mudança sociocultural.
Ô, louco! Que isso? É tão profundo assim esse final inglório?
Sim, é.
A Livraria Cultura, verdade seja dita, sempre foi um espaço de elite, de privilégio e de gente que tem acesso a bens culturais (materiais ou imateriais). Mas era democrática, humanista, aberta. Era um lugar de descoberta e aprendizado até mesmo para quem não tinha um puto no bolso, como já aconteceu comigo - quantas vezes não olhei livros por lá e ficava torcendo para ninguém comprar antes de cair o salário na conta, dali a alguns dias? Era um outro mundo, aspiracional, um oásis de conhecimento, naquela época em que imaginávamos que havia debate, discussão e divergências que poderiam ser discutidas livremente.
A Cultura era uma projeção do que se imaginava ser a elite paulistana na época em que existiu. Era mainstream, mas mantinha uma credibilidade de vanguarda que lhe imputavam. Era levemente conservadora, mas carregava em suas estantes livros que estavam anos-luz à frente de qualquer pensamento burro e convencional. Era uma ponte com o que era discutido em centros literários da cultura ocidental como Londres, Paris ou Nova York.
A conclusão é que essa própria projeção não se mantém mais. Ao final, talvez fosse só uma sombra formada ao acaso e que alguns pensantes deram a entender que era real. Hoje a elite paulistana, que supostamente povoava os corredores apertados da antiga Cultura, está em outra frequência e mostrou claramente o que é. Caíram as máscaras e não há mais ilusão: o atual governador de São Paulo é A CARA de São Paulo - literalmente, no caso, com sua cútis de areia mi…ahn, Jurídico, corre aqui por favor: posso falar isso?
É bem sintomático que a decadência da Cultura tenha coincidido com os tempos que vivemos de 2013 para cá no mínimo: é como um retrato de Dorian Gray metafórico do panorama sociocultural brasileiro, sempre a mostrar o quanto andamos para trás nesses últimos anos.
Não é o fim das livrarias em São Paulo. Ao contrário: há uma variedade cada vez maior. Algum dia talvez eu faça um texto-surpresa com uma lista delas. E estão nas ruas - que, atualmente, parecem ser os lugares mais improváveis, já que ninguém seria louco de ir a algumas delas, depois que venderam que a cidade está numa situação de violência extrema e que não se pode andar por aí sem correr risco de vida. (Professor Bechara, me ajuda aqui com o pessoal que virá citar o Pasquale e dizer que estou errado ao usar essa expressão).
Antes, a Cultura era um lugar que parecia ser o centro de um universo de livros. Durante anos, por mais que se falasse de outras tão boas quanto, era sempre a essa livraria que tudo convergia. Um amigo que trabalhou lá contava como, aos sábados e domingos, ele andava quilômetros indo e vindo, a buscar incessantemente no estoque livros de Pamuk, Murakami, Auster, Amis e outros que saíam nos suplementos culturais dos jornais no sábado. Os best-sellers da classe média ilustrada, como ele definia acertadamente.
Hoje, não parece haver um epicentro para essa moda que passou, a da literatura como eixo cultural. São várias livrarias, espalhadas por bairros diferentes ou pelo centro da cidade, cada uma com seu público, mas de forma muito mais fragmentada. O faturamento do mercado editorial encolheu, fruto de anos e anos de consolidação dos hábitos digitais. Mas talvez haja maior variedade e, afinal, até mais gente que consuma livros em papel; mesmo nessa época digital, livros físicos ainda existem e há público. Só num raio de menos de 2 quilômetros da minha casa conto no mínimo 4 livrarias de rua, sem considerar sebos ou shopping centers. Em todas, deve haver vendedores indo e vindo, a buscar no estoque livros de Itamar Vieira, Carla Madeira, Elena Ferrante ou Yuval Harari, os novos best-sellers da classe média ilustrada e que são destaque em redes sociais.
O fim da Cultura como a conhecemos é triste. Foi um espaço de importância ainda difícil de mensurar e fazia parte daquilo que falei há duas semanas: o fim dos artefatos físicos, da sensação tátil do livro ou do disco nas mãos, que definiu em grande parte o ambiente cultural da segunda metade do século XX, muito mais do que em qualquer outra época.
A Livraria Cultura deve ser lembrada pelo que representou há muito tempo, mas muitos irão esquecer o naufrágio horrendo dos últimos anos. Outras tomarão seu lugar em breve e a vida vai seguir. Durante boa parte do tempo que existiu, a Cultura definiu um certo “pensamento mágico" de que seria possível avançar e contribuir para formar uma sociedade em que conhecimento não fosse exclusivo de poucos; mas a agonia lenta dos últimos anos mostrou que, sob esse verniz de uma ilha de cultura, há sempre o outro lado à espreita. Sempre uma nova entrada ou bandeira logo ali para lutar para que tudo sempre permaneça como está.
Um sobrevivente do inferno brasileiro, que não deve ter pisado muito nessa livraria, definiu bem os tempos em que vivemos, de uma forma bem mais objetiva do que muitos dos intelectuais que formavam rodinhas de conversa animadas na época áurea e insular da Cultura:
Isso que está aí, esse ódio, essa violência, é só o Brasilzão velho de guerra que já conhecemos desde sempre na quebrada. A diferença é que agora está na cara de todo mundo.
_Mano Brown, em entrevista em 2018