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Intro.
Muito tempo longe daqui e não foi porque eu quis.
Vida é o que acontece quando estamos ocupados fazendo outros planos, não é isso que o outro lá disse?
Algumas surpresas, uns dias fora, contas a pagar e trabalhos a fazer. Tanto a fazer e tão pouco tempo.
Também houve uma descida para a praia por uns dias para retomar o foco da vida, depois de um turbilhão - não comigo, mas com pessoas conhecidas. Mas não é assunto para esse cafofo aqui.
De frente para o mar e com os pés na areia, olhei para uma barreira de nuvens cinzentas encobrindo as ilhas logo em frente à praia. Uma leve garoa e pouca gente na praia. Em algum momento o sol até apareceu, mas por pouco tempo.
É meio como uma cena de Hunter S. Thompson em Fear and Loathing on the Campaign Trail ‘72, seu livro sobre a eleição em que Nixon varreu o chão com George McGovern, o candidato democrata. HST tenta entender o que houve na campanha e como um escroque como Nixon obteve uma vitória tão arrasadora.
Ao contrário de Hunter, eu não estava com duas caixas de cerveja mexicana, 4 garrafas de gin, uma dúzia de grapefruits e muito menos anfetamina. Mas pelo menos havia vinho, cerveja e uma espreguiçadeira de frente para o mar e para o paredão cinzento de nuvens, acima. Cenário ideal para pensar um pouco no que houve nas últimas semanas.
Eleições ocuparam muito das notícias, e não só - a impressão é que desde o começo do ano só se falava disso. Tanto que não era assunto apenas para os cracudos da política. Muita gente normal entrou nessa também.
Não vou me juntar aos que gostam de passar vergonha em público com péssimas análises ex-post facto (ó que lindo isso, gastando o latim. Mas pode substituir por engenheiro de obra-pronta). É impressionante como, mesmo com o privilégio de poder analisar posteriormente e com todas as informações disponíveis, esses Mervais e Demétrios continuam a perseguir as piores conclusões possíveis, movidos pela fé inabalável no servilismo como modo de manter o emprego.
1.
Não vou mandar textão para vocês, dado o adiantado da hora. Mas vou lançar alguns palpites na base do achismo e da cara de pau só para dar um fechamento aos textos das últimas edições e, finalmente, passar a assuntos bem mais interessantes.
Para começar, vamos aos fatos: Trump ganhou de maneira incontestável. Voto popular, colégio eleitoral, Senado, Câmara. Pode pedir música no Fantástico e sapatear na cara dos emocionados que acreditavam que o apoio de Beyoncé ou Taylor Swift faria a diferença.
Na terça-feira, 12/11, a conta está em 312 votos no colégio eleitoral para Trump, 42 a mais do que o necessário. No voto popular, deve terminar em cerca de 3,5 a 4,5% de votos a mais - uma enormidade, numa democracia que se divide praticamente ao meio em eleição federal. Trump virou em todos os estados que precisava e ganhou todos os sete Swing States considerados essenciais para a eleição (ou seja, os estados que poderiam dar seus votos no colégio eleitoral para um ou outro candidato).
Não deveria ser a surpresa que foi, quando se observa com distanciamento. Ouso dizer (com base em muitos outros autores que levantaram esse mesmo ponto, claro) que Trump apresentou uma plataforma clara para os eleitores. Podem ser delirantes e pouco factíveis em alguns casos, mas as propostas são muito bem-definidas: combate à imigração, deportação de imigrantes ilegais, aumento de tarifas de importação, fim das guerras por procuração infindáveis que são travadas com dólar do contribuinte em países estrangeiros, autonomia dos estados e restrição à ação do governo federal, corte de impostos e estímulo para a economia e para a produção internas.
O candidato Republicano, ao final, trabalhou bem o medo e a esperança e representou a mudança de forma nítida, mesmo com um viés perverso e aterrorizante. Carimbou na testa dos democratas que eles são a favor das elites e do status quo e que ele, Trump, representa o homem comum (mesmo propagandeando sua suposta excepcionalidade) e é o mais indicado para mudar tudo isso que está aí.
Kamala Harris, ao contrário, tratou de assuntos arcanos e pouco práticos. Até os cracudos da política têm dificuldade em encontrar algum momento em que a campanha democrata apresentou uma proposta concreta. Em geral, atuava sempre no campo de conceitos e da superioridade moral, ao abordar temas como defesa da democracia, igualdade, diversidade, inclusão - todas ótimas ideias e que ajudam a mobilizar eleitorado, mas que não são novidade e são generalistas demais para interferir no cotidiano do eleitor. No restante, jogava só na defensiva: não assumia a continuidade com o governo Biden e nem o descartava; não assumia posição firme em nenhum questão cotidiana e, com isso, perdia a chance de explicar os bons resultados econômicos que não estavam aparentes; deslizava de forma sorrateira em questionamentos mais assertivos, como a política para imigração.
Só alguma análise bem alucinada ou enviezada para dizer que a eleição foi decidida porque Kamala e os democratas são pró-Israel e anti-Palestina, porque são comunistas perigosos ou, ainda, por serem identitários que querem destruir a tradição, família e propriedade nos EUA e fazer churrasco dos animais de estimação do cidadão de bem. O que fez a diferença foi a imagem sólida que a campanha Republicana firmou de que responderia às aspirações daquela porcentagem ‘flutuante’ do voto, que não se move fundamental ou exclusivamente por ideologia ou partidarismo. Chamar Trump de fascista ou de ameaça à democracia, 8 anos depois de sua primeira campanha à presidência, não é novidade alguma. Quem votou em Trump, inclusive, não o fez enganado ou em momento de profunda emoção. Foi um voto consciente.
2.
Desse lado de cá do Equador as eleições municipais foram explosivas, mas com outra dinâmica em relação ao hollering and fingering da eleição dos gringos.
No final de outubro, essa nossa aldeia de irredutíveis paulistanos que gostam de fila, policiamento ostensivo e político “de perfil técnico” (seja lá o que isso queira dizer) reelegeu o prefeito desconhecido para mais 4 anos.
Pior: a chapa carregou para a vice-prefeitura o ovo da serpente, um coronel zé-ruela egresso da SS de cinza, esse orgulho bandeirante desde que foi criada por Maluf. O otário fardado que agora vai passar os próximos anos aguardando a vez de sentar na cadeira de prefeito foi colocado lá por Jair Bolsonaro, para surpresa de ninguém.
Boulos, candidato da oposição, ganhou apenas um pouco mais de votos do que havia atingido quatro anos antes. Perdeu em zonas eleitorais em que havia ganhado no primeiro turno e não converteu quase nada. Grosso modo, mais de 60% dos eleitores do município votaram num prefeito que, em pesquisas feitas com esse mesmo público, disputa a lanterna entre os piores prefeitos desde 1985. Foi considerado o terceiro pior, só perdendo para o parça Kassab, avalizador de sua candidatura e ponte com o governador Tarcísio de Freitas; e para Celso Pitta, antigo poste de Paulo Maluf e versão 1.0 do atual prefeito desconhecido Ricardo Nunes.
No nosso cercadinho aqui nos tristes trópicos a equação foi um pouco diferente do que houve lá entre os ianques. A campanha de Ricardo Nunes surfou a onda do medo de outra forma: suas propostas vagas e pouco claras eram só um disfarce para caracterizar Boulos como a mudança que ninguém quer. Boulos era o radical invasor, baderneiro e comunista que iria entrar na sua casa e…
Se Trump ganhou por representar mudança (por mais ilusório que seja), Boulos perdeu por personificar outro tipo de mudança, temida por muitos paulistanos. Não havia racionalidade ou explicação que pudesse mudar essa aversão de boa parte da população e a foto de Boulos em um protesto na frente do prédio da FIESP foi um albatroz pendurado no pescoço do candidato do PSOL durante toda a campanha. Pior: para mudar essa imagem, algum gênio do marketing político tentou vender Boulos como um proverbial Ursinho Carinhoso centrista do Campo Limpo, algo que só existe na cabeça de quem imaginou essa estratégia e ganhou bem para isso.
Boulos ficou a defender o empate fora de casa - quando deveria mesmo era ter invadido a casa do adversário. Quando Boulos mudou tudo depois dos 45 do segundo tempo e partiu para a tentativa de gol de cabeça ou de mão, com o goleiro e com tudo, já era tarde.
Insatisfeitos com Nunes e a politicagem mesquinha de gabinetes e conchavos que o desconhecido prefeito representa, muitos eleitores se voltaram para o prestidigitador Pablo Marçal. Queriam mudança, mas daquele tipo que faz tudo continuar como estava. Não conseguiram. No segundo turno, por gravidade, votaram no “menos-pior”, essa construção da antipolítica no Brasil: cerca de 85% dos eleitores de Marçal continuaram na direita, caindo no colo de Nunes. Mais quatro anos de decepções e a certeza de que, mais uma vez, vai ter muita gente querendo votar contra tudo isso que está aí, em 2028.
