Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Mais uma vez, aqui no Locked Groove, eu tento escapar de qualquer assunto que esteja bombando, que termine sempre em discussões acaloradas e gente querendo empalar os animais domésticos uns dos outros.
Para essa semana, pensei em escrever sobre algum autor que pouca gente leu, algum livro, alguma história velha. Tudo bem calminho. Mas logo abandonei a ideia e achei que seria uma boa falar de algo que fizemos recentemente - uma viagem ao Rio de Janeiro, para o primeiro festival de música desde o começo da pandemia. Comecei a trabalhar nisso.
Mas fui atropelado por mais uma polêmica imbecil do Twitter.
Nesses casos, o mais sensato é fazer de conta que não viu e sair imediata e disfarçadamente para o lado oposto, não é?
Mas a verdade é que, como eu não tinha um plano B tão fácil de implementar, segui com o Rio. Como resistir a uma polêmica tosca e insignificante, da qual todos terão esquecido em pouco menos de uma semana?
E aí vai mais um texto feito no calor do momento, com os tradicionais erros de revisão e de checagem de fatos.
P.s.: O título dessa semana vem da música de Ary Barroso que, coitado, não merece essa companhia; mas se é para usar música em título, que se escolha sempre uma menos óbvia. Lição para o W.O., que acredito que não efetivaria um estagiário com tamanha preguiça mental ao ponto de usar uma citação batida como aquela da sua coluna no Globo.
Boa leitura, até mais. 😉
Intro.
Eu tinha uma boa ideia para o texto dessa semana. Tudo a ver com uma recente viagem ao Rio de Janeiro.
Mas fui passado para trás por um publicitário aposentado, direto de Londres.
Isso acontece sempre. Já aconteceu muitas vezes.
Li uma vez um conto de Bukowski em que seu alter-ego, Hank Chinaski, estava em um emprego qualquer e foi mandado pelo supervisor para uma tarefa besta, poucos minutos antes do intervalo do almoço. Ele corre para tentar resolver o quanto antes e voltar a tempo de conseguir comprar algo no carrinho de comidas. Coisas de país capitalista desenvolvido. O trabalhador não tem Vale-alimentação e nem horário de almoço definido; sequer tem algum lugar perto onde possa comer fora do local de trabalho. Tipicamente americano.
Hank Chinaski - um grande dum filho da puta azarado que só se dá mal e sempre faz tudo da forma mais preguiçosa e desleixada possível - consegue completar a tarefa no menor tempo possível, mas não alcança o carrinho de comidas a tempo. Como diz Bukowski, ele é novamente derrotado pelo espírito do pátio da escola, essa "instituição” da vida americana que sempre funciona para os que estão por cima.
E era bem isso. Eu havia pensado em um texto falando do Rio de Janeiro, de como a Cidade Maravilhosa continua cheia de encantos mil.
Mas, ao final, o garotão Theo (filho do tal publicitário aposentado) e seus amigos chegaram primeiro, num texto escrito pelo pai para sua coluna em um jornal carioca. A essa altura, com toda a polêmica gerada, todo mundo leu ou ouviu falar. E se você não fez uma coisa nem outra, sinta-se privilegiado.
E se você gostar de fazer isso com você mesmo, pode ler o texto original aqui, no tuíte de quem abriu a porta do inferno, pelo visto.
E a real é: eu estava doido para hitar, quem sabe meter aqui um texto com uns passeios bem jecas, umas piruetas pelos pontos mais instagramáveis do Rio, ou até mesmo dar uma de cultureba e falar de um museu ou outro.
Mas não.
O papai do Theo furou a fila e achou por bem contar a saga Boça in Rio, para um público leitor acostumado com gênios da reaça como Merval Pereira e Vera Magalhães. E tudo com o gingado e a malemolência de quem atua em piloto automático há décadas, depois de ficar multimilionário e passar a viver de louros passados.
So it goes.
1.
Que coisa injusta de se falar, não?
Quando cito o publicitário aposentado, parece até que estou cuspindo no prato em que comi, como se o fato de trabalhar em propaganda desmerecesse o pai-herói. Na verdade, a ex-profissão dele não é o motivo pelo qual o texto é preocupante - há muito mais em jogo, e logo volto nisso.
Full disclosure: a verdade é que já estive lá onde o pai do Theo também esteve.
