Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Listas são sempre a saída mais fácil para escrever algo no fim de ano, quando já está todo mundo querendo partir para férias, encerrar o ano, ir para happy hour da firma em choperia dentro de shopping cent…ops, não exatamente. Mas deu para entender, não?
Mas gosto da ideia de listas. É divertido, é inconsequente, não precisa pensar muito. E é uma boa forma de fechar o ano, também.
2021 foi um ano em que ainda não se voltou à vida normal - e nem sei se voltaremos - e em que as perdas ainda se fazem sentir, mesmo que agora estejamos mais longe do pior. Em que, aos poucos, dá para pensar em sair de novo, reencontrar pessoas, ir aos lugares que você gostava. Ainda tateando, ainda pé ante pé.
2021 ainda foi um ano muito para dentro, em que a casa contou muito mais do que a rua. E a arte e os pequenos prazeres nos fizeram aguentar, novamente, mais um ano de isolamento, cuidados, fascismo e desolação.
Mas com uma sensação de que sobrevivemos, de alguma forma.
E para embaralhar as coisas, a minha lista é o que de melhor eu vi/ouvi/vivi no ano de 2021. Não exatamente uma lista de 2021.
E com vocês, então, os melhores do ano.
Melhor Álbum de Música Pop
Hello Nasty, Beastie Boys, 1998
Não é um disco que descobri agora. Na verdade, comprei logo que foi lançado e continuo ouvindo desde então. Regularmente, todo ano. E por que faz parte dessa lista? Simplesmente porque preciso falar o quanto esse disco é bom.
E concordo muito com os próprios Mike Diamond e Adam Horowitz, no livro - é o melhor disco deles. Para mim, o mais visionário e o mais ligado à história do hip hop, paradoxalmente. Respeitoso com as influências, sem ser apropriativo, sem ser derivativo, voltado para o futuro. Adam Horowitz: “é mais uma mixtape do que um disco. É um presente nosso para vocês.”
Encabeçaria listas dos melhores em qualquer ano que fosse lançado. Não é à frente do seu tempo, não é nostálgico, não é um grande disco do passado. E é tudo isso ao mesmo tempo. É um disco de 1998, de 1984, de agora. Ou, ainda, do século XXXI.
E, mais do que tudo, é um disco de festa: coloque e deixe tocando. Coloque no repeat, se for o caso. Não falha nunca.
Melhor Filme
The French Dispatch, Wes Anderson, 2020
Não é o melhor filme de Anderson. Nem o melhor filme do ano, na verdade. Mas foi o único que vi numa sala de cinema, em condições normais, esse ano, em plena tarde de uma quinta feira, sala quase vazia.
Valeu muito a pena ser esse o primeiro filme que vi em uma sala de cinema em mais de um ano e meio - foi como reencontrar um velho amigo.
O filme em si é divertido, mas você pode passar bem sem vê-lo. Wes Anderson repete muito do que sempre fez, homenageia gente boa (dezenas de bons escritores que passaram por revistas como New Yorker e outras), valoriza quem merece, traz de volta muita coisa esquecida nesse tempo em que a informação está toda aí para quem quiser, mas poucos sabem de fato que a querem.
E é filmado em uma cidade que parece locação construída, com estilização exagerada: a pequena Angoulême, sede do festival de quadrinhos mais importante do mundo.
Saí do cinema feliz por esse reencontro. E sabendo que, em 2022, vai ter mais.
Melhor Álbum de Jazz
Scenery, Ryo Fukui, 1976
Ryo Fukui fez um certo sucesso local nos anos 1970, quando Tóquio era uma das mecas do jazz no mundo, mas nunca foi conhecido no ocidente. O disco e a forma de tocar de Fukui não são nem um pouco revolucionários; e nem precisa. Apenas extremamente bem tocado, por um cara que era bem low profile e preferia tocar em clubes e ensinar alunos de diferentes partes do mundo. Mas manteve viva uma forma de tocar standards - sem inovação, sem pretensão, apenas tocando do jeito que gosta e que entrega ao ouvinte o que ele espera - praticamente o que Bill Evans fazia. Ou, ainda, como um McCoy Tyner ou um Dom Salvador maduros. Vale, especialmente, a versão de Autumn Leaves (Les Feuilles Mortes).
No Sapporo Slowboat Jazz Club, que ele abriu com a mulher em 1995, tocou até o final da vida, discreto, quietinho no casulo, recebendo convidados e amigos do mundo todo, madrugada adentro. Precisa mais?