De novo. De novo. De novo. 🫠
Os melhores carecem de toda convicção, enquanto os piores
estão cheios de intensidade apaixonada._The Second Coming (1920), William Butler Yeates
3.
Trump, por mais estranho que possa parecer, representou a mudança; Nunes, a continuidade - e foi bem claro nisso. Ao mesmo tempo, cada um à sua maneira ajudou a mostrar como as regras do jogo mudaram. Trump teve uma campanha que, em determinados momentos, chegou a arrecadar um terço do que os democratas arrecadavam para Kamala Harris. Apostou na mídia independente, bateu nas mesmas teclas, não amaciou o discurso em momento algum. Nunes jogou as fichas no conservadorismo medroso do paulistano médio e quase ficou de fora do segundo turno com a ascensão rápida de Marçal - esse, sim, com uma campanha de direita bem próxima à de Trump, mas bem menos eficiente.
Trump e Marçal jogaram no campo dos outsiders, apesar de não serem exatamente isso, como já falei aqui antes. Mas é inegável que seu discurso encontrou ressonância em boa parcela da população: eleitores que se sentem excluídos de alguma forma, que têm algum ressentimento seja por questões sociais ou econômicas ou, ainda, simplesmente pelo ressentimento por ter apostado em outras alternativas antes e sofrido decepções.
Tanto Democratas nos EUA quanto a esquerda institucionalizada no Brasil foram colocados no mesmo ponto - quase como defensores do status quo e parte (ou a serviço) de uma elite intelectual cada vez mais isolada e distante da realidade cotidiana da maioria da população. Até na campanha paulistana isso teve reflexos: Boulos foi emparedado entre a revolta falsa e inconsequente de Marçal e o conservadorismo estagnado de Nunes. Não foi associado à mudança e nem escapou da caricatura de radical e baderneiro que a direita criou (com a ajuda da mídia tradicional).
A ironia ficou completa com a vitória de Nunes. A fantasia de Ursinho Carinhoso da esquerda fofa não resistiu a um bloco uniforme da direitona tradicional, em sua forma mais caracteristicamente paulista: uma coalizão de todas as nuances conservadoras - desde a extrema-direita igrejeira e militarista até o mais reles batedor de carteiras do Centrão - em torno de um candidato que seria um “quadro técnico” (eufemismo para um operador medíocre sem qualquer talento em especial e disposto a tudo para agradar aos donos do poder).
O jogo mudou, as regras mudaram e uma nova versão da frase mais clichê do conservadorismo faz todo o sentido agora: a direita não esqueceu nada e aprendeu tudo.

epitáfio.
Não é ser pessimista e achar que a derrota fora de casa é o melhor resultado. Mas enquanto a esquerda continuar a fazer o papel de vigia mal-equipado das instituições e a pregar que não pode fazer marola, senão o fascismo volta, a direita vai continuar a vender utopia - espaço que antes era ocupado por quem buscava chacoalhar o coreto do conservadorismo.
A esquerda, ao fim e ao cabo, foi constrangida a virar síndica do possível, administradora da escassez, manobrista em espaço exíguos. Virou, ironicamente, a própria imagem do Centro político: defensora da estabilidade, acovardada em suas propostas, proponente do equilíbrio (inclusive fiscal) e desistente de qualquer mudança profunda. Já o mítico Centro, tesão de 10 em cada 10 comentaristas da Mídia tradicional hierárquica, está cada vez mais unha e carne com a direita. Afinal, nenhuma candidatura conservadora atualmente se sustenta sem ao menos um aceno ao público radicalizado pela nova direita.
Enquanto a esquerda estiver nessa situação de centralismo pragmático burocrático e de poucos resultados, vem mais caldo por aí.
2026 está logo na esquina, mas ainda há tempo e dá para mudar. Mas não pode ser no último minuto, como foi esse ano.
Desliguei e bebi mais um pouco de gim. Então coloquei um álbum de Dolly Parton no gravador e observei as árvores do lado de fora da minha varanda sendo açoitadas pelo vento. Por volta da meia-noite, quando a chuva parou, vesti minha camisa especial de Miami Beach e caminhei vários quarteirões pelo La Cienega Boulevard até o Losers’ Club.
_Fear and Loathing on the Campaign Trail ‘72, Hunter S. Thompson