Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Essa semana, uma newsletter que chega um dia antes. Em geral, tento enviar na sexta: sempre termino meu day job o quanto antes, para poder revisar o texto e enviar. Dessa vez, achei por bem mandar no feriado, antes de iniciar a bebedeira tradicional em Belo Horizonte, de onde vem essa edição aqui.
E vamos passar a sacolinha: compartilhem Locked Groove com amigos, conhecidos, parentes - ou, sei lá, com alguém que vocês queiram ver passar raiva com minhas opiniões descabidas e ataques gratuitos. Para quem ainda não assina, pode clicar abaixo para assinar. Pode ser gratuito. E até mesmo quem já assina e quiser pingar um capilé, se achar que vale, clica lá.
1.
É 21 de abril e estou em Belo Horizonte.
Minas Gerais tem muita coisa associada a essa data. Para começar, um morto muito louco da República brasileira, Tiradentes, é o cerne dessa data cívica fortemente panfletada pela República desde 1890. Outro mineiro, Juscelino Kubitschek, inaugurou Brasília nesse mesmo dia, em 1960 - e não foi por acaso, já que ele poderia ter inaugurado na data do descobrimento, um dia depois.
Avançando mais: em 1964, João Goulart planejava fazer um discurso no mítico 21 de abril, em Belo Horizonte. Calculava-se que o comício - que esperava reunir mais de 150 mil pessoas - daria um pontapé inicial no plano das reformas de base, em que Goulart depositava as fichas de sua sobrevivência política.
Esse último episódio é pouco conhecido na História brasileira, talvez por não ter ocorrido comício algum: o golpe de 31 de março de 1964 pôs por terra qualquer plano de Goulart além de tomar chimarrão em sua fazenda no Uruguai. O evento foi cancelado por motivo de força maior, para tristeza do comandante civil da “Revolução", Magalhães Pinto; sem querer, o golpe evitou que uma ação de terrorismo doméstico engendrada por um grupo de empresários mineiros, escudados por militares e policiais, acontecesse nesse dia. O velho banqueiro mineiro precisou se contentar em ser apenas um destacado coadjuvante dos militares, e não um dos artífices de uma das maiores reviravoltas da República.
A história foi revelada pela historiadora Heloísa Starling em sua tese de mestrado que virou livro, Os senhores das Gerais: os Novos Inconfidentes e o Golpe de 1964. Starling conta como o setor mais reacionário do empresariado mineiro, essa fina flor das Gerais, que hoje em dia se diverte despejando dinheiro em time de futebol, saudando golpe militar e colocando no poder governador fascista, organizou um grupo chamado nostalgicamente de os Novos Inconfidentes, com a intenção de conspirar contra o governo Goulart. E não era apenas um golpe que buscavam. No comício que não existiu, no 21 de abril de 1964, o plano era outro - assassinar o presidente da República em plena Praça da Estação, no centro de Belo Horizonte.
O plano ainda estava sendo discutido quando os tanques do general Olímpio Mourão Filho saíram de Minas em direção ao Rio, para iniciar o golpe. Os preparativos já estavam avançados entre os conspiradores, num clima bem barra-pesada de golpismo, com poucos precedentes no Brasil.
Uma ideia dos fachos mineiros era usar um avião monomotor que despejaria cargas de dinamite sobre o palanque presidencial. Mas algumas questões estavam no ar (com perdão do trocadilho). Seria espalhafatoso demais? E o risco de mortes entre os espectadores, tanto pela explosão, quanto pelo tumulto que se seguiria? E o receio de errar o alvo e Goulart sair pimpão e fortalecido? Com isso, os conspiradores foram para o outro extremo: a segunda ideia era posicionar atiradores sobre os ônibus que levariam o público à praça e estariam estacionados ali pertinho. Desses pontos privilegiados, o plano seria efetuar disparos contra o presidente e sua entourage. O problema? Teriam de contar prioritariamente com o Coronel José Oswaldo Campos do Amaral, o Cascavel, campeão de tiro da Polícia Militar. Novamente havia o risco de não se conseguir levar a cabo o plano, uma vez que poucos dos conspiradores tinham a boa mira do coronel - era responsabilidade demais para um dedo só.
Ao final, o plano que ganhou tração incluía um comando armado que irromperia pelo meio do público, invadiria o palanque e metralharia todo mundo lá, desde Goulart até qualquer cunhado seu que aparecesse na alça de mira. Apesar do caráter aparentemente suicida da missão, Campos do Amaral contou depois ao jornal O Estado de Minas, a escolha se deu para que todos os integrantes militares do grupo tivessem participação e dividissem a responsabilidade futura. Mineiros solidários no câncer e na destruição da democracia.
Anos depois, o Coronel Campos do Amaral ainda suspirava, pensando em como a ação que não se realizou seria um sacrifício inconfidente "para o bem e a salvação do Brasil".
Talvez Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, tivesse se revirado nos inúmeros túmulos em que seu corpo foi depositado ao saber que os Novos Inconfidentes eram, na verdade, oligarcas fascistas e jagunços fardados que estavam mesmo é do lado mais reacionário da sociedade, dispostos a tudo para instaurar um regime autoritário oposto aos ideais do Iluminismo que os Inconfidentes originais admiravam.
Ou não?
2.
Não é segredo que os Inconfidentes originais tinham mais interesse em se livrar dos altos impostos da Coroa Portuguesa do que em trazer democracia aos trópicos. Não se contesta, na historiografia, que os ideais iluministas e republicanos estivessem na gênese ideológica do movimento - mas daí a considerar que era um movimento democrático vai um longo caminho. Até mesmo porque, em fins do século XVIII, ainda havia muita água para correr antes que a democracia passasse a ser vista com bons olhos. Na época, da mesma forma que a tirania era considerada por muita gente boa como a degradação da monarquia ou da oligarquia, a democracia também seria resultado da destruição da república pelo excesso de “poder das turbas". Em bom português, pavor do populacho; a boa e velha aporofobia.
E era meio como uma constante: os movimentos independentistas na América Latina foram gestados no meio das elites locais e das camadas médias ascendentes da população, que tinham posses, interesses comerciais e industriais e desfrutavam de um status superior às populações nativas, mas que percebiam que sua autonomia era tolhida por uma monarquia exploradora distante ou por uma burocracia estamental hostil a qualquer desenvolvimento local que não estivesse subordinado ao Estado.
Na América Espanhola isso era explícito na interdição dos cargos mais altos do governo e da burocracia estatal aos criollos - ou seja, qualquer um nascido na América, mesmo que fosse filho de um progenitor europeu. No Brasil, a mão de ferro da Coroa Portuguesa proibia, por exemplo, que existissem impressoras e jornais de propriedade de locais. A elite era monitorada de perto.
O próprio Tiradentes, Alferes na guarda colonial, tem semelhanças com Don Diego de Zama, frustrado personagem do livro do escritor argentino Antonio di Benedetto, de quem falei aqui. Não era bem um revolucionário - talvez fosse mais um revoltado. Sempre preterido nas promoções a postos de destaque, o alferes Joaquim José precisava complementar a renda com uns trocos que ganhava como dentista prático - de onde veio seu apelido - e não se furtava a responder raivosamente o que não lhe era perguntado sobre a Coroa Portuguesa e o governo colonial. Talvez por ser o menos abastado dos inconfidentes, dizem historiadores, acabou sendo o escolhido para a pena capital, enquanto os demais foram degredados ou roeram uma cana por algum tempo.
No movimento sempre cíclico da política brasileira, a conspiração mineira caiu quando Joaquim Silvério dos Reis fez a primeira delação premiada de que se tem notícia no Brasil e entregou as cabeças dos antigos colegas inconfidentes - no caso de Joaquim José, literalmente.
