Dentro de mim sai um monstro
Notas de um domingo de eleição, na metrópole do pobre paulista.
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1.
Prometi que viria com assunto mais ameno.
E você, acreditou?
Mas agora prometo mesmo que vai ser o último texto desse assunto - pelo menos desse primeiro turno das eleições, claro.
Escrevi a edição anterior entre quinta e sexta feira, antes da eleição. Esse veio na quarta seguinte, depois que já deu tempo de sedimentar muito do que aconteceu. E rolou muita coisa de sexta para cá.
Previously on Locked Groove:
A campanha de Ricardo Nunes, o prefeito desconhecido, recebia visita do espírito do Clodovil sarcástico, estourando os balões - aquela festa havia virado um enterro e corria o risco de o coach Marçal entrar na casa de Nunes e comer…bom, deixa pra lá.
Do outro lado, Boulos recebia ajuda de Lula numa caminhada pela Paulista e as más-línguas diziam que era a primeira vez que alguém do PT participaria da campanha do homem.
Já o rockstar de quem falei na última semana decidiu morrer atirando: sacou um laudo falso para vandalizar a eleição mais uma vez. De onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo.
Sem pesquisa de boca-de-urna, a apuração começou daquele jeito que sabemos bem e que sempre dá calafrios: Nunes e Marçal nas primeiras colocações até mais ou menos a metade das urnas.
Nunes assumiu a ponta desde o começo da apuração e não largou mais da rapadura. Boulos virou para cima de Marçal depois que já havia bastante voto contado, acho que lá pelos 70%. Prevaleceu o resultado mais cantado desde o começo - Nunes x Boulos - mas não nas condições que se esperava.
Foi por pouco, numa eleição que foi a mais disputada de São Paulo desde a redemocratização em 1985. E com surpresas até o final.
2.
Por um breve momento, o coach que entrou na disputa aparentemente por acaso parece ter acreditado que iria mesmo ao segundo turno.
Marçal talvez tenha sido colocado na disputa por uma mistura de estelionato, vaidade e burrice - essa última, por ação exclusiva de Bolsonaro. O mandrião que se acostumou a viver como encosto no dinheiro público pensava em chantagear Nunes com uma candidatura rival, mesmo após ter indicado o vice do prefeito desconhecido. Sua mágoa com o antigo desafeto Gilberto Kassab (o grande responsável pela campanha de Nunes) era muito maior do que sua competência como articulador.
Bolsonaro dividiu o voto da direita e causou confusão na disputa. Essa entrevista aí embaixo de Silas Malafaia, pastor evangélico e expoente da extrema-direita, deixa bem claro o que houve.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/10/malafaia-diz-que-bolsonaro-e-covarde-e-omisso-e-questiona-que-porcaria-de-lider-e-esse.shtml
(Copie e cole no navegador Safari e use o reader para ler. Ou use o seu quebra-paywall de preferência. Mas não diga que fui eu que falei 😉).
E vou poupar você dos perdigotos desse vendilhão do templo e mandar aqui a frase mais interessante da entrevista, para entendermos o que houve no domingo:
Na sexta (4), depois de muita briga, ele [Bolsonaro] fez um recorte das falas dele na live afirmando que apoiava Ricardo Nunes e nós espalhamos. Marçal perdeu 17% dos votos de bolsonaristas. Imagine se ele entrasse firme dizendo "esse cara é uma farsa, não tem história na direita"
Aí já dá para saber que essa foi a ponta-de-lança de uma coalizão de última hora, que se mobilizou para garantir Nunes no segundo turno: Malafaia e os seus entraram forte para pastorear o público evangélico, enquanto o dono da máquina pública municipal (quem poderia imaginar que era o próprio candidato?) agiu de formas que não dá para falar aqui, mas que é método desde a última eleição e, por último, o governador do Estado entrou de sola na campanha. Uma operação de guerra, numa situação de emergência.
Enquanto isso, na noite de sexta, Boulos cantava Sampa com Caetano, para o mundo ficar Odara.
3.
O que me interessa aqui é entender em termos gerais o comportamento eleitoral do paulistano. Não é tarefa fácil e vários cientistas políticos já fizeram isso, com maior ou menor sucesso.
