Pobre paulista
No feriado que relembra a História ferozmente editada e inventada, algumas dicas de bons lugares para se comer em São Paulo, em que as memórias são bem reais.
Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Nota: O título cita a música do Ira!, que é bem mal-compreendida e enxergada como uma ode nativista a São Paulo. Nada mais longe que isso. Ironia e nuance, definitivamente, não fazem parte do léxico de muita gente.
Mais uma nota: esse texto chega mais cedo para quem assina: como é feriado, antecipei o envio para a quinta feira. Boa leitura!
Intro.
Texto bem preguiçoso, que hoje é feriado e não sou obrigado.
Já de cara, vou meter uma polêmica: como não falar que esse feriado estadual de 9 de julho em São Paulo é um dos mais sem sentido que existem? Uma das mais cínicas construções da História brasileira?
Comemora, em teoria, a resistência paulista contra um ditador. O movimento de 1932, segundo a história “oficial”, defenderia a Constituição Federal contra os desmandos autoritários de Vargas.
Bonito, mas quem conhece bem a história sabe que o Estado de São Paulo estava longe de ser democrático e respeitador das leis. A “Revolução Constitucionalista” não era revolucionária e muito menos constitucionalista; era uma luta de oligarquias, pela hegemonia nacional e manutenção do poder, e não uma resistência pura ao autoritarismo varguista (que havia, sim, dado um golpe e desmantelado o arranjo oligárquico da Velha República, mas seus adversários não tinham objetivos mais nobres).
Criou-se, com o mito da Revolução de 1932, todo um passado de resistência, orgulho nativista e apreço às leis e tradições que é, no mínimo, enganoso. Da mesma forma que os bandeirantes viraram herois do Brasil na historiografia chapa-branca, sem contestação há até alguns anos, a chamada Revolução Constitucionalista alimenta o orgulho nativista paulista por meio de bem escolhidas - ou até distorcidas - versões dos fatos.
Tudo tão falso quanto aquelas manifestações que inundaram a Avenida Paulista de gente de verde e amarelo e resultaram num impeachment fraudulento e em um subsequente desgoverno fascista.
Mas chega de bancar o irado da enchente e vamos ao que interessa - ou seja, o texto da semana. E que é, na verdade, uma das coisas mais manjadas de quem está sem assunto: uma lista. Mas, pelo menos, não é lista no sentido formal, porque vai ser um texto mais fluido.
Lustro a cara de pau e aí vai uma leitura rápida, que é para você também não perder tempo nesse feriado e aproveitar o dia livre, apesar de ainda não podermos fazer tudo o que fazíamos antes de 2020.
E nada melhor para lembrar dos tempos pré-pandemia do que falar de algo que, apesar de tudo, permanece: a memória afetiva de lugares que conhecemos naquela outra vida, a que tínhamos antes do Covid-19.
Memórias reais. E não inventadas.

A primeira dose da vacina faz com que a gente fique com vontade de sair de novo. Mas, assim como a febre como efeito colateral da vacina veio e foi embora, já voltou também a consciência de se esperar até a segunda dose. E até ter bastante gente imunizada também. Pacto coletivo que chama, né?
Mas isso não impede de lembrar do que nos faz felizes.
E o que poderia nos fazer mais felizes do que aquilo que chamam de comfort food? Não é tranqueira, ultraprocessado, nada disso; não que não se possa considerá-los, cada um preserva memórias do que quiser. Mas estou falando de comida com a qual você se sente bem, que tem uma relação com o seu subconsciente, que traz satisfação, calor e segurança. Em geral, comida da casa de mãe ou avó, por exemplo. Mas aqui quero falar de comfort food em relação também ao lugar. E nada me deixa mais feliz em determinados dias do que um daqueles restaurantes tradicionais, de bairro, anônimos, sem afetação, com comida despretensiosa e boa, apesar de não exatamente incrível. Aquele lugar que está lá desde sempre, e que você às vezes até esquece que existe.
São Paulo é cinza, hostil, espalhada, suja, desordenada - mas é também uma cidade onde você ainda tem bairros com uma vida própria e com suas pequenas joias escondidas, que podem ser ‘descobertas’ em um bom dia de sol. Não exatamente ‘descoberta’: é mais aquela ideia de um lugar que você não lembra normalmente como opção, e no qual você deixa de ir por um tempo, mas sempre volta e é da mesma forma como você se lembrava.
Feriado é bom para se fazer isso: retornar a um antigo lugar de conforto, que na correria do dia a dia talvez você deixe de lado. Ainda mais em feriado estadual de 9 de julho, em que muita gente sai da cidade. Multidões de clones de casaco de gominho vão aproveitar a aglomeração em Campos do Jordão, ou acender lareira em alguma pequena cidade do interior; outros até vão para a praia, mesmo sendo inverno. Mas sempre gostei da cidade vazia dos feriados - é um prazer diferente poder ir a lugares distantes, pouco usuais, fora do seu caminho. Aquele bairro que você frequentava na época da faculdade, por exemplo, mas que depois ficou fora de mão, quando a vida o levou para outros lados.
Restaurantes anônimos de bairro têm muito disso. Por exemplo, o Nelito, na Pompeia. Não é exatamente antigo, mas tem todo o jeito de um tradicional: fica em um largo, ao lado de um tapeceiro que está lá há tempos e de casas residenciais que ainda não foram postas abaixo pela especulação imobiliária. Não há nada de muito sobrenatural na feijoada servida lá - a não ser a possibilidade de se ficar horas em uma mesa, com uma boa comida praticamente caseira, com amigos, vendo as fotos antigas na parede, jogando conversa fora e pedindo mais uma caipirinha ou uma cerveja gelada. O pedágio a pagar é o torresmo ruim, feito no começo do almoço e que fica murcho logo, se você não chega cedo. Mas tudo bem, não é isso o que importa; importa mais é conseguir a mesa embaixo do toldo, logo na entrada, e ficar até fechar, quando você vê que o movimento já diminuiu e começa a pensar para onde ir para uma saideira.
