Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Intro.
Sneaker pimp, diz a lenda, foi um termo cunhado pelos Beastie Boys, por volta de 1993: apareceu na revista que publicavam, Grand Royal, da qual já tive números que se perderam, ou que talvez estejam no meio de várias outras da mesma época (tenho pilhas de The Face, Dazed&Confused, I-D, Hypno e outras num armário esquecido na casa da minha mãe).
Alguns dizem que de fato havia alguém na folha de pagamentos da banda com a única função de procurar sneakers raros e com esse cargo de sneaker pimp; outros dizem que era apenas uma brincadeira do staff com a obsessão dos 3 b-boys com tênis descolados e esquecidos. Por mais que a cultura sneaker tenha tido um grande impulso de Mike D, King ad-Rock e MCA, não foram eles que a inventaram - como tudo no Pop, os pais são muitos e os que tomam para si a paternidade de sucessos são sempre muitos mais.
Hip-hop veio antes e, ao mesmo tempo, a cultura de dance music e de clubes britânica também tinha um papel central para os sneakers. Mas os Beasties eram a face mais comum quando se tratava de o que era legal ou não na época - e eram caras curiosos, sempre a fim de aprender e ir atrás do que era novo ou interessante. Descobrir sportswear e tênis, então, era um passo lógico para os três.
Passei metade da minha vida vestido como um Beastie Boy e outra metade como um membro do Joy Division (não tão separado assim - muitas vezes, era ao mesmo tempo. E isso, sem contar um período Madchester no meio disso tudo). Uma coisa que sempre mantive, porém, foi essa curiosidade por sneakers. Claro, em menor escala e de forma mais discreta. Mas sempre que posso, vou atrás de algum novo, diferente, pouco conhecido, de origem exótica.
E eu não comprava para colecionar, mas para usar - já joguei vários fora, quando ficavam gastos demais. Uma pena, porque alguns nunca mais encontrei de novo. Usei sempre muito bem, até chegar mesmo no bagaço - ia a shows, viajava, andava para todos os lados, enfiava o pé na lama, na água, na jaca. E, principalmente, para mim, música e sneakers sempre foram associados.
Numa madrugada recente, olhei para meu armário, um pouco esquecido na pandemia: no último ano e meio, não tive muitas chances de usar o que tenho. Enquanto tirava lá de dentro alguns tênis abandonados desde então, tentando me certificar de que algum bicho escroto não fez usucapião deles, lembrei de boas histórias em que eles estiveram nos meus pés.
1. Converse Pro, São Paulo, 2005
verde e branco, couro
Sempre tive muitos Chuck Taylors. Um par de vermelhos quando tinha 6 anos, cano alto, que eu odiava não poder usar na escola; ou um verde cano alto muitos anos depois. Além disso, era tradição ter brancos de cano baixo - foram vários, até gastar completamente. Em outros momentos, também tive Jack Purcells, incluindo um de couro. Mas o Converse Pro é um dos que mais me acompanha e com o qual vi shows memoráveis. Esse, especificamente, divide meu armário com um One Star preto e um Converse Pro Court bem 1980s.
O Pro verde e branco é mais cara de 1970s: solado baixo, de um tipo que não chama muito a atenção entre os Converse e nem em sneakers em geral. Mas sempre vi pouca gente usando um desses. No The Sneaker Database, entre os mais de 5000 tênis listados sob a marca Converse, ele não aparece - apenas outros tênis próximos. Aparentemente, era um estilo mais de rua.
Uso até hoje e perdi a conta de a quantos shows fui com ele. Mas resistiu: ainda está aqui, mesmo após o primeiro Lollapalooza, quando ainda era no Jockey Club e se chafurdava na lama sem dó, nas caminhadas entre um palco e outro.
E antes vi Wilco com abertura do Arcade Fire no Tim Festival de 2005 com ele, ainda novinho. Uma das melhores coisas do Festival no Rio era o local, o MAM do Rio. Parecia interessante: show na Praia do Flamengo, em tendas montadas nos jardins à beira-mar, num museu de arquitetura fantástica.
Peguei um táxi no Leme, preocupado com a hora, após um dia flanando pela orla. Mas, em poucos minutos, eu já estava na passarela que levava ao MAM, após o motorista correr absurdamente sem que eu tivesse pedido - desconfio que ele sequer percebeu minha pressa, apenas seguiu seu ritmo normal. Falava despreocupadamente sobre qualquer assunto aleatório e cantava pneus pelas avenidas do Rio. Mais uma noite normal na Cidade Maravilhosa.
Cheguei em frente ao MAM e algumas pessoas me direcionavam para um corte feito no alambrado, segurado por 2 caras para que outros passassem. Agradeci e falei que iria direto para a entrada. Riram e falaram: “aqui É a entrada". Segui por ali e estavam certos - o ingresso foi pedido logo adiante e em breve eu estava no museu.
Corri até a tenda do palco onde Arcade Fire/Wilco iriam tocar, preocupado com o horário apertado. Ao entrar, nada de movimentação - parecia até que o show já havia acabado. Descobri que nem começara: como o som "vazava” de uma tenda para outra, nenhum show com amplificadores poderia começar antes que terminassem os shows de jazz. Esperei.
Horas depois, Jeff Tweedy, do Wilco, chegou ao microfone, de volta para o primeiro dos 3 bis da noite. Falou “a gente não vem muito para esses lados. Então vamos continuar tocando até vocês se cansarem". Já era 1 da manhã.
Encontrei um amigo que não via há muito tempo, no meio da admiravelmente grande plateia que resistiu até àquela hora. Era bem quando tocaram I Shall Be Released, cover de Dylan e que aparece no filme The Last Waltz. Foi a música que encerrou e ficamos ali conversando sobre aquele show incrível.
Spoiler: Na verdade, dois shows incríveis. Arcade Fire no começo da carreira, Wilco já com vários discos e no auge da potência, Nels Cline recém-admitido na banda. Teria tanto para contar, que não cabe aqui.
Meses depois, encontrei esse amigo de novo por acaso, em um evento da faculdade onde estudamos anos antes. Editor de cinema, ele falou para mim, com um sorriso: “Sabe, quando estou com um trabalho foda na madrugada, daqueles que você não sabe até que horas vai, eu lembro daquele show. E aí consigo seguir adiante".
2. Nike Blazer hi, Buenos Aires, 2008
azul escuro e verde musgo, tecido
Em algum momento dos anos 2000, Buenos Aires virou um lugar cool para sneakers; na verdade, era cool para qualquer coisa, recém-saída da pior crise econômica da história argentina, o que não é pouca coisa. Ninguém queria guardar dinheiro, escaldados que estavam por governos picaretas e corralitos confiscatórios inesperados. Todo mundo vivia como se não houvesse amanhã. E vivia. E vivia.
Adidas sempre foi gigante por lá - muito por conta do patrocínio de seleções de basquete, futebol e rugby, esportes com seguidores fanáticos. Mas a cultura streetwear em Buenos Aires sempre foi forte e, em algum momento, uma loja-piloto da Nike foi aberta em Palermo. No mundo todo, havia poucas iguais.
Foi lá que encontrei uma versão de um Nike Blazer em tecido, que nunca vi em nenhum outro lugar. Hoje está surrado por anos e anos de asfalto, pistas de dança, barro, viagens e, óbvio, também por ter apanhado muito em shows.
Sempre levei em viagens. Mas um dos shows que lembro de usá-lo foi na própria Buenos Aires: um show de Luis Alberto Spinetta que eu sequer esperava, no Niceto Club; na verdade, sequer conhecia algo dele, apenas ouvira falar de Almendra, e foi uma descoberta incrível. Informação sobre música dos vizinhos era bem escassa - Brasil, esse gigante das Américas, sempre dá as costas ao próprio continente.
como é comum por lá, depois de um show como esse avança-se pela madrugada, numa cidade que dorme tarde e que é ótima para se caminhar sem rumo e encontrar bares por acaso. Assisti muitos outros shows depois com esses mesmos tênis: talvez uns 2 ou 3 Mudhoney, alguns festivais e, inclusive, um dos shows mais bizarros que já vi.
