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Alô, você!
Chegou a hora de postar aquela frase.
Não importa o ano, o contexto, nada. É meio como postar o vídeo de Morgan Freeman no dia da Consciência Negra: as pessoas fazem praticamente no piloto automático, achando que é legal.
Sim, é a infame frase do Los Hermanos, que você já deve saber qual é e que nem vou reproduzir aqui. Basta alguém publicar isso em rede social para que um Chorão metafórico tome conta de mim. Mas respiro fundo e sigo em frente.
Claro, isso até alguém começar a cantar ‘Ano passado eu morri…”
Calma, Chorão, calma.
E, na verdade, o carnaval nem acabou ainda: por todo o país ainda tem bloco de pós-Carnaval, desfile das campeãs, choro de perdedores em manifestação flopada na Paulista.
Tanto é assim que ainda vou esticar um pouco mais o assunto da folia. Para não falarem por aí que basta uma noção de que vale o escrito para se transformar em especialista em Carnaval.
“Aqui é trabalho, fio", como diria o grande filósofo Muricy Ramalho.
Mesmo que seja meio-período, na Quarta feira de cinzas.
Falei da volta do Carnaval de rua na semana passada. Foquei no que conheço melhor: São Paulo como foco primordial do meu parco conhecimento e algumas outras poucas experiências em outras cidades. Por exemplo, o que sei de Salvador é só do pré-Carnaval e, ainda assim, em blocos razoavelmente pequenos, daqueles que só arrastam dezenas de milhares de pessoas.
Até fui fazer nesse Carnaval uma pesquisa de campo em São Paulo e Belo Horizonte. Relembrando os tempos de Ciências Sociais, chutei para lá o espírito de sociólogo de gabinete e fui às ruas para arranjar material de pesquisa fresquinho, colhido in loco e metendo o louco. Tudo em nome da apuração cuidadosa e da boa informação.
Uns 2 ou 9 xeque-mates por dia, bebida de origem belorizontina que estourou nesse carnaval, mais um mesmo tanto de latão da Brahma, muita observação e alguma interação - afinal, trabalho de campo é coisa séria.
Carnaval de rua hoje movimenta bem a economia, ganha destaque e aparece muito mais até do que os desfiles das Escolas de Samba. Compreensível: para muita gente, ao contrário do espetáculo distante que você via na televisão, agora o Carnaval passa na porta da sua casa - literalmente, em muitos casos.
O ubíquo Luiz Antonio Simas dá a letra: o Carnaval dos desfiles perdeu a relevância que tinha. O espetáculo grandioso fez a fama do Carnaval do Rio, mas ao mesmo tempo trouxe de arrastão uma certa distância, uma perda da identificação popular com uma festa que acontece em lugar circunscrito e controlado. O Carnaval de rua reapareceu nesse vácuo de participação popular e tomou conta de cidades antes sonolentas e vazias nessa época do ano.
A ironia: as empresas que agora despejam dinheiro no Carnaval de rua começam a tomar conta da festa em todas as principais cidades. Monopólio na venda de bebidas, horários rígidos para começar e terminar, atrações que se repetem - os patrocinadores talvez estejam em vias de desgastar o Carnaval de rua, como aconteceu antes nos Sambódromos da vida.
Não critico o conceito do Sambódromo em si, que fique claro. Muito menos Escolas de Samba: em um país como o Brasil, as agremiações do samba são, em larga medida, um dos grandes pilares da coesão social em diversas comunidades e bairros. No Rio, são as escolas de samba que fazem lembrar a todos que o Rio não termina nas encostas da zona sul. Em São Paulo, dão protagonismo a bairros que são apenas uma lembrança distante para quem mora no Centro Expandido, aquela região que, grosso modo, fica entre as marginais e concentra boa parte do dinheiro bandeirante. Em ambas as cidades, as Escolas trazem histórias esquecidas, movimentam toda uma vida profissional no bairro - empregam muita gente, contam com uma rede de fornecedores e prestadores de serviços - e preservam hábitos e tradições que poderiam se perder facilmente no apagamento cultural que os donos do poder promovem, em nome de uma noção mercantilista e funcionalista das cidades.
A institucionalização das Escolas de Samba serviu a um projeto de controle social do espaço urbano - mas não só. Como tudo que acontece na esfera social, são muitos os interesses em jogo e não se pode colocar todas as fichas num único motivo que explique um fenômeno como esse.
Um bom exemplo é o Sambódromo que, por um lado, encaixa-se muito na lógica de segregar o espaço urbano; por outro, vemos que há muito mais envolvido - é um palco para as escolas de samba, um lugar que relembra permanentemente a história e que tem papel essencial para garantir um espaço de destaque para a cultura popular.
A história da construção do Sambódromo do Rio é uma aula em como subverter a lógica da segregação do espaço público. Críticas feitas especialmente pela Globo, inimiga declarada do governador de então, Leonel Brizola, davam conta de que era um gasto faraônico para uma obra que seria usada só uma vez no ano. Brizola, Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer vieram com a solução que calou a boca dos críticos Marinhos: o Sambódromo seria um CIEP - Centro Integrado de Educação Pública - que teria salas de aula, estrutura de esportes, aulas práticas, eventos. Um aparelho esportivo e cultural em tempo integral, um centro da comunidade cujos filhos frequentam as aulas - e, durante os meses do início do ano, serviria também para ser o Sambódromo da cidade.
