Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Locked Groove é o espaço em que escrevo e ao qual tenho dedicado bastante atenção - ainda não paga meus boletos, mas quanto mais gente eu puder alcançar com meus textos, melhor. Pode escolher a modalidade gratuita ou a paga. E se quem já assina achar que esse esforço aqui vale alguma coisa, pinga um capilé lá para o parça.
Depois de um projeto gigante, uma ressaca monstro. Demorei para enviar o texto dessa semana e, como diz a candidata-palíndromo, agora é preciso arrumar a casa. Por isso, na próxima sexta, 02 de setembro, não vai ter texto novo. Muita coisa acumulada. Life is what happens when you are busy making other plans, disse John Lennon.
Mas logo voltaremos a rodar como sempre nesse Locked Groove. Nas últimas semanas, ganhei novos assinantes. É um estímulo e tanto para continuar com textos que levam muito trabalho e muito mais do que só consultar Wikipedia. Por isso, vou usar os próximos dias para me organizar para entregar textos que valham a pena, e não que apenas cumpram tabela e toquem a bola para o lado só para entregar no dia certo. Por isso, volto na semana que vem, com mais um locked groove rodando nas madrugadas.
1.
Pode não parecer, mas já houve época em que era possível andar pelas ruas do centro de São Paulo na madrugada. Claro, não é que fosse totalmente seguro - mas não era o clima de Mad Max on crack que tem sido relatado recentemente.
E não falo isso só por uma passadinha ocasional por lá: eu morei na Martins Fontes e no Largo do Arouche, anos atrás. E mesmo antes disso eu andava constantemente pelo Centro - talvez seja a região da cidade que mais frequentei na vida.
Não era um Centrão de parque temático, daquele que você vê de cima do prédio do Banespa (Farol Santander, para quem chegou agora). Era sujo, barulhento, zoado. Mas, por um breve momento, nas primeiras décadas do século, foi possível imaginar como seria o Centro de São Paulo com gente nas ruas o tempo todo. Com vida pulsando. Com democratização do espaço público.
Foi um pequeno intervalo em uma combinação de décadas de descaso e planejamento cuidadoso de uma destruição nada criativa. Mas foi um relance do que poderia ser se houvesse continuidade e, principalmente, interesse.
2.
Havia sido muito pior, anos antes.
Quando cheguei a São Paulo, existiam lugares no Centro que eram completamente interditados ao pedestre casual. Vale do Anhangabaú você só atravessava se não houvesse outra alternativa; Praça Dom José Gaspar era um acampamento de nóias em tempo integral; ninguém se aventurava pela Praça da República entre as árvores - era preferível sempre ficar apenas na calçada externa, para não se arriscar. Todas as entradas de estações de metrô eram cercadas por grades. Em algumas ruas era melhor nem entrar - e nem estou falando da Cracolândia.
O ponto mais baixo do Centro talvez tenha sido no período entre 1990-2000 - exatamente quando eu ia todo sábado garimpar discos ou livros pelas lojas e galerias do Centro.
As lojas de discos do rock clássico ficavam na caricatural Galeria do Rock. Já as lojas onde eu mais comprava ficavam na galeria vizinha, que era apelidada pelos frequentadores da do Rock como a “Galeria dos Pretos” - tinha um monte de lojas de cabelereiros, ou lojas de discos de Rap e Hip Hop para um nicho diferente. As lojas de disco lá tinham acervo muito melhor do que a vizinha maior, com seus tradicionais e mofados Iron Maidens ou Deep Purples.
Áreas degradadas existem em todas as grandes cidades - há um movimento natural e irresponsável de uso excessivo e consequente abandono de determinadas áreas e bruscas mudanças de eixo econômico. Berlim, Londres, Nova York, Buenos Aires, Cidade do México, Paris: qualquer metrópole tem suas regiões que se transformaram e perderam a importância que tiveram antes (e, em alguns casos, se recuperaram). Mas, como muita coisa no Brasil, a destruição não é por acaso; houve um projeto deliberado por trás da decadência do Centro de São Paulo.
3.
Desde o final dos anos 1960, o Centro começou a ir ladeira abaixo. A mudança do mercado financeiro para a Avenida Paulista ou de classes alta e média alta para outros bairros não é causa; foi mais especificamente um reflexo.
Uma boa explicação é a mudança do sistema de transportes na cidade. Com o crescimento acelerado da cidade, os bondes foram substituídos por ônibus mais versáteis e mais adequados às grandes distâncias e o Centro passou a ser um hub de transportes. Basta ver como são hoje o Parque Dom Pedro II, a Praça Princesa Isabel, a Praça da Bandeira.
Mas vai além. As grandes vias que levavam automóveis para lá e para cá, construídas por volta dessa época, isolaram o Centro em um mar de carros. O Elevado Costa e Silva, atual João Goulart e apelidado de Minhocão, é parte dessa lógica. Da mesma forma, surgiu também a atual configuração da Praça Roosevelt, com o túnel logo abaixo dela e suas garagens subterrâneas dignas de um pesadelo recorrente de arquitetos e urbanistas.
Não foi só o progresso que determinou essa morte horrível para o Centro. Basta lembrar que, desde 1964, havia em Brasília uma turminha do barulho, metida em altas confusões e usando verde-oliva. Para eles, a vocação das grandes cidades deveria ser submetida à lógica do trabalho e do movimento - praças e ruas deveriam servir de passagem e não lugares de reunião, na visão da tecnocracia instalada no poder pelo golpe militar.
Povo nas ruas era o que os sábios da ECEME (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército) mais odiavam. Afinal, é só ter pessoas que se encontram, se reúnem e conversam nas praças e ruas, que logo aparecem ideias disparatadas como demandar uma falange de imprensa livre, um calcâneo de eleições diretas, um metacarpo de democracia; quando menos se espera, um Regime Militar autoritário pode acabar como o Cavaleiro Negro, de Em busca do Cálice Sagrado do Monty Python.
Ao mesmo tempo que o Centro era abandonado por quem podia se mudar para outros lugares e ficar longe das legiões de pobres que lotavam pontos e terminais e se penduravam como pingentes em ônibus, as ruas eram invadidas por comércios populares, vendedores ambulantes e gente que consegue arranjar uns trocados em qualquer lugar onde muita gente circula. E, também, as ruas antes glamourosas do Centro começavam a ser ocupados por gente jovem e sem muito dinheiro - daí o acúmulo de comércios, casas noturnas e bares mais underground, que formaram uma parte importante da economia do Centro durante anos.
4.
Durante anos, a vida cultural do Centro vivia de alguns resistentes de épocas passadas e de gente que ia para lá por ser uma região barata, fora do radar. A noite era restrita a quem tinha interesses específicos na região. Era quem frequentava as casas de baixa reputação, como dizem por aí na tradicional família paulistana, mas que podemos traduzir pelo bom e velho inferninho; ou quem ia atrás de baladas alternativas, em que Der Tempel, Retrô, Cais, Carbono 14 e outros reinavam.
A partir de 2005, um fato novo surgiu: a Virada Cultural, inspirada nas Nuits Blanches de Paris; que, por sua vez, eram reprodução do evento pioneiro de São Petersburgo, na Rússia, que rolava desde 1993. Nada de fazer proselitismo político aqui - há de se reconhecer que quem criou a Virada foi a administração Serra-Kassab, um bastião do conservadorismo paulista. Mas isso era do tempo em que alguém da direita ainda podia falar de cultura e democratização do espaço público sem ganhar a pecha de comunista e o ódio eterno do gado.
E foi isso que a Virada Cultural fez. Não foi causa de nada, mas foi um bom impulso e reconheceu a lenta revitalização do Centro de São Paulo após anos de negligência. Permitiu que cultura fosse levada para a população, que pessoas pudessem frequentar, como lazer, uma área da cidade que até então significava apenas trabalho ou passagem. Foi um movimento amplo, que começou antes com o bilhete único e a expansão dos meios de transporte público e introdução de horários menos restritos. De repente, a possibilidade de deslocamento em grandes distâncias, por um valor menos proibitivo, fez com que houvesse maior trânsito da periferia para o Centro expandido. Com um evento na região central, a atração tornou-se maior.
De 2005 para cá, muitos eventos culturais permitiram que o Centro virasse, pelo menos por um final de semana do ano, um território reconquistado pela população. Foi um sucesso tão grande que as administrações seguintes mantiveram o evento. Muitas festas e eventos seguiram essa onda.
Muita coisa boa foi levada para a população por conta da Virada. Shows no Theatro Municipal e outros lugares que pareciam interditados ao cidadão dos bairros mais distantes, palcos democráticos nas ruas, possibilidade de se passar uma noite inteira vendo o que quisesse, de graça.
Violência, furtos e arrastões aconteciam: mas dada a magnitude do evento, eram ocorrências isoladas. Tanto que a treta que mais chamou a atenção foi num show dos Racionais, em um dos primeiros anos da Virada, em que a PM saiu descendo borrachada sem motivo e causou pânico na multidão (uma das várias vezes em que vi isso acontecer em São Paulo - estranhamente, ninguém em volta é testemunha da “provocação” que a polícia teria sofrido antes de partir para a porrada).
E os shows que vi sem qualquer incidente foram muitos: Manu Chao, Man…or Astroman?, Nação Zumbi, os velhões alemães do Faust na Estação da Luz, os clássicos do jazz McCoy Tyner e Bobby Hutcherson na Praça da República, Alceu Valença, Elza Soares, Arnaldo Baptista no Municipal, Caetano Veloso e filhos no Anhangabaú. Muita coisa concentrada democraticamente no Centro; e tudo isso a pé, até mesmo pela madrugada, algo impensável antes dessa época.
Coincidiu também com o carnaval de rua democratizado dos últimos anos, da redescoberta de lugares legais do Centro, da valorização da cidade como um espaço para todos. Entre 2005 e 2016, a Virada parecia crescer e se estabelecer em definitivo.
5.
A Virada Cultural de 2017 trouxe outro clima. Sob pretexto de “descentralizar o evento” e valorizar os bairros, o recém-eleito prefeito de São Paulo, João Dória, mudou completamente o evento. Levou shows para bairros distantes, tirou do Centro a maior parte dos eventos, cortou verba e, segundo boatos de artistas participantes, boicotou na cara dura os próprios eventos da Virada.
E a perspectiva do prefeito Dória em relação à Virada Cultural ficou clara em outro plano dele. Saca só coxinha fazendo coxinhice na frase abaixo:
"Vamos deslocar a Virada Cultural para um único local e não vai ser no Centro da cidade. Vamos fazer a Virada Cultural acontecer em Interlagos, 24 horas, com segurança, com transporte, com conforto e sem os transtornos que, infelizmente, pela dimensão que ela assumiu ela proporciona. Ela vai manter tudo de bom que ela sempre teve, sem os aspectos ruins em Interlagos"
_citado de 'Doria desata crise com incertezas sobre a Virada Cultural às vésperas da posse', matéria do El País, 8 de dezembro de 2016
Ou seja, em bom português, “vamos segregar todo esse pessoal que vem de longe lá no autódromo; lugar de gente não é na rua, é no meio de uma pista de corrida e bem longe da região central".
Levando em consideração que os conservadores de outrora queriam trocar os locais de convivência no Centro por vias expressas e terminais de ônibus, não deixa de ser mais uma faceta dessa mesma ideia fazer todo mundo ir para o meio de uma pista de corrida, fora da região Central.
Esse conceito de Virada Cultural restrita vem do homem que queria padronizar a paleta cromática dos ônibus do transporte público (“uma confusão, cada um de uma cor, vai ter tudo a mesma cor") sem ter a mínima ideia de que as cores identificam regiões da cidade. Ou, ainda, a ideia de jerico de fazer o carnaval de rua na 23 de maio. Coerência é tudo na vida.
O resultado? O público na Virada Cultural de 2017 foi 50% menor em relação ao ano anterior.
Não é difícil entender o motivo; quem participa como público da Virada Cultural quer ter uma vivência de uma região da cidade que lhe parece distante e “proibida". É uma forma de democratizar o espaço público e trazer novas experiências. Meio como retomar a cidade - transformar o Centro em um espaço que é muito mais de convivência e participar de algo diferente do cotidiano, poder usar outras regiões da cidade fora do seu bairro.
Até hoje, a Virada Cultural não se recuperou, apesar de ter retomado no ano seguinte boa parte dos parâmetros anteriores após o fracasso da experiência Doriana (vale lembrar que o valente largou a prefeitura em 2018, completando o estelionato eleitoral em que o paulistrouxa sempre cai).
A pandemia de 2020 atrapalhou o cronograma de eventos; junte-se a isso a crise humanitária gerada pela política econômica mais ruinosa em décadas e que transformou o Centro de São Paulo numa terra de ninguém. Ao mesmo tempo, os paulistanos decidiram, na eleição de 2020, que era de boas não ter mais prefeito na cidade. Receita para o fracasso e para o possível fim de uma nova forma de se vivenciar o espaço urbano.
Deixo aqui a citação do secretário de Comunicação de Dória, Fabio Santos, e que é bem explicativa do que pensam os Donos do Espaço Público.
“Na Virada, o que acaba acontecendo – me perdoe a crueza – é que você tem uma galera que vem da perifa”
_citado de 'Doria desata crise com incertezas sobre a Virada Cultural às vésperas da posse', matéria do El País, 8 de dezembro de 2016
No bingo da aporofobia e do conservadorismo anti-povo, Dória e os seus preenchem a cartela inteira com louvor.
6.
Já falei antes da Virada Cultural e do Centro de São Paulo. É um tema a que sempre volto porque é um exemplo claro de como a reação conservadora acontece: assim que se percebe qualquer mudança no status quo, vai haver um abnegado administrador disposto a permitir que os injuriados com tanta liberalidade popular no espaço público não se misturem com essa gentalha.
A privatização do espaço público é o que mais faz a cabeça de gente como Dória ou Paulo Maluf, outro grande destruidor do Centro: temos de ter praças, parques, museus, teatros, cinemas etc, mas não temos que necessariamente querer que todo mundo tenha direito a isso, não é mesmo? Estão aí as concessões do Ibirapuera e do Pacaembu para entendermos como isso acontece.
Mas deixemos para lá essa discussão, por um instante.
O que importa mesmo é que a Virada Cultural tem muitos méritos e, mais importante, momentos memoráveis. Vi muita coisa boa, como falei, e tive ótimos momentos ao andar pelo Centro naqueles finais de semana lotados.
Um show especificamente me faz lembrar sempre da Virada Cultural. Aconteceu há uns anos, talvez 2018. No Largo do Arouche, onde já morei por uns meses.
Fomos nos aproximando do Largo cheio de gente, depois de passar por um show na Avenida São João, com Alceu Valença, Zé Ramalho e Elba Ramalho, com som ruim. Nesse palco, não sabíamos exatamente o que encontrar - uma das coisas boas da Virada é ser surpreendido em algum momento.
Era um palco menor, mas o público se aglomerava na frente, aguardando o início. Não era absurdamente cheio: dava para andar tranquilamente pelo meio da plateia. No primeiro acorde, já dava para saber quem era.
Um Guitar Hero, um compositor de mão cheia, um cara bem gente fina no palco, que claramente entrega um show que tem de tudo: músicas pop, dançantes, passagens instrumentais sem serem chatas, interação com a plateia, profissionalismo e bom humor.
Não era outro senão Luiz Caldas.
O mais ativo músico brasileiro, com 9 álbuns somente em 2022 e ainda contando. O homem que compôs mais de mil músicas desde 2010. Tem dezenas de discos e uma média de 10 por ano na última década - e detalhe importante: toca quase todos os instrumentos e produz por conta própria.
O Guided by Voices de Feira de Santana. O Sun Ra do Farol da Barra. O Leif Segerstam do circuito Barra-Ondina 1. E, do mesmo jeito que esses prolíficos artistas, Luiz Caldas lança o que quer, como quer. Tem enorme respeito pelo público, não depende de selo para gravar nada e disponibiliza tudo no seu site.
Tocou todos os hits que se conhece bem dele, incluindo música de novela. Fez solos que não são chatos - afinal, entende da coisa: é um dos grandes da guitarra no Brasil, ali pertinho de Jorge Ben, Pepeu Gomes e Robertinho do Recife. Tocou com uma banda super afiada, como se fosse uma jam session. Conversou com a plateia - e contou como, quando tinha 13 anos, queria tocar como Mark Knopfler. Emendou Sultans of Swing, música que tirou de ouvido logo que começou a aprender a tocar guitarra. Sem contar as citações de outras canções, que ele coloca com maestria no meio de suas músicas.
Uma hora, uma roda de pogo-mosh-whatever se abriu: o círculo se expandiu no meio do público até conseguir um espaço razoável no meio do Largo, e centenas de fãs entraram num bate-cabeça do bem. Axé, forró, rock, guitarras e carnaval misturados democraticamente, num quase trio elétrico embaixo da garoa paulistana. A frase que Luiz Caldas ostenta orgulhosamente em seu site é o que melhor descreve o que vi: isso é música sem fronteiras.
Melhor aproveitamento possível do espaço público. Saímos felizes, pegamos outra cerveja e fomos a pé pelo Centro, em busca de alguma outra boa surpresa que só existe quando se entende que a rua pode ser de todos.