Não é difícil também entender o motivo de a Inconfidência Mineira ter sido pinçada pela nascente República brasileira para ser um símbolo nacional: dentre tantos movimentos de libertação republicanos, era um que oferecia a maior facilidade de construção do mito de um movimento levemente revolucionário (mas não tanto), bem ao gosto dos donos do poder e seus capatazes fardados: tinha um heroi facilmente identificado com camadas médias urbanas e, ao mesmo tempo, com o estamento burocrático militar; possuía propostas de independência e autonomia, mas muito restritas ao âmbito econômico e que sequer tangenciavam a escravidão ou qualquer tipo de reforma das estruturas sociais; por fim, identificava-se facilmente com a Revolução Americana de 1776, que deu origem aos Estados Unidos - um ícone de estabilidade, oposto aos movimentos independentistas da América Espanhola, que não raro desembocavam em guerras civis intermináveis, fragmentação política e caudilhismo.
Fica claro que a República preferiu dar destaque a um movimento que pudesse ser apresentado de forma a evitar qualquer interpretação mais popular - a Conjuração baiana de 1798, por exemplo, tem mais a ver com a Revolução Haitiana do que com a Revolução Americana: segundo historiadores como Caio Prado Júnior, o movimento liderado por alfaiates (de onde veio seu segundo nome, Revolta dos Alfaiates), possuía um caráter muito mais radical nas suas demandas de mudanças das estruturas sociais, defesa do fim da escravidão, do estabelecimento de uma república baseada no voto livre e unitário e da liberdade de comércio e emprego. Temas espinhosos para a República nascente: daí a preferência por um movimento bem mais moderado e elitista, como a Inconfidência mineira.
Só para fazer um pequeno contraponto que confirma a regra: segundo a tese de doutorado de Patrícia Valim na FFLCH-USP, de 2012, a Conjuração Baiana de 1798 teve também participação de membros da elite local, mas todos receberam penas leves, após entregarem escravos seus para uma execução ‘exemplar’ pela Coroa Portuguesa ao lado de alfaiates e militares de baixa patente que estavam à frente do movimento. Vida humana usada como moeda de troca. E os 10 escravos entregues tiveram o mesmo fim de Tiradentes: esquartejados para servir de exemplo.
3.
Essa edição da História demonstra o quão antiga é a aversão da República brasileira ao chamado "Haitianismo" - ou seja, a uma revolução de fato, que pudesse destruir as bases do poder e a estrutura social no país e integrasse largos contingentes marginalizados da população, como havia sido a revolução Haitiana de 1791-1804. Revolução é bom e eu gosto, diriam os militares e seus cúmplices civis na subjugação da República brasileira - mas desde que fosse uma de que já se soubesse de antemão o resultado.
Os Jacobinos Negros, de C.L.R. James, é o livro fundamental para se entender a Revolução Haitiana de Touissant L’Overture, que tornou o Haiti independente em 1804. Hoje, a narrativa geral é que Haiti é um ‘failed State' e a percepção é que nada dá certo naquela ilha do Caribe, entregue a todo o tipo de convulsão social e, ainda por cima, vítima de catástrofes naturais como terremotos e furacões. Mas o Haiti é uma peça-chave na evolução histórica do continente americano: foi uma revolução totalmente autóctone, com líderes próprios e que garantiu a independência definitiva do primeiro Estado negro do mundo na Idade Contemporânea. Foi um exemplo para o Pan-Africanismo e L’Overture até hoje é celebrado como herói no continente africano. Boicotado por vizinhos, o segundo Estado independente das Américas só foi reconhecido pelos EUA mais de 50 anos depois e sofreu perseguição maior ainda de países europeus. Uma indenização à França comprometeu o Tesouro Haitiano por décadas e está na origem dos infortúnios atuais, segundo C.L.R. James.
O exemplo Haitiano sempre foi visto com muita desconfiança nos países da América. Todos eles, em maior ou menos grau, não por acaso protagonistas de "revoluções de acomodação”, no termo do historiador Kenneth Maxwell, em que a independência em relação à metrópole não foi acompanhada pela emancipação de toda a população, mas apenas de um realinhamento da dominação social e econômica.
Episódio pouco explorado da história mundial, a Revolução Haitiana merece um livro como o de Cyril Lionel Robert James. Melhor: merece um escritor como ele. Em 1938, não era pouca coisa escrever um livro sobre uma revolução obscura em um país considerado extremamente periférico, e ainda bem num dos momentos cruciais da história do século XX, em que a crise européia era central em todas as discussões.
James fez um livro de história que serviu de base para o Pan-Africanismo da segunda metade do século XX e para a descolonização africana, mas fica bem longe de um estilo acadêmico cabeçudo e escreve como se fosse um romance, apesar de totalmente fiel aos fatos - o ritmo é tão intenso que o livro foi adaptado para o teatro, em uma peça de sucesso escrita pelo próprio James. Influenciou muita gente, de Frantz Fanon e Edward Said a Miles Davis e Bob Marley. E James dedicava-se não só à política e à militância - fanático pelo críquete, sabia escalações, resultados de jogos e campeonatos obscuros, lances importantes da história; escreveu muito para os jornais britânicos e dizem ser dele o melhor livro sobre esse esporte britânico, muito jogado em ex-colônias da Coroa como sua terra natal, Trinidad e Tobago.
4.
É 21 de abril e estou em Belo Horizonte.
Dia de passar pela estátua do Tiradentes no bairro Funcionários - inaugurada pelo Novo Inconfidente Magalhães Pinto, que devia pensar muito no Haiti acontecendo aqui, quando era governador do Estado, em 1962 - a caminho do Mercado Central, para tomar uma cerveja, depois de muito tempo de pandemia. E andar pelos corredores lotados, ver as lojas de sempre, parar em alguma banca e pechinchar (como dizia meu sogro, "se não pechinchar, eles ficam ofendidos").
E, do mesmo jeito que Cyril James tinha espaço para falar sobre críquete, seu assunto preferido, e ainda assim escrever (e bem) sobre revoluções e política, o que é preciso é ocupar todos os espaços - mas agora o espaço que me interessa, mesmo, é no balcão lotado de um bar do Mercado Central, daqueles bares em que você chega perto e a balconista, que tem boa memória, já vai te chamando com uma cerveja bem gelada numa mão e o abridor na outra.
E dá para falar de vários assuntos, mesmo sem terminar nenhum. Até mesmo sobre futebol e relembrar a mítica discussão de José Roberto Wright ter metido a mão no Atlético num jogo contra o Flamengo, pela Libertadores de 1981 - como na vez em que, num bar do Mercado Central, Paula falou isso para um velho flamenguista acotovelado no balcão bem perto de nós e ele, depois de perguntar se “essa menina" tinha idade para estar bebendo e discutindo futebol ali, acabou abaixando a guarda.
Ali perto tem a Praça da Estação. E lembro que casamos em um lugar em frente à praça. Nesse dia, uma manifestação de “Fora Temer” acontecia ao mesmo tempo que a festa. Bem nessa praça que sempre recebeu manifestações, comícios, comemorações e protestos, e que em 1964 poderia ter sido palco de um capítulo mais sombrio ainda da história republicana brasileira. Era 2017, e não sabíamos ainda que poderia piorar. Como piorou, de fato.
Dançamos muito na festa - Paula com adesivos de “Fora Temer” sobre o vestido de noiva - até a madrugada, quando a manifestação já tinha acabado e a praça estava vazia de novo. Mas tinha sido ocupada por umas boas horas, mesmo que o protesto não tenha dado em nada.
E ocupar todos os espaços é isso: pensar em tudo ao mesmo tempo, sem compartimentação, sem hierarquia, sem juízo de valor. Mesmo que haja momentos em que parece que não adianta.
Mas estou no Mercado Central. E como já dizia um sábio, uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor.
E pense no Haiti.