E restaurantes assim tem de monte: lembro também do ancestral Chaplin (não confundir com a Pizzaria Carlitos, outro dinossauro da mesma região). O Chaplin, fundado em 1964 - ano de outra revolução fajuta - em Mirandópolis, bairro discreto entre Vila Mariana e Saúde, tem também uma feijoada honesta como a do Nelito, mas é seu parmegiana simpaticamente medíocre, mas bem saboroso (impossível errar em um prato como esse) e servido em baixela de inox, que vale bastante a ida até lá. Inclusive para tomar a caipirinha de caninha 51 misturada a caminhões de açúcar ou o chopp Brahma escuro. As paredes de madeira escura e a decoração vêm direto dos anos 1960. Melhor que isso, só mesmo emendar um doce na esquina, na doceira Marrom Glacê (sem rede social ou site), na mesma Luis Góis, que funciona ali desde a mesma época.
Vila Mariana, logo do lado, tem uma outra joia antiga dessas. Que está mais para bar, mas que tem comida boa também: o velho Jabuti, em frente ao Instituto Biológico. Morei durante anos em um apartamento a duas quadras do Jabuti; ele estava sempre lá, confiável, para um dia em que você sai da Bienal ou da Cinemateca, anda sem pressa pelas ruas do bairro e senta em uma das mesas da janela. Nunca está cheio, mas está sempre movimentado. Pratos despretensiosos com frutos do mar e peixes ficam à mostra em um balcão antigo e servidos por garçons que estão lá desde 1967, aparentemente.
Não sei quantos chopps tomei com meu irmão, Henrique, enquanto víamos uma semifinal de Copa do Mundo, há alguns anos, entre Uruguai e Holanda. A melhor coisa é ver jogo sem a seleção canarinho. Você pode se concentrar no futebol e não em todo o enredo ufanista que se forma com os valentes de verde e amarelo.
E muito confiável também é o restaurante grego sessentão Acrópolis, em outro bairro tradicional, o Bom Retiro. Que tem a cozinha aberta mais simpática da cidade e uma comida bem boa e simples - você escolhe seu prato ao ver o que tem no buffet, por uma janelinha, e eles montam e levam para você na mesa. Escondido em uma rua comercial, tem um salão de teto baixo decorado com fotos da Grécia e pintado todo em azul e branco, da bandeira grega. Mas vale mesmo é ficar na rua, em uma das mesinhas improvisadas, vendo o pouco movimento do bairro, com suas lojas fechadas no feriado.
Sentar numa mesinha fora dá a chance de presenciar coisas como a discussão que presenciamos há alguns anos, entre um senhor de barba branca gigante, conhecido como "Papai Noel", com uma senhora mais ou menos da mesma idade. Observando a briga junto com a gente, o dono do Acrópolis explicou que os dois, ambos judeus, tiveram um caso mal-resolvido em 1978 e, desde então, ficam com ironias, cutucadas e xingamentos de um para o outro, sempre que se encontram. Algumas vezes, em calçadas opostas, aos berros.
Um dia, demos de cara com a porta cerrada e uma reforma em andamento. Foi logo após a morte do patriarca. Tememos pelo futuro. Mas, meses depois, soubemos que reabriu e estava tudo misteriosamente do mesmo jeito - o que é ótimo, em uma cidade que parece esquecer a cada 10 anos tudo o que houve nos últimos 10 anos, parafraseando Ivan Lessa.
E nada mais representativo dessa constante obsessão bandeirante pela destruição e reconstrução do que a Avenida Paulista. Em uma galeria perdida na ilha entre a Avenida Paulista, a Avenida Brigadeiro e a rua Manoel da Nóbrega, fica um dos melhores - se não for o melhor - restaurantes japoneses de São Paulo: o Sushi Guen, que está lá desde 1973. O fundador e chef, Shimizu-San, japonês emigrado, dominou por décadas o balcão tradicional, que tem um baiacu empalhado pendurado em um dos cantos. Dizem que, todos os anos, pelo menos 5 pessoas morrem no Japão por consumir sashimi de baiacu cortado de forma errada. Shimizu sempre dizia que não fazia sashimi de baiacu e que aquele estava ali só de decoração mesmo - mas desconfio que talvez até fizesse esse sashimi, mas só para alguns poucos clientes bem próximos, talvez até do consulado japonês, que fica perto dali.
Sempre que lembrava do Sushi Guen eu ia até lá e escolhia preferencialmente um lugar no balcão - o melhor lugar para pedir um tirashi ou algum outro prato de peixes fresquíssimos e muito bem cortados. Diferentemente dos outros restaurantes de que falei aqui, a comida do Sushi Guen é fantástica, bem acima da média. Mas o jeito low-profile e despretensioso faz com quem pareça um restaurante anônimo, como tantos outros. A proximidade com as pessoas - todos são bem simpáticos, desde o caixa e as atendentes, até Shimizu-San e seus assistentes - é bem a cara de um restaurante pequeno de bairro.
Conversei muito com Shimizu. Uma das vezes, ele contou como, no Japão, um sushiman começa em um restaurante bem por baixo mesmo - durante 3 anos varre o chão e leva o lixo para fora; no máximo, confere pedidos. Depois disso, ganha uma promoção: pode limpar a geladeira, