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Alô, você!
Alguém aí lembra de como era o Carnaval nos anos 1980 e 1990? Ou talvez até nos 2000. Óbvio que carnaval, carnaval mesmo, só se houver aí gente experiente o bastante nas artes momescas, já que tudo era bem diferente do que é hoje.
E começo por São Paulo, que sempre pegou o título de túmulo do samba para si - afinal, a locomotiva da nação é sempre competitiva e não pode ver um adjetivo em disputa que já quer assumir, mesmo que seja negativo. Quem era daqui nessa época sabe bem como as ruas ficavam vazias em tempos de Carnaval.
Carnaval era sinônimo de feriado prolongado e aglomeração só acontecia mesmo nas estradas para o litoral ou nos acanhados mercadinhos de praia, que tinham que se virar para garantir atendimento para um público muito maior do que o normal.
Mas a verdade é que a capital da fila e do policiamento ostensivo não estava sozinha nessa. Com exceção dos culpados de sempre - Rio, Salvador, Recife, Olinda - para a maior parte das pessoas, em boa parte das cidades, o Brasil parecia ser um grande cemitério do samba, nas últimas décadas do século XX e começo do XXI. Poucos blocos e agremiações tradicionais mantinham viva a tradição carnavalesca. Meio como uma lembrança saudosa do passado.
Não era por acaso, portanto, que nessa época pensava-se muito que Carnaval era para pular - da sexta-feira direto para a quarta-feira de cinzas.
Era época de ver desfile pela TV, em um lugar que era tão alienígena, distante e anódino quanto um cenário do Projac. O sambódromo do Rio parecia ser o único lugar onde algo acontecia nesses dias de fevereiro. Carnaval na Bahia só aparecia nas matérias da Globo que mostravam como o painho Antônio Carlos Magalhães havia transformado Salvador para melhor. Até Caetano e Gil iam atrás do trio elétrico de ACM, esse dono do poder que até hoje é venerado na Baía de todos os Santos. Recife e Olinda, então, nem se fala: a pauta fria dos bonecões gigantes sempre aparecia, como se fosse a única notícia importante daquelas latitudes.
Outra pauta fria, aliás, era quando um jornalista falava na TV sobre algum festival de Heavy Metal em desagravo ao país do Carnaval, uma declaração de guerra dos camisetas-pretas do porão do rock contra tudo o que era solar, divertido e sexual. E tome entrevista com um virjão de cabelos compridos e lisos a falar “Aqui é que tem música de verdade, mêo! Não é essa coisa de bunda e pandeiro que ficam mostrando por aí, não!”. Orgulhosamente misógino e até mesmo racista, o metaleiro (termo cunhado pela Globo) exibia o porão escuro onde os parças do metal, que ainda não haviam descoberto Bolsonaro ou Olavo, protestavam contra o Carnaval.
Era sempre aquele período de viajar, sair da cidade, ficar hibernando em casa. Cidades ficavam vazias, como se uma bomba de nêutrons houvesse pulverizado qualquer ser humano num raio de quilômetros.
Mas sempre foi assim?
Nem vou descer pelo caminho do samba “fora da lei”. É assunto extenso e tem boa bibliografia por aí, feita por pesquisadores sérios e muito bem versados. Basta dizer que essa perseguição se encontra inserida num contexto maior: a criminalização das culturas africanas e indígenas no Brasil e a tentativa de homogeneização ideológica do país. Desde que o samba é samba é assim.
Isso é MUITO importante, mas o que me interessa aqui nesse texto é entender como o Carnaval chegou ao limbo plastificado e anestesiado em que entrou nas últimas décadas do século vinte.
O bom livro O corpo encantado das ruas, de Luiz Antonio Simas, ajuda a lançar uma primeira luz nessa história. “As ruas atormentam o poder”, é a frase que Simas usa para abrir um capítulo que mostra a relação dos senhores do poder com o Carnaval. Já começa em 1892, com Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro do começo da República. O Ministério do Interior de Floriano quis mudar o carnaval do Rio de Janeiro de fevereiro para junho, com o argumento de que o tempo quente seria mais propício para epidemias mortais. Ninguém caiu no caô e houve festa nas duas ocasiões, com foliões devidamente fantasiados de morte. O governo recuou no ano seguinte.
Em 1912, morreu o Barão de Rio Branco e, para honrar o pai da diplomacia brasileira e futura nota de mil cruzeiros, o desgoverno da época cancelou o carnaval. Jogou a folia para junho, de novo. O povo não quis saber do luto e foi às ruas mesmo assim, cantando o singelo versinho “O Barão morreu/teremos dois carnavá/ai, que bom, ai, que gostoso,/ se morresse o marechá”. No caso, “o marechá” era o presidente Marechal Hermes da Fonseca, autor dessa ideia de jerico.
Simas resume bem: a festa é espaço de subversão de cidadanias negadas. Ou seja, qualquer tentativa de disciplinar as ruas e domesticar o carnaval enfrentaria dura oposição. Foi assim de novo quando o Conselho Municipal sugeriu a extinção da folia nos anos 1920, ou nas diversas tentativas de regulamentação de outros governos nos anos seguintes.
Mas não parou por aí. No jogo duro do autoritarismo se gestou a mais bem sucedida forma de controle social via supressão do Carnaval. As impressões digitais dos indigitados de verde-oliva apontam para isso: a coalizão cívico-militar de 1964 e sua modernização autoritária da sociedade demonstrou, desde o início, a clara intenção de escantear o Carnaval.
Não é difícil entender os motivos, já que Carnaval implica:
gente na rua de forma espontânea, com suas próprias regras, acordos tácitos e ações descentralizadas;
valorização do conhecimento das ruas, dos ritos populares, da música e da arte que nascem nos espaços à margem da cultura dominante;
exaltação do bom humor, da festa e da alegria, em oposição à ética do trabalho sério e do ascetismo que tentavam importar para o Bananão.
e, por último, a total falta de controle centralizado dos temas e das discussões. No boca-a-boca, numa roda de samba, num bloco ou num samba enredo de alguma agremiação à margem do controle estatal, a subversão se faz presente - pode-se falar de qualquer tema, por mais interditado que seja.
Para os gênios da raça da Ditadura, o Carnaval ia contra a ordem, o progresso e a lógica capitalista que se tentava imprimir nesse país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza. Na cartilha de conduta importada pelas Forças Armadas a partir de seus cursos na Escola das Américas (o centro de doutrinação de corações e mentes dos militares dos EUA para a América Latina), o populacho tinha mesmo é que ter uma educação básica bem da safada, trabalhar duro no horário comercial (e cumprir horas extra não-remuneradas), se recolher ao recesso do lar à noite e pelejar por Deus, Pátria e Família. E, também, abaixar a cabeça e agradecer pela liberdade de seguir o bom caminho de rapaz trabalhador com carteira de trabalho no bolso, versus a libertinagem da folia carnavalesca.
Como diriam os ancestrais ideológicos dessa gente de verde-oliva que quer mostrar seu valor: o trabalho liberta.
Carnaval entrou na mira da Ditadura e, não por acaso, uma decadência acelerada de blocos e do Carnaval de rua começou a partir da segunda metade dos anos 1960. E o acaso não tem nada a ver também com a paranóia com violência e criminalidade que começou a tomar conta das preocupações dos cidadãos de bem mais ou menos por essa época.
Ao mesmo tempo, o Milagre Econômico do Regime Militar trazia consigo a ascensão de uma classe média em constante evolução de gastos e gostos e que não queria se misturar com aquela gentalha que gostava da bagunça rueira, useira e vezeira do Carnaval.
Como já falei antes, gente na rua é sinal de alerta para quem gosta mesmo é de uniforme e tanque na rua. A destruição do universo de blocos, marchinhas e gente se divertindo pelas ruas era essencial para a construção da ordem social inofensiva que o Regime Militar queria. A tempestade perfeita estava formada.
O Carnaval do grande espetáculo, formado e criado nos anos 1970 e que alcançou seu auge entre os anos 1980 e 1990, vem muito daí. Carnaval não deveria mais existir nas ruas, mas num espaço adequado e circunscrito, de onde o povo assiste das arquibancadas ao que acontece na avenida. Onde há regras e controle e onde tudo é milimetricamente ensaiado. É tirar o protagonismo do indivíduo e colocar em uma entidade maior, organizada, sujeita a regulamentos e constrições. Não há espaço para espontaneidade. O maior show da Terra deve funcionar como um relógio e entregar o que se espera. Não há espaço para improviso, jeitinho ou surpresas.
Cito novamente Simas que, apesar de tudo, é um grande fã do Carnaval da Sapucaí: “(…) Grandes cidades são espaço de confrontos (…) a cidade vista como espaço funcional, destinado à acumulação e à circulação de capital, elabora estratégias de controle de massas". Ter o Carnaval circunscrito a um espaço físico devidamente controlado faz todo o sentido nesse contexto do Regime Militar que queria a supremacia sobre as ruas.
Não pense que isso tudo aqui é um ataque ao Carnaval das Escolas de Samba - há toda uma vida que existe em torno das Escolas, sambas-enredo e tal e que deve ser respeitada e preservada. Ter se transformado num espetáculo midiático não é o ponto a se criticar. Pela sobrevivência, faz-se o que tem que ser feito. Comunidades inteiras que vivem em torno do samba e das Escolas assumiram um sistema que lhes permitiu continuar a existir. Mas, ao mesmo tempo, a sobrevivência de uns significou a morte de outros. O Carnaval minguou, restringiu-se a uma avenida, sumiu da vida cotidiana. Os espaços de lazer e de prazer foram conquistados pela lógica da ordem e do progresso e, aparentemente, domados pela ideologia funcionalista dos donos do poder.
Volto aos anos 1990 nas ruas de São Paulo.
Carnaval era no Sambódromo ou nos clubes. Ninguém ocupava ruas. Restaurantes e bares fechavam, todo mundo ia para o interior ou para a praia.
Bloco era um bicho exótico. Existia nos bairros menos centrais, ainda preservados e resistentes à mudança. Eram blocos locais, low-profile, sem gourmetização. Em geral, amigos de bairro que se reuniam informalmente, quase na clandestinidade.
Essa observação é importante: durante anos, houve uma tentativa do poder público de invisibilizar e marginalizar o Carnaval. O livro Direito à Folia – O Direito ao Carnaval e a Política Pública do Carnaval de Rua na Cidade de São Paulo, de Guilherme Varella, traz uma história minuciosa desse processo, que começou na década de 1960, quando o prefeito Faria Lima passou a responsabilidade pelo Carnaval da cidade para a Secretaria do Turismo (olha só como não é coincidência: foi bem na época da Revolução Redentora verde-oliva de 1964). Como diz Varella, Carnaval para inglês ver. O investimento no Carnaval como espetáculo acontecia ao mesmo tempo em que se inventava obstáculos - taxas, alvarás, burocracia - para desestimular blocos de rua. A lógica perversa era tirar o Carnaval da rua, segregar em um espaço controlado, levar a festa para espaços particulares. Rua não era para folia.
O sambódromo do Anhembi era projeto antigo de Paulo Maluf - e ao ser finalmente entregue em 1991, realizou um sonho da classe média conservadora em São Paulo de segregar e evitar que ruas fossem tomadas pela gentalha com quem não queria se misturar. Já o sonho dos donos do poder era faturar com a privatização do carnaval em clubes fechados e com os bons negócios do sambódromo com a TV e patrocínios.
Poucos blocos existiam até o começo dos anos 2000. Administrações conservadoras como as de Serra e Kassab dificultavam que blocos se oficializassem e contassem com estrutura e apoio. Altas taxas, alvarás difíceis de conseguir e exigências cada vez maiores eram usados para desestimular ao máximo que blocos se formassem. Mesmo distante do período autoritário, o Carnaval continuava sendo tratado como caso de polícia.
Em 2013, na administração Haddad, houve a mudança institucional que permitiu que o Carnaval voltasse às ruas de São Paulo. Daí o nome do livro de Varella: o direito ao Carnaval passou a fazer parte da política pública. Menos entraves, maior estímulo à criação de blocos e regras claras de apoio do poder público.
O Carnaval se expandiu por bairros até então desertos nessa época do ano e os blocos, que eram no máximo 50 nessa época, multiplicaram-se para mais de 600, cerca de 10 anos depois.