De cara, já dá para descartar as análises burras da mídia hereditária - todo ano ela faz tudo sempre igual. Saca só o que sempre tem no bingo editorial dos donos do quarto poder:
matéria sobre como votos brancos, nulos e abstenções foram maiores do que a votação dos candidatos (um alarmismo besta antipolítica e que vandaliza a democracia, uma vez que esses números estão em linha com todas as democracias do mundo - cerca de 1/3 da população mundial não participa em eleições, chegando até a 60% em eleições regionais. Se o problema é a qualidade da democracia e a sensação de não-representatividade por parte do eleitor, não é exclusividade brasileira).
matéria sobre como o eleitor de centro decide a eleição (mas sem explicar como esse mecanismo se dá e por quais motivos esse mítico eleitor se move de um lado a outro do espectro político, meio como se fosse um gado conduzido por alguém mais iluminado ou, pior, enganado por falsas promessas).
matéria enaltecendo o(a) candidato(a) mais moderado, e que obviamente teve também votação moderada e praticamente não fez muita diferença (em geral, é o xodó dos donos, editores e alto escalão da mídia, que adoram candidato “que não é de esquerda e nem de direita". Nessa eleição, quem foi escalada para esse papel foi a Bel Pesce do RenovaBR).
matéria com gráficos mostrando quais zonas eleitorais cada candidato levou - mas sem explicar exatamente o contexto e meio que tratando tudo como se fosse a mumunha eleitoral anglo-saxã “winner takes all” (ou seja, como se a eleição fosse decidida num colégio eleitoral, onde ganha quem leva mais zonas eleitorais. É sempre deixa para matéria preconceituosa sobre como o populacho da periferia joga água no chope dos ricos, ou então matéria encomendada de como o candidato da direita foi mais popular. Depende da intenção eleitoral de quem manda).
Junte tudo isso e veja a mágica acontecer: eleição após eleição, ninguém entende nada e fica parecendo que os sprints de final de campanha são completamente inesperados, que o eleitorado paulistano gosta de tradição, família, propriedade e policiamento ostensivo e que em São Paulo só ganha candidato conservador.
4.
Mas quem entende do que está falando e quer que outros entendam joga luz nessa questão. Bons cientistas políticos já tentaram decifrar como funciona o voto nessa terra bandeirante, como Aziz Simão, Francisco Weffort, Fernando Limongi, Bolívar Lamounier, Maria Tereza Sadek de Souza e, especialmente, um que considero o mais influente: Antônio Flávio Pierucci, professor da FFLCH durante anos (full disclosure aqui - tive aula com ele e é autor de vários textos que estudei - não na própria matéria dele, mas com outros professores, o que mostra o quanto o cara é bom).
Pierucci é autor de alguns textos essenciais e o seu mais clássico sobre eleições paulistanas é As bases da nova direita, de 1987. Nele, na tradição de outros cientistas políticos que antes haviam estudado a relação entre localização geográfica na cidade e o voto, Pierucci parte da votação que deu vitória a Jânio Quadros, na primeira eleição da redemocratização, em 1985, e na subsequente disputa de Paulo Maluf pelo governo do estado do ano seguinte.
Vale lembrar que, na eleição de 1985, Jânio era dado como carta fora do baralho, uma excentricidade política que havia ficado no passado depois da renúncia em 1961. Na primeira eleição para a prefeitura desde o golpe militar Fernando Henrique Cardoso era favorito e Jânio virou de última hora. Foi a deixa para as inúmeras teorias que, grosso modo, desprezavam o eleitor e criavam ou reforçavam estereótipos. Pierucci viu um padrão: votação uniformemente alta para Jânio em determinadas áreas da cidade e que, em um histórico mais extenso, mostrava que eram lugares onde políticos conservadores tinham sempre uma base eleitoral sólida.
Pierucci pacientemente entrevistou 150 eleitores janistas e malufistas - e se fossem as duas coisas, melhor ainda (quero dizer, só para a pesquisa 🤢). Inspirado pelo trabalho de outros como Aziz Simão, o sociólogo foi às regiões onde as votações de ambos os políticos apresentavam um padrão bem definido: em geral, a região do início da Zona Leste, com Mooca, Alto da Mooca, Penha, Tatuapé e outros bairros e a Zona Norte, com Vila Maria, Casa Verde, Tucuruvi e outros. No mapa de São Paulo, são áreas contíguas entre si e limítrofes com o Centro da cidade de alguma forma.