Não na parte boa de ganhar prêmio, contar dinheiro, morar em Londres e ter babá que cuida de apartamento no Rio; mas na parte inglória de ter que ralar na publicidade para pagar as contas.
Quando eu tive de começar a pagar boletos, ainda na faculdade, a publicidade foi minha porta de entrada para o mundo do trabalho. Se não fosse a chance de trabalhar numa agência e, pasmem, ainda por cima com remuneração (uau!), talvez tivesse que ter feito as malas de volta para o interior.
E nessa época vi o quanto era complicado o mercado e tratei de ficar pianinho. Anos depois, já tendo feito muita coisa nessa área, eu via amigos com 27 ou 28 anos ainda trabalhando como estagiários, basicamente pagando para trabalhar e esperando a “grande chance" em uma agência como a do pai do Theo. Alguns tiveram, outros não.
Pulei fora assim que pude. Mas sempre continuei perto desse mundo, já que design é bem próximo e continuei sabendo o que acontecia com pessoas que perseveraram na publicidade e repetiam as mesmas histórias de sempre.
O que me parece mais grave, na coluna por W.O., é a completa alienação do agora infame Theo em relação a tudo o que é narrado no texto seminal do pai.
Sob o controle remoto do progenitor, o menino e seus amigos são conduzidos de um lugar a outro de um Rio de Janeiro de cenário de comercial, uma Aldeia Potemkin meticulosamente construída pelo pai e suas relações: a ex-babá que "é da família", o amigo Jorge Ben que ganhou um extreme makeover nos anos 1990 e, em troca, eternizou a agência do pai-herói numa música, outros amigos como Caetano, Paula Lavigne, Lene de Victor, Lulu Santos, Roberta Sudbrack. Todo mundo reunido como se fosse um elenco de apoio. É um casting montado para povoar, via After Effects, o cenário do Rio idílico erigido pelo pai ex-publicitário. E com catering com empadinhas de camarão do restaurante Caranguejo ou outras comidas de lugares citados em profusão no texto.
Theo não tem ingerência sobre nada. É conduzido como se fosse um estagiário recém-admitido. Joga Frescobol na praia de acordo com o script idealizado pelo pai, que está em outro continente e sabe que o menino e seus amigos saberão do que se trata, uma vez que tomaram contato com o esporte em Londres, por meio de uma loja de lá. Come as empadinhas encomendadas pela babá a partir do briefing do pai. Da forma que o pai determinou, vai ao show do Caetano para vê-lo querer gritar como são lindos os burgueses e, finalmente, emenda uma after party porque Paula Lavigne assumiu a condução da night out dos turistas londrinos, como uma gentileza ao pai-herói de Theo.
O pouco de liberdade que parece ser conferida ao rebento é “acordar cultureba” e ir a museus - a primeira vez que os jovens estudantes podem escolher algo no schedule intenso criado pelo pai de Theo. Graças ao budget sem restrições que o diretor de criação da porra toda provê, os cenários sucedem-se de forma imperceptível, criando um storytelling sem interrupções ou perrengues para os 5 amigos.
E é esse o ponto. Em toda a narrativa do pai de Theo, em nenhum momento fica aparente se há interação com alguém que não esteja previamente inserido no planejamento. Tudo que os 5 meninos veem é pelos olhos do pai ex-publicitário. É a visão de mundo dele, moldada por sabe-se lá quais experiências, mas que, com toda a certeza, não são as que esses meninos teriam, caso tivessem assumido o controle da própria viagem.
O escritor Bruce Chatwin1 enfatizava a diferença entre um turista e um viajante. O primeiro tem tudo planejado de antemão para garantir o mínimo de imprevistos, almeja ver o que já espera encontrar e tem sempre a vontade latente de retornar à sua rotina normal, que é o que o compele a um roteiro pré-determinado e sem surpresas. Já o segundo se deixa levar por encontros fortuitos, acasos e golpes de sorte; aprende com quem encontra pelo caminho, interessa-se pelo que vê em cada lugar de forma inesperada, busca compreender o contexto em que está inserido.
Em outras palavras, o viajante vê o mundo pela perspectiva da alteridade - esse termo muito caro à Antropologia2, que significa perceber a diferença, enxergar-se pelo olhar do outro e compreender algo sobre você mesmo, ao entender a visão de mundo do outro e entender que há complementariedade. É a interação e a interdependência em cada aspecto da viagem e da vida.