Em 2013, vi que haveria um show do The National no Moma PS1, irmão mais novo, menor, mais conceitual e contemporâneo do museu famoso. Lugar bacana, uma antiga escola pública desativada no Queens - que, apesar de já ser vítima da expansão imobiliária e da gentrificação, ainda tem uma cara de Nova York das antigas. Até pensei em parar no diner da saída do metrô, com aquele jeito bem tradicional, saído diretamente de um filme de Sidney Lumet dos anos 1970.
O show era, na verdade, uma obra de Ragnar Kjartansson: em um domo no pátio do museu, a banda tocaria durante 6 horas ininterruptas sua música Sorrow. Sim, só ela. Sem parar. Sem tocar outra coisa. Do começo ao fim.
A intenção do islandês era transformar uma música pop em uma "escultura de som”, nas palavras do artista, “para invocar noções do sofrimento romântico e do Weltschmerz contemporâneo*".
(*Isso significa melancolia dos dias de hoje, para você aí).
Então tá. 😒
Alguns abnegados ficavam no cercadinho da plateia durante todo o tempo - a maior parte passava um pouco ali e saía, para retornar mais tarde. Eu entrava e saía do Domo e pegava chicken wings e cerveja na banquinha montada pelo ótimo M.Wells Dinette, restaurante bacana do museu, mas ali na sua encarnação podreira com jeito de churrasco de rua.
Ao total, a banda tocou 108 vezes a mesma música, conforme atesta o Setlist.fm, obsessivo site para obcecados fãs de música. Eu mesmo devo ter visto umas 15 ou 20 versões nessa tarde. Nos anos seguintes, vi mais dois shows da banda e eles não tocaram mais a música - será que já deu para eles?
Sorrow found me when I was young. At least 20 times.
Algumas vezes, sem muita melancolia: na verdade, até com um copo de papel cheio de cerveja na mão e a barba lambuzada por gordura da pele da asinha de frango.
3.Munich, Barcelona, 2015
preto e verde, com detalhes em branco, tecido e camurça
Sempre que vou a alguma cidade que ainda não conheço procuro marcas de tênis locais. De preferência, pouco conhecidos. Barcelona tem uma marca própria: os tênis Munich, pelo que sei, são conhecidos de quem joga futebol de salão e aparecem bem na streetwear da cidade, mas são obscuros. Bem o que eu queria.
Calcei meus Munich em algum dia da semana anterior ao Primavera Sound de 2015, quando as festas de aquecimento acontecem em lugares como a Sala Apolo. Era só treinar uns si us plau, merci, de res, vi negre e gintònic para distribuir por aí e parecer um catalão típico nas ramblas do planeta.
Sala Apolo é um dos lugares mais divertidos no mundo todo para se ver shows. Um antigo teatro, amplo, com boa visão e um palco que dá para ficar bem perto. Entrei e já fui pegando um gin tônica no copo de vidro - pensei "que bom que não tratam a plateia como crianças com mãos de alface, que só podem tomar algo se for em copo de plástico".
Ao final da noite, enquanto uma dupla de DJs da Escócia tocava big beats alucinados, andei pela pista semideserta em que alguns resistentes continuavam a dançar. No meio de Ace of Spades, do Motorhead, em pesada versão com beats eletrônicos adicionados (e que ficou bem mais thrash do que se imagina), acenderam-se as luzes para expulsar dali os últimos zumbis festeiros e aí pude ver o que havia no chão e que eu sentia o tempo todo na sola dos tênis: à minha frente, a luz fazia refletir os milhares de cacos de vidros dos inúmeros copos quebrados durante toda a noite. Fiz uma nota mental de não voltar mais a esses shows usando tênis ou qualquer sapato de sola mais fina. Na tarde seguinte, ainda havia cacos de vidro presos no solado do meu Munich.
Fast forward para 2016.
Festa de encerramento do Primavera Sound, na mesma Sala Apolo. Filas e mais filas na porta para conseguir entrar na lotada casa de shows catalã. Na fila, duas meninas tentavam entrar comigo - minha pulseira dourada que dava direito a 3 dias de shows no Parc del Fòrum também seria, em tese, meu ingresso Willy Wonka-style para o show 'secreto’ do Avalanches, que voltava depois de um sumiço de mais de 10 anos. Nada feito: o segurança falava que já estava abarrotado de gente lá dentro. Mas como eu tinha a pulseira do festival, ele disse que eu poderia entrar na Sala 2 do Apolo e ver se depois deixavam passar para a principal. Mas só eu.
Segui adiante, claro, e as duas catalãs ficaram do lado de fora. Eu estava agora no meio de uma muvuca, tentando ver se conseguia sair da divisão de acesso para a Premier League. Lá, na pequena e claustrofóbica sala 2, esperei calmamente alguém permitir a entrada. Um brasileiro - fácil de reconhecer, falava um portunhol bem típico - gritou algum palavrão que não entendi e só vi o segurança entrar no meio do público, pegar o folgado pela camisa e jogá-lo na rua. Fim de noite para esse aí.
Ao mesmo tempo, as duas catalãs que eu havia deixado lá na fila entravam por uma porta lateral, guiadas por um segurança do tamanho de um urso.
Em alguns minutos, quando já estava imaginando que teria que ir embora, dois seguranças e uma hostess abriram a porta que dava acesso à sala 1 e mandaram que entrássemos logo. Não pensei duas vezes. Até porque o dia inteiro de bebedeira pela cidade fazia com que eu precisasse ir rápido até o banheiro.
Posicionado no mictório, olhei para o lado e dei de cara com as duas catalãs saindo de uma cabine reservada do banheiro masculino; logo em seguida, saiu de lá o segurança gigante que as havia colocado para dentro da Sala Apolo.
Um nórdico loirão muito doidão de dreads, do meu lado, falou para o segurança “you are beautiful, maannnn…girls, girls, girlssssss”
O segurança levou o walkie-talkie aos lábios e, com uma cara de desprezo, falou as palavras-chave: “Borracho en el váter.” Em pouco mais de um minuto, quando eu já estava na pista, vi o loirão sendo jogado na rua, como acontecera antes com o brasileiro folgado.
Aparentemente, muita gente ali que não sabia que o Avalanches não toca instrumento algum, apenas faz DJ sets; estranho, pois é o mesmo que descobrir que Michel Temer é vice-presidente somente depois de 5 anos. Em meio à debandada geral logo após o início do show, vi as duas meninas, velhas conhecidas da fila, indo embora - tanto esforço por tão pouco? - e tentava me concentrar no palco, mas estava incomodado com algo que eu sentia sempre que trocava o pé de apoio. Algo na sola dos meus Munich…
Finalmente lembrei o porquê de ter estabelecido como regra não ir mais à Sala Apolo usando tênis.
Assisti muitos mais shows com esses tênis do que os que contei acima. Também tive outros tênis que não aparecem aqui. Beastie Boys vi com um Converse Chuck Taylors tradicional verde, muito tempo atrás, e depois com um Onytsuka tiger quando vieram uma segunda vez.
PARA SABER MAIS, EM 5 CLIQUES
O livro que conta toda a história dos Beastie Boys é bem completo e vale a pena para quem é fã - para quem não é, pode ser excessivo. Vale mais, nesse caso, ver o doc na Apple TV. E os Beastie Boys inclusive lançaram o próprio Adidas em 2019.
Ainda não decidi se a página do setlist.fm com o show do The National no Moma PS1 é irônica ou se é apenas um sério trabalho obsessivo de algum fã - listar os vários “encores” é ótimo.
Curioso site com um database de tênis e que parece bem completo.
O Brooklyn Museum fez uma exposição, tempos atrás, sobre Sneaker Culture. Rua encontra a arte e vice-versa.
Gary Aspden, que já foi da Adidas e hoje é consultor (principalmente para as 3 listras), fez esse vídeo bem legal na Argentina, sobre uma loja repleta de modelos vintage da marca.