Foi um direto no queixo da direita: ao invés de segregar o Samba, como os projetos anteriores de sambódromo desde sempre almejavam, aconteceu o contrário; era a integração da vida cotidiana com a vida de fantasia do Carnaval. Até hoje é uma obra revolucionária em grande medida.
E nem vou descer essa ladeira do CIEP - originalmente pensado como peça central de uma política de educação em tempo integral, o programa sofreu desmonte de sucessivos desgovernos do Rio de Janeiro e hoje são escolas que seguem o (baixo) padrão tradicional, num claro exemplo de desinvestimento. Aparentemente, as prioridades dos governantes do RJ são outras - dos últimos 10 governadores do Rio, 5 foram presos e outros, processados.
Carnaval é bom e eu recomendo. Como falei antes, é uma retomada das ruas, depois de anos em que o que mais teve foi gente querendo tirar isso de todos nós. Existe a institucionalização do carnaval para o bem (preservação da cultura e acesso a apoio estatal ou empresarial) ou para o mal (elitização e tentativa de controle). Existe também a retomada do Carnaval de Rua nas mesmas vertentes (por um lado, democratização da festa nas ruas e retorno a tradições populares, por outro a mercantilização e a perda da identidade). Num país como o Brasil, em que os donos do poder vendem a imagem da alegria do povo, mas fazem o possível para controlá-la, não são dicotomias de fácil conciliação.
Por isso, munido de boa vontade e uma certa ressaca - não de bebida, mas decorrente de andar há dias por ruas debaixo do sol, em blocos - retomei meu trabalho de campo na quarta-feira de cinzas.
Rumamos para um bairro tradicional em Belo Horizonte, ao lado do cemitério da Saudade. Dica valiosa da Ana Maria Chagas, que entende do riscado e do ziriguidum: um bloco pequeno, de bairro, que arrasta foliões da região. É o Bloco da Saudade. Metais e bateria, uma festa em formato de cortejo fúnebre, com um caixão carregado por foliões fantasiados e um ‘morto’ muito louco, ao estilo Quincas Berro d’Água, cortesia de um grupo teatral que encenou uma peça com essa temática naquelas ruas mesmo, há alguns anos.
Foliões com fantasias de freira devassa, padre safado e cadáver animado. Crianças com maquiagem de Calaveras mexicanas. No meio do caminho, um trio de adolescentes vestidos de preto, cabelos descoloridos, lentes de contato fantasmagóricas, piercings e tatuagens - e não era fantasia. Góticos-satanistas-doom metal-whatever que ouvem música extrema e sem concessões, mas que se misturam a um bloco de carnaval sem pensar duas vezes.
O bloco descia e subia pelas ruas do bairro (tradição em BH, claro - se o trajeto for muito plano, desconfie). Alguns se juntavam ao grupo quando o cortejo passava, outros viam das janelas ou de cima da laje ou, ainda, sentavam em cadeiras com uma cerveja na mão, para ver o bloco passar. Parada mais longa numa creche com crianças com paralisia cerebral, que estavam na calçada e foram incluídos na folia com carinho e atenção. Todos os músicos e os puxadores são do bairro e a parada foi planejada com antecedência, uma homenagem a um lugar que parece ser uma instituição admirada no bairro.
Bairro tradicional, daqueles em que as casas vão sendo ampliadas e reformadas aos poucos - sempre dá para ver um portão novo, um muro ainda precisando ser finalizado, uma calçada recém-acabada. Algumas casas antigas ainda contam com o nicho para o santo de devoção da casa, os moradores na porta assistindo à passagem desse bloco que celebra um simpático paganismo, a vagar pelas ruas vizinhas ao cemitério.
Ao longe, dava para ver outro cortejo fúnebre, numa alameda do Cemitério da Saudade. Alguém que faleceu durante o carnaval. Triste, mas o contraste entre os dois cortejos - aquele circunspecto e encerrado nos muros do cemitério, face ao outro que celebra a alegria, mas com temas funéreos, nas ruas ao lado - mostrava bem qual é o espírito original do Carnaval; uma celebração da vida, mas sempre com o olhar no horizonte, na impermanência.
Pensei ser um bloco super tradicional, que sai há décadas. Para minha surpresa, descobri que surgiu em 2016. Esse bloco despretensioso, super local e integrado, diz muito sobre a reconquista das ruas e sobre como é possível fazer um Carnaval para quem realmente importa: as pessoas que você encontra no dia a dia, que querem só ter o direito de curtir um pouco na rua - e, se possível, no bairro onde moram.
Mas não foi sempre assim na capital das Alterosas. Como sempre, da metade dos anos 1960 em diante houve uma caçada dos capitães-do-mato do conservadorismo ao Carnaval de rua. Tanto que, no começo dos anos 2000, a cidade era uma calmaria só, a fazer inveja ao Cemitério da Saudade.