Melhor Show
Stop Making Sense, Talking Heads, 1984
Num ano sem shows - pelo menos para mim, uma vez que não parece ser o caso de boa parte da humanidade, já que vi em stories e twitter aglomerações como se não houvesse amanhã - recorri a um bom e velho show que vi muitas vezes e que sempre funciona para quando você quer esquecer um pouco de problemas.
Vi em VHS zoado, muito tempo atrás. Depois vi no cinema, em cópia restaurada. Vi outras vezes pela internet, vi no festival de documentários musicais In-Edit em projeção ao ar livre na Cinemateca, vi de novo há pouco tempo. E sempre é bom.
O filme, dirigido por Jonathan Demme, é música o tempo todo. É a Imperial Phase da banda (termo cunhado pelo grande Neil Tennant, do Pet Shop Boys - quando nada dá errado para a banda e sucesso comercial e qualidade artística andam juntos). Já haviam passado pelo pós-punk, pelos grandes discos com Brian Eno e estavam bem no meio da fase megaestrelato, lotando todos os shows. O minimalismo da construção do palco e do figurino e a direção de arte elegante deixam claro que tudo é pensado para o maior impacto possível da música.
Show com um David Byrne genial, a banda super afiada e mostrando porque o Talking Heads de fato, não precisa voltar: já fez tudo o que deveria e mais um pouco; foi reconhecida no auge. Mas eu não me importaria se voltasse. 😉
Melhor Reedição
Qualquer disco de demos, PJ Harvey.
Entre 2020 e 2021, PJ Harvey está lançando, diligentemente, versões demo de seus álbuns, um a um. O que poderia ser um caça-níqueis descarado com outros artistas (como naquelas caixas de CDs em que enfiam até gravações em que o engenheiro de som ligou o equipamento sem querer ao se atrapalhar com uma carreira de pó na mesa do estúdio), para PJ Harvey vira discografia essencial.
Não é que são versões melhores do que as que saíram nos discos - são, na verdade, outro bicho. Assim como são também experiências únicas os ótimos shows ao vivo dela, como aquele histórico do Primavera Sound de 2016.
Vale ouvir e comparar com os lançamentos originais: é uma boa diversão para o recesso de final de ano, na ressaca das festas, entre uma rabanada e outra.
Melhor Banda
Parliament/Funkadelic, anos 1970
George Clinton fez sucesso com suas bandas gêmeas separadas no nascimento, nos anos 1970. Essencialmente, era um grande coletivo de músicos incríveis, com sutis diferenças de lineup e 2 frentes para o picareta genial Clinton explorar facetas diferentes da música: Funkadelic era mais psicodélico, viajadão, com influências do rock, e Parliament um funkão de festa, e que fez bem mais sucesso na época. Mas as duas bandas são responsáveis por alguns dos melhores discos dos anos 1970.
Em 2021, Maggot Brain, do Funkadelic, fez 50 anos - e merece todo o reconhecimento tardio. Bom para festas, para ouvir na estrada ou, ainda, para ouvir em casa, principalmente o grande solo de Eddie Hazel na faixa título.
Melhor Dueto
Utopian Ashes, Jehnny Beth & Bobby Gillespie, 2021
Bobby Gillespie tem uma longa história no rock, desde os tempos em que largou as baquetas no Jesus and Mary Chain para se dedicar ao vocal do Primal Scream. Ele é bem mais do que um Phil Collins da C-86 generation - Bobby mantém a banda sempre relevante e, com seu conhecimento enciclopédico da história da música, sempre retoma influências boas e faz discos que trazem aquele ‘quentinho’ de se ouvir algo novo, mas que soa bem familiar.
Jehnny Beth é um furacão: vi um dos shows mais intensos da vida no Primavera Sound, há alguns anos, quando ela liderava a banda Savages. Uma mistura de Iggy Pop com Siouxie Sioux, com a plateia nas mãos e sem parar um minuto. Hoje, em carreira solo e atuando em filmes, deve estourar no mainstream em algum momento.
Bobby e Jehnny retomam a tradição de discos de duetos clássicos: Johnny Cash e June Carter, Gram Parsons e Emmylou Harris, Dolly Parton e Kenny Rogers, Serge Gainsbourg e Bardot/Birkin/qualquer-outra-mulher-incrível que o pilantra francês arrastava para seus duetos.
Todas as obsessões de Bobby com a música americana - Muscle Shoals, Motown, Stax, Ardent, Nashville, Memphis - casam bem com a voz da multitalentosa francesa Jehnny Beth. Disco bom para se ouvir nas madrugadas e para gerar futuros volume 2, 3…
Melhor Livro de Não-ficção
Acid for the Children, Flea, 2019
Michael Balzary, o Flea, do Red Hot Chili Peppers, teria tudo para ser um mala: toca em uma das bandas mais qualquer-coisa da história, que faz parte do grande limbo sem imaginação de bandas favoritas de rádio rock e galerias da 24 de maio; tem aquele jeito surfista-neo-hippie-namastê do circuito Vila Madalena-Maresias; curte um slap no baixo; e ainda inspirou, junto com o chapa Anthony Kiedis, toda uma geração a fazer tatuagens feias (se bem que tatuagens tribais já estavam por aí antes deles 🤔)
Mas essa autobiografia é uma grata surpresa: Flea escreve bem, sabe contar boas histórias e confirma o que eu já achava - que é um cara super gente fina, tipo um Ringo Starr californiano, que sempre é amigo de todos e parece sincero no que fala. Livro fácil de ler e que traz aquela sensação de que é um amigo contando histórias numa festa, tomando umas e dando risada com o pessoal. Recomendada leitura de férias, na praia, sem compromisso.
Melhor Livro de Ficção
The Stone Face, William Gardner Smith
Publicado pela primeira vez em 1963, esse livro ficou fora de circulação por décadas, até ser republicado pela NYRB Classics em 2021 - aliás, a melhor editora para recuperar autores esquecidos e trazer grandes livros para novas gerações.
O afro-americano Gardner Smith estudou jornalismo com a G.I. Bill, após servir no Exército americano no pós-II Guerra. Estacionado na Alemanha Ocidental ocupada, conheceu a Europa e, depois de alguns anos como jornalista nos EUA, emigrou em definitivo para Paris, seguindo os passos de expatriados como James Baldwin e Richard Wright.
A liberdade que experimentou em Paris foi parecida com a de seus conterrâneos, longe do racismo de seu país de origem. Mas sua chegada coincidiu com a guerra de libertação da Argélia. Em primeira mão, descobriu como a opressão era a mesma, só que com outra configuração: argelinos e árabes em geral eram cidadãos de segunda classe, sujeitos a todo o tipo de preconceito e vítimas de injustiças e violência policial.
O livro é uma das poucas obras a abordar a repressão das forças policiais parisienses no protesto de 17 de outubro de 1961, em que milhares de argelinos, árabes e simpatizantes foram atacados selvagemente no meio da manifestação pacífica. Dezenas de corpos apareceram no Sena durante semanas, após o confronto desleal.
Bom para entender e colocar em perspectiva muito do que acontece hoje em dia.
Melhor Restaurante
Metzi, cozinha mexicana, aberto em 2020 (algumas semanas antes da pandemia)
Um casal que se conheceu na cozinha do Cosme, de NY, ele mexicano de Oaxaca, ela brasileira, é responsável pelo primeiro restaurante mexicano ‘de verdade’ de São Paulo, uma cidade relegada por anos ao medíocre Sí Señor ou aos carinhosamente apelidados por mim de “Mexicanos do Terror", aqueles restaurantes da Rua dos Pinheiros que pareciam cenário de Um Drinque no Inferno, de tão caídos que eram.
A comida é impressionantemente próxima do que se come no México - o que é um feito e tanto, dados os ingredientes, difíceis de se encontrar por aqui. Ainda não fomos pessoalmente; pedimos delivery apenas, em uma ocasião especial, e fez lembrar os bons restaurantes de Enrique Olvera ou a Casa Oaxaca, decano dos bons restaurantes da cidade mexicana.
Vale a visita e vale o delivery. E um bom brinde com mezcal, para comemorar que São Paulo tem pelo menos um cantinho que deixa de lado a cafonice provinciana de copiar modas ruins, em restaurantes cenográficos.
Melhor Exposição
Enciclopédia Negra, Pinacoteca do Estado
Trabalho monumental de compilação de biografias apagadas pelo tempo e pela opressão cultural, o livro de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz foi transplantando para uma exposição impactante, extensa e que marcou a primeira vez que saímos para ver uma exposição em quase um ano e meio.
O reencontro com a Pinacoteca, como já contei aqui, foi o momento em que caiu a ficha de que, aos poucos, dá para continuar vivendo; na verdade, é essencial continuar vivendo. Ainda mais que arte e cultura são grandes fantasmas para essa gente ignorante e desumana que está no poder - quanto mais ocuparmos todas as trincheiras, melhor.
Melhor Música
Do you realize?, Flaming Lips, 2002
Para terminar, a melhor música do ano. E que poderia ser de qualquer ano.
Foi também a de 2020, principalmente para mim.
Em mais um ano com tanta gente que nos deixou, foi relevante e vai continuar sendo.
A mensagem que mais dá forças para entender o que vivemos nesses últimos anos e seguir em frente. Para tocar no Natal, na passagem do ano, ou simplesmente quando você estiver precisando.