Theo, na narrativa do ex-publicitário, é simplesmente um device para seu roteiro. Não que o criativo de Londres não ame o filho; parece ser daqueles que, se puderem, darão sempre filé mignon para a prole. Mas, de forma bem pouco sutil, quer que o filho tenha os mesmos pensamentos, experiências, portos seguros e gostos que ele - ao menino, não é facultado achar Caetano um saco, tomar caipirinha de 51 num pé-sujo da Prainha ou enveredar por inferninhos de Copacabana ao invés dos salões do Copacabana Palace.
O infante Olivetto, ao fim e ao cabo, sequer é protagonista da própria viagem: da forma como é narrada, a viagem diz mais respeito ao pai, às suas conexões, amizades, gostos e idiossincrasias do que ao menino. Theo está lá simplesmente para fazer figuração nos cenários do Rio onírico que o publicitário aposentado tem em sua memória (ou que acha que tem).
É uma viagem que lembra as daquele comentarista do Manhattan Connection que hoje é meio que um Anthony-Bourdain-do-MBL. Pouco importa o lugar: o que vale mesmo é montar a cena com o olhar para o infinito no pôr-do-sol clichezão, andar elegantemente em meio a uma coreografia ensaiada de figurantes locais, fingir espontaneidade à mesa com alguém do "país exótico” para mostrar seu sorriso simpático e profissa de ex-modelo.
Uma viagem sem contexto, sem troca, sem reciprocidade - Theo é um turista em seu próprio país, uma vez que, como diz o pai, sua vida real acontece em Londres ou na cidade ao lado de Los Angeles onde estudará Cinema.
Uma viagem sem alteridade - ouso dizer, até, que é o contrário: uma viagem com muito colonialismo.
Observação rápida: A alteridade veio para desconstruir o caráter colonialista e eurocêntrico da Antropologia, tida como a ciência do Colonialismo. Faltou só combinar com os adversários. Ainda tem gente em 2022 que pensa com a cabeça de colonizador - mesmo em seu próprio país.
2.
Eu havia compilado uma lista de muitas coisas legais que fizemos nas pequenas férias no Rio no final de maio, meio como um desocupado ex-publicitário faria: nas coxas e na cara dura. Estava pensando ainda em como estruturar tudo isso de forma coerente e ter algo a dizer. Mas o texto do pai-herói me fez segurar o ímpeto. Como concorrer…com aquilo?
Desconte-se a indigência formal do texto do papai. É sabido que redatores publicitários e jornalistas são os que mais maltratam a língua portuguesa. Mas a ideia não era ruim. Quem sabe a pós-graduação em vida de Theo e seus 4 amigos não pudesse resultar num texto leve, bobo, despretensioso e superficial, algo que é sempre bem-vindo para nos distrair dessa bad trip fascista? E há boas intenções: como ele diz no começo do texto, a motivação da viagem era ajudar a desfazer a má impressão que o Brasil, de alguns anos para cá, tem sedimentado na percepção de qualquer ser vivo.
Era também, grosso modo, a minha ideia para falar da viagem ao Rio: iria incluir uns momentos de total indulgência. Bons shows de música. Grandes bares anônimos ou conhecidos como a Adega Pérola. Conversas sem parar dia e noite sobre qualquer assunto que valha a pena. Cair na sarjeta, varar madrugada. Comer pizza medíocre numa esquina de Copacabana, numa lanchonete aberta 24 horas por dia. Dormir até tarde e tomar chope com pastel de siri ou camarão no café da manhã e repetir tudo isso no dia seguinte. Nada de acordar cultureba - ir a museus só mesmo se acordássemos umas 4 horas antes do que estávamos acordando e pulássemos a praia; que, por sua vez, era bem divertida: levávamos nossa própria cerveja e eu tomava a “melhor caipirinha de toda Copacabana", mesmo que fosse bem tosca. Mas a simpatia do tio da barraca era tanta que eu concordava com ele (não cobrou o guarda-sol e ainda correu atrás de nós no primeiro dia para avisar que tínhamos deixado uma canga nas cadeiras).
Desisti.
Quem sabe conto tudo isso com mais detalhes num proibidão, em outro dia?
Mas o motivo primordial da viagem não posso deixar de contar: o bom festival Queremos!, que havia sido cancelado em 2020 e que estava de volta.