Full disclosure: eu só conheci a cidade por volta de 2015, quando o Carnaval já havia voltado com força total - e mesmo assim, ainda não era tudo o que é hoje em dia.
O ponto de inflexão nessa morte lenta e agonizante que era a semana de Carnaval em BH aconteceu quase por acaso. Digo ‘quase’ porque havia uma energia jovem que estava a ponto de explodir na cidade, mas que ainda era mantida no subterrâneo por inúmeras questões que não cabe aqui discutir.
Em 2009, o então prefeito Marcio Lacerda teve uma ideia que, por sua burrice tão aparente e cristalina, só podia ter vindo de alguém que não tem noção do que acontece fora de seu gabinete.
Paola Lisboa Codo Dias, em sua dissertação para a pós-graduação da Faculdade de Arquitetura da UFMG e que virou livro depois, Sob a Lente do Espaço Vivido, conta que o catalisador da mudança em Belo Horizonte foi o decreto 13.798, de 9 de dezembro de 2009, que proibia eventos na Praça da Estação. Para quem não é da cidade, é um tradicional ponto de shows, comícios e manifestações de Belo Horizonte desde sempre.
Já contei nesse texto aqui que não é a primeira vez que a direita tem problemas com a Praça da Estação. Em 1964, João Goulart discursaria lá. Os inconfidentes de sinal trocado, comandados por Magalhães Pinto e a FIEMG, engendraram um plano de assassinato (!!) do então presidente - e que só não foi levado a cabo por ter rolado um golpe militar antes.
Em 2009, Lacerda simplesmente acendeu o pavio de uma revolta popular de retomada das ruas. Em pouco tempo, no começo do ano seguinte, gente jovem e esperta da cidade inteira começou a ocupar a praça com cadeiras de praia, eventos espontâneos, diversão e tudo o que desse na telha, com ordem, limpeza e sem pedir autorização da prefeitura. Uma ocupação que ganhou o nome de Praia da Estação, numa cidade em que dizem que a praia é o bar.
O movimento seguiu até o Carnaval daquele ano, dando origem a inúmeros blocos ad hoc, improvisados nesses meses do início do ano, praticamente por geração espontânea, de forma descentralizada. Foi uma retomada das ruas, um chute no conservadorismo tacanho de gente que tratava o direito às ruas com canetadas e porretadas. Foi o germe de um Carnaval de rua na até então insuspeita e sonolenta capital mineira.
Claro que não vou deixar de botar meu dedo aqui: casei na praça ao lado, alguns anos depois. Na Praça da Estação rolava, ao mesmo tempo da cerimônia e da festa, um protesto contra a presidência do então golpista que não limpa a boca na toalha de mesa, Michel Temer.
Ironia suprema: a ação do conservadorismo tacanho da tradicional família mineira gerou uma reação que fez o Carnaval reviver em Belo Horizonte. Meio como um “não são só 20 centavos”, mas do bem.
Hoje os blocos tomam as ruas da cidade e são mais numerosos do que em qualquer lugar, com exceção de Recife e Olinda. Tem uns gigantes, mas tem os de bairro, tem também os que são médios, tem os pop, tem os politizados, até mesmo tem um que tocava Led Zeppelin e Queen e que ouvi à distância numa tarde pós-feijoada, em que não queria sair para as ruas nem se minha vida dependesse disso.
As ruas de Belo Horizonte foram ocupadas novamente, mesmo que a reação esteja por aí. Não é pouco numa cidade que deu vitória a Bolsonaro em todas as zonas eleitorais em 2022. Que se candidata, pelo visto, a ser a capital do interior paulista expandido, aquela zona tóxica que começa lá em Ponta Grossa e chega até o Belvedere (entendedores entenderão).
É o que se precisa fazer - quem tem a primazia das ruas, por mais que não tenha o poder político, sempre terá onde lutar o bom combate. Carnaval é isso: retomar as ruas, dominar os espaços, ocupar todas as trincheiras possíveis.
Em 2023, Marcio Lacerda, o infame prefeito do decreto da praça da Estação, tentou tomar para si a paternidade do Carnaval mineiro. Da mesma forma que, em São Paulo, Doria, Covas e Nunes se renderam ao Carnaval e não desfizeram o que já estava feito, em Belo Horizonte estabeleceu-se um Carnaval de rua sólido e bem organizado, com apoio da Belotur e outros entes públicos.
Mas não é o poder público ou o capanga de plantão que controlam o que acontece nas ruas; é a própria sociedade. Problemas existem e talvez sejam exatamente resultantes da perda da “gramática” do Carnaval de rua, após anos de supressão e perseguição. Ou seja, é tudo novo e novas regras tácitas precisam ser estabelecidas de forma natural. Desacostumados a viver a rua, muitos dos participantes de blocos ainda não sabem o que fazer com tamanha liberdade. Mas isso se acomoda com o tempo. Afinal, já foi feito uma vez; reconstruir não é tão difícil assim.
A resistência já está nas ruas. Durante anos, ficou só vendo, sabendo, sentindo, escutando. Mas isso mudou e ano que vem tem mais. E estou aqui, me guardando pra quando o carnaval chegar. De novo.