E não só os entraves foram retirados; em 2014, o Decreto do Carnaval de Rua, como ficou conhecido, evitou que São Paulo tivesse o mesmo destino de Salvador: proibia-se o uso de cordas, grades ou quaisquer formas de segregação de espaço e o uso de vestimentas como forma de ingresso pago. Ou seja, evitou a privatização da festa das ruas.
Prefeitos conservadores que vieram depois não tiveram força para evitar que o Carnaval de rua ganhasse cada vez mais relevância. Doria, com sua conhecida alergia a povo e a tudo que represente alegria, levantou a ideia de colocar o Carnaval na 23 de maio, horrenda avenida de concreto e asfalto que corta a cidade. Desistiu logo. Os capangas conservadores seguintes, Bruno Covas e Ricardo Nunes, não mexeram mais na legislação e deixaram o bloco seguir.
Como conta Varella em seu livro, o direito à folia finalmente foi reestabelecido, depois de décadas de tentativas de domesticação. As ruas voltaram a ser espaço do prazer e da cidadania negada, como disse outro autor que citei lá em cima, Luiz Antonio Simas.
A disputa pelo Carnaval - que não é apenas em São Paulo e se repete em várias cidades pelo Brasil - é, na verdade, a disputa pelo espaço público. Aos donos do poder, sejam fardados ou não, só interessa a rua como lugar de passagem e de negócios. A rua não existe, nessa perspectiva, como espaço público democrático; até porque gente na rua tem a estranha mania de exigir direitos, protestar contra desmandos e refazer regras que constrangem a liberdade.
Numa cidade que se transforma para pior continuamente - em Pinheiros, por exemplo, os blocos passam por tapumes de obras e esqueletos de prédios gigantescos, um cartão postal da especulação imobiliária - o Carnaval é o exemplo mais bem acabado de que rua deve ser para o povo e não apenas para os donos do poder e do dinheiro.
Sempre existirá o proverbial tio, cunhado ou contraparente que espinafra Carnaval, sente saudades do tempo em que as ruas ficavam vazias e acha tudo uma pouca vergonha - e você já sabe de que lado essa gente está. Grandes chances de você até adivinhar em quem o cabra votou, sem muito esforço (se é que já não sabe; sempre há sinais). Ou, ainda, aquele primo do rock-coxa que desfila um monte de preconceitos sobre a música, ou até algum conhecido que não é de direita e nem de esquerda e vaticina, com ponderação, sobre o direito dos moradores ao sossego ser maior do que o direito à festa.
Mas, em qualquer uma das hipóteses, não deixe de ir para as ruas, ouvir música estridente e por vezes ruim, tomar cerveja mais ou menos gelada, aglomerar com um monte de desconhecidos e fazer o que der na telha. Não entre na onda de quem odeia diversão e quer acabar com a do coleguinha. Carnaval está aí e, a despeito dos problemas, só acontece por alguns dias do ano. Quem sabe seja um pequeno aperitivo que deixe um gosto de ‘quero mais': mais rua, mais liberdade, mais democracia.
Rua como espaço de prazer e liberdade, como deveria ser sempre.
Ainda é Carnaval, mas aos poucos esse espaço aqui retorna. Em marcha lenta, com uma cerveja na mão e um penacho na cabeça, mostrando todo o telecoteco e o balacobaco da folia momesca. Aproveite as ruas, ou aproveite para ficar em casa mesmo ou viajar (afinal, ninguém precisa gostar de carnaval - mas quem gosta deve poder curtir em paz).
Se sobrar um tempo, indique esse Locked Groove aqui para amigos, conhecidos, amores de carnaval que acabou de conhecer. Logo mais tem mais.
São muitos os fenômenos sociais que seguem a mesma dinâmica do carnaval, entre eles a linguagem.
A “ralé” inventa os termos e evolui as línguas vivas, mas quem coloca a palavra no dicionário são as elites, sempre preguiçosas e invejosas. Incapazes de criar e inovar por estarem tão presas a questões morais e medo de reprovação dos seus iguais. Mas não os cataloga sem antes usurpar a autoria dos ditos-cujos, muitas vezes criando falsas e românticas lendas sobre a origem.
A culinária segue a mesma linha. Ainda bem que nesse caso tem acontecido um resgate da real origem das receitas.
Ótima reflexão! 👏