Ó aí, o name dropping do ex-publicitário! 😒
O primeiro festival em que fomos em muito tempo. A melhor volta a shows ao vivo e a aglomerações, depois de 2 anos. Encontramos amigos cariocas lá, vimos grandes shows e vivemos como se fosse antes da pandemia.
O Washington que vale, o Kamasi, era um dos artistas que queríamos ver. Direto de South Central, Los Angeles, uma região boêmia, musical e com fama injusta de barra pesada (talvez por ter 90% de moradores latinos e pretos), vizinhança onde o menino Theo dificilmente vai botar os pés, se continuar seguindo o roteiro paterno.
Compadre Washington dá destaque para todos da banda, apresenta-os de forma superlativa e curte cada minuto do show. Ainda abre espaço para Jonathan Ferr, grande pianista de Madureira, felizaço por tocar em sua cidade, com gente bacana.
Emicida, mais tarde, fez um show com a plateia ganha: era claramente o chamariz para muita gente ali no festival. Brincou, sorriu e entende que a vida não é só ficar de bode do fascismo cotidiano. Mas não deixa de destacar as mensagens duras.
No final de Sujeito de Sorte (aquela do "ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”), Emicida diz: “E continuam nos matando, até mesmo na porra da câmara de gás, puta que pariu".
Fazia pouco mais de uma semana que Genivaldo de Jesus havia sido assassinado pela PRF num camburão, em Sergipe.
E Gilberto Gil, quase octogenário, previsivelmente - e acertadamente - cantou “o Rio de Janeiro continua lindo".
E errado não está - o Rio de Janeiro continua lindo, mas não pelos motivos indicados pelo texto uó do auto-exilado publicitário.
Continua lindo porque ainda resiste e ainda é a vida real, mesmo com tudo o que os donos do poder fazem cotidianamente naquele pedaço de litoral e, principalmente, naquela parte bem maior que se expande além dos túneis.
Continua lindo porque tem milhões de histórias diferentes. Tantas quantos são os habitantes de uma cidade que é bem mais do que a praia. Em qualquer momento e local, você cruza com essas histórias. E não precisa sequer ir muito longe e nem precisa sair da orla, se for o seu caso. Mas é fundamental ter a chance e a disposição de encontrá-las.
Há histórias prosaicas e interessantes, desde o pianista de Madureira que toca com o grupo de jazz de Los Angeles em um grande festival, até o músico quase anônimo que canta na janela do segundo andar de um bar no Largo São Francisco da Prainha. Com a mesma entrega, para mesas lotadas em um lugar que tem mais público local do que de turistas, por mais que esteja na moda. O músico anônimo da Prainha canta a mesma música de Belchior que tínhamos ouvido no Festival, com Emicida. Em meio aos aplausos, gaiatamente insere um “Fora Bolsonaro” ou a melodia da música de campanha do rival do atual presidente. Para alegria de pelo menos 80% dos presentes.
Ou ainda outra história boba no restaurante Caranguejo, que talvez para alguns fique com má fama por estar no texto jabazento do Olivetto, mas que é um simpático restaurante de bairro há décadas, numa esquina de Copacabana. Nas toalhas de papel que cobrem as mesas, há um bloco de texto impresso em um dos cantos, na diagonal, com tudo o que o restaurante serve. Notamos que a palavra “mexilhões” estava de cabeça para baixo e perguntamos qual seria o arcano motivo para isso. O simpático garçom que nos atendeu no primeiro dia deu de ombros: “erraram quando fizeram a impressão lá no começo do restaurante, e ficou assim desde sempre. Agora é tradicional". (em termos técnicos: o clichê de impressão foi montado com essa palavra na posição errada). Explicação prosaica, mas que mostra uma vida real que não se encontra na realidade editada.
Caranguejo virou nosso restaurante preferido de todos os tempos da semana: ao lado do hotel em que estávamos, era onde tomávamos café da manhã com chope, pastel e casquinha de caranguejo ou passávamos no final de noite para um gole de encerramento. Na última noite, terminamos os chopes em pé na calçada, com os garçons de bermuda lavando o chão do restaurante, mas insistindo para ficarmos tranquilos.
São dois exemplos e poderiam ser muitos mais. Mas Theo e seus amigos sequer tiveram a chance de saber que histórias assim existem - a edição meticulosa do roteiro elaborado pelo pai, com a diligência de um diretor de criação que assina todas as fichas técnicas das campanhas premiadas, impediu que tivessem contato com esse pedaço de vida real.
O Rio continua lindo, mas não é porque ficou congelado na cabeça de um ex-publicitário como um idílio de boas lembranças e nem porque é assim que ele quer que o filho conheça a cidade.
E é isso o que mais salta aos olhos, no texto escrito por W.O.: uma total alienação do que é viver essa cidade, como se a única vida real que importa para o filho estivesse em Londres. Mesmo que deixássemos de lado toda a complexidade do Rio de Janeiro e considerássemos apenas o circuito zona sul de gente fina, elegante e sincera que W.O. exalta, o Rio aparece somente como cenário de férias de gringo sem-noção; os 5 turistas passam pelas locações com um interesse superficial, sem contexto, vendo apenas o que é permitido pelo olhar de outra pessoa - um olhar que não revela, mas que edita e restringe.
Theo e seus amigos são, em última análise, prisioneiros do patrimônio imaterial do pai - e que foi, a exemplo do material, moldado por anos e anos de meticulosa e privilegiada edição, a deixar de fora do quadro tudo aquilo que não cabe no mundo idílico sonhado por W.O..
Espero que, daqui a um tempo, Theo consiga se libertar do pátrio poder e faça suas escolhas. Aí poderá decidir, por conta própria, se o Rio de Janeiro continua lindo. Talvez odeie o que encontre. Talvez tome conhecimento de que é uma cidade dura, com tragédias e injustiças. Que é uma máquina de moer gente, como dizia Darcy Ribeiro sobre o Brasil. Afinal, o Rio de Janeiro é um dos múltiplos espelhos do Brasil, país para o qual Theo viaja a turismo, mesmo tendo nascido aqui. Mas que é, também, muito mais do que só a visão editada e anódina engendrada pelo ex-publicitário.
Theo resumiu bem quando perguntei o que eles tinham achado da viagem:
- Pai, é simples: ainda nem começamos a faculdade e já fizemos pós-graduação de vida.
-W.O., em sua coluna em O Globo, 04 de julho de 2022
Tenho para mim que no Rio as ruas são faculdades; os botequins, universidade. Algumas frases apanhadas lá nessas bigornas da vida, em situações diversas, como aparentes tipos-a-esmo:
(…)
A galinha come é com o bico no chão.
Negócio é o seguinte: dezenove não é vinte.
Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro.
Amigo, bebendo cachaça, não faço barulho de uísque.
A vida é do contra: você vai e ela fica.
-João Antônio, em Ô, Copacabana!
reedição da Cosac Naify, edição original de 1978
Peguei carona na polêmica da semana. Acabei nem falando muito do Rio, mas pelo menos já fico feliz que consegui meter a citação do João Antônio aí no final do texto (achei que um grande escritor tinha de aparecer por aqui, para fazer o contraponto. João Antônio é mestre em boas histórias, concisão e uso de vírgulas. Gênio desconhecido no país do W.O.).
Não sou contra mergulhar num pouco de leveza e superficialidade. Leio com prazer textos assim e já fiz vários sem muita profundidade ou preocupação. E tenho calafrios com a unidimensionalidade de quem só consegue pensar por um único viés totalitário de seriedade e consciência. Eu não veria nada de mal em ser supérfluo, caso fosse só esse o ponto do texto de Olivetto.
Mas o texto escrito no piloto automático por W.O. é outro bicho: ao final, não é simplesmente uma bobagem anedótica divertida, como poderia ser, ou uma babação de um pai orgulhoso pelo filho. Revela muito da alienação de quem escreve e de quem publica - são os donos do poder dando tapinhas mútuos nas costas e se congratulando com um proverbial “tá tudo dominado". É só um pretexto para o desfile ostensivo de privilégios na base do “porque eu mereci!".
De qualquer forma, torço para que o menino Theo possa, em algum momento, conhecer o sistema educacional do qual João Antônio fala na citação que escolhi, e que é bem diferente daquele que o infante Olivetto pôde conhecer em sua viagem de férias.
Um retrato escancarado da elite que nos doutrina, e escolhe, muitas vezes lá de Londres ou Paris, o que a gente pode ler ou não.