Para quem quiser ler, vale bem a pena para entender um retrato do que o eleitor pensava naquela época e tem informações bem interessantes e algumas até surpreendentes. Só vou dar um spoiler aqui: anticomunismo não era pauta de eleitor conservador em 1985-1987. Surpreendentemente, mesmo em tempos pré-queda do Muro de Berlim, época de União Soviética, Guerra Fria e Reagan presidente dos EUA, a base da direita conservadora não estava nem aí para o "fantasma do comunismo”. Como Pierucci resume bem:
Seu tique mais evidente é sentirem-se ameaçados pelos outros. Pelos delinqüentes e criminosos, pelas crianças abandonadas, pelos migrantes mais recentes, em especial os nordestinos (às vezes, dependendo do bairro, por certos imigrados asiáticos também recentes, como é o caso dos coreanos), pelas mulheres liberadas, pelos homossexuais (particularmente os travestis), pela droga, pela indústria da pornografia mas também pela permissividade "geral", pelos jovens, (…) pela legião de subproletários e mendigos que, tal como a revolução socialista no imaginário de tempos idos, enfrenta-se a eles em cada esquina da metrópole, e assim vai.
Eles têm medo.
_Pierucci, A.F. As Bases da nova direita, Novos Estudos, CEBRAP, 1987
Bolsonaro surfou na onda do medo e da ameaça difusa, sempre presentes no imaginário conservador tradicional. Foi tão bem-sucedido nisso que até o comunismo voltou ao vocabulário de seus apoiadores. É nessa mesma onda que Silas Malafaia e as igrejas evangélicas fazem suas manobras.
Geograficamente, Pierucci localizou uma certa coerência que se mantém há bastante tempo em São Paulo: o cinturão conservador das Zonas Leste e Norte é onde estrelas da direita têm suas maiores votações, como Jânio em 1985.
A explicação, segundo o sociólogo, poderia estar no caráter nitidamente “médio" dessas regiões: classe média ou média baixa, com pequenos e médios negócios familiares ou, então, empregados do médio escalão em empresas ou profissionais liberais, formação acadêmica condizente - tudo isso contribuindo para uma visão de mundo uniforme.
Ao mesmo tempo, e mais importante, é o ponto médio entre a região central dos bairros mais ricos da cidade e a periferia. Ou seja, é uma população que está em contato com o centro elitista da sociedade paulistana e, ao mesmo tempo, vive o temor (ou até a realidade) do rebaixamento para a periferia. É quem mais tem a temer com a ascensão econômica e social da periferia e, ao mesmo tempo, quem mais se ressente da distância para as classes mais altas.
Agora, o plot twist: adivinha só em qual região Marçal teve suas maiores votações na cidade?
5.
Observe o mapa abaixo:
Fonte e arte: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2024/apuracao/1turno/sp/sao-paulo/#prefeitos-por-zona-eleitoral
Para quem conhece São Paulo já dá para identificar, na cor de Pablo Marçal, a região de que falamos acima - o cinturão conservador formado por bairros das Zonas Leste e Norte.
Dos bairros citados por Pierucci em seu trabalho de 1987, Marçal ganhou em quase todos: apenas no Pari (que deu Boulos) e na Casa Verde (que deu Nunes) o resultado foi diferente.
Significa, portanto, que Marçal é a nova face do conservadorismo em São Paulo? Não exatamente.
O que o mapa mostra é que Marçal entrou forte nas áreas em que o conservadorismo paulistano, de fato, impera. Mostra também a divisão que Malafaia apontou no eleitorado de direita. Não quer dizer, porém que Marçal tomou um território que era solidamente da direita ao vencer nessas regiões tradicionais.
Outro texto de Pierucci (em parceria com Marcelo Coutinho de Lima), entitulado A Direita flutua, ajuda a entender o que pode estar em jogo. No texto, de 1990, os autores traçam uma perspectiva de “direitização” do voto ao mesmo tempo em que ele se torna volátil. Segundo a hipótese, essa volatilidade faz com que haja um voto flutuante na direta, que se move de acordo com preferências conjunturais e dissociado de uma lealdade ideológica ou partidária. Nesse caso, a base da preferência eleitoral é de direita, mas o voto influenciado pela conjuntura pode levar a outras preferências que não a da direita tradicional e arcaica. Pierucci e Coutinho definem como um voto “mercadológico”, em que o eleitor decide o que deseja “experimentar”, como se estivesse em um mercado. No final, é o que permite o voto “de protesto” para quem é de direita.
Em exemplos práticos: o voto na direita tradicional e o voto “contra tudo isso que está aí” estavam entrelaçados na ascensão de Bolsonaro em 2018; já na eleição municipal de 2024, em São Paulo, houve uma dissociação dessas duas tendências e, ao mesmo tempo em que o voto tradicional direitista desaguou em Nunes, o voto movido pela insatisfação e contra o status quo foi parar em Marçal.
Vale lembrar que há também outro fator: nos quase 40 anos desde a pesquisa de Pierucci, a Zona Leste e a Zona Norte continuaram lá geograficamente, mas mudaram muito. A Mooca hoje, por exemplo, é bem diferente da de 1985, assim como essa era diferente da de 1952 que ajudou a eleger Jânio pela primeira vez. Agora há áreas bem prósperas, assim como no Tatuapé. Ou seja, os bairros do cinturão conservador continuam fisicamente perto da periferia e longe do Centro elitista, mas agora talvez com muito mais ressentimento e recalque.
O voto flutuante, na perspectiva dos autores, é também uma das explicações para surpresas eleitorais como a subida alucinante de Marçal nas pesquisas ou os sprints finais de candidatos da direita (Doria em 2016 na prefeitura, Bolsonaro em 2018 no primeiro turno das eleições presidenciais, quando quase levou, Tarcísio nas eleições para governador de 2022).
Resta saber se esse voto retornará por inércia à direita tradicional de Nunes ou se irá para a abstenção/nulo/branco. Ou, ainda, se a imprevisibilidade representada por Marçal na eleição continuará a ditar o rumo do voto flutuante.
Marçal, que pode ser tudo, menos burro, já sacou muita coisa. Essa entrevista aqui embaixo é reveladora.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/10/marcal-pede-retratacao-de-bolsonaro-e-tarcisio-rejeita-apoiar-nunes-e-diz-que-boulos-deve-ganhar.shtml
(já sabe como fazer, não? Copia-cola no Safari, use o reader. Ou use o seu archive.ph de preferência. Ops! Não está aqui quem falou 🫢)
E Marçal ainda soltou essa, demonstrando entender o que está em jogo e, obviamente, pronto a fazer chantagem com isso.
Eu não indo para lado nenhum e liberando meu eleitorado, 45% dos meus votos o Lula com humildade vai tomar de volta", disse. "Tenho certeza que ele [Boulos] vence. Ele sabe sinalizar com o povo e o Ricardo não sabe, Boulos e Lula têm a língua do povo, os outros [estão] só brigando.
Epílogo.
No final de semana tivemos uma sequência de compromissos e não apenas com a urna. Vida que segue, não é?
Não saímos do nosso entorno do Centro Expandido de São Paulo, mas conversamos com gente que, possivelmente, mora em bairros de transição para a periferia, quando não na própria periferia: garçons, seguranças etc. Frente à pergunta sobre voto no domingo a resposta era Marçal na maioria das vezes.
Na tarde de 6 de outubro saímos para votar. Paula foi toda de vermelho e eu usei adesivo com o 50 e boné vermelho. No restaurante em frente de casa um grupo de playbas tomava vinho numa mesa do parklet e olharam quando Paula saiu.
- Tá tudo bem aí? - ela perguntou, encarando os fachos.
Votamos e descemos a pé de volta para casa. Dever cívico cumprido e hora de sentar numa mesinha na calçada da lanchonete da esquina e tomar uma cerveja antes do almoço, pra ficar pensando melhor. Um catador de recicláveis passou pela rua, viu meu 50 adesivado e falou “Estou indo votar agora, também vou votar 50!”
Voltamos para casa duas horas depois de termos saído. Os playbas continuavam a tomar vinho no parklet do restaurante. Paula fez o L. Eles, sorrindo sarcasticamente, fizeram aquele M torto com os dedos que mais parece resultado de Lesão por Esforço Repetitivo do que uma letra do alfabeto. Deixamos para lá. Vida curta demais para perder tempo.
Voltamos para casa, acendi o fogo da churrasqueira e esperamos a contagem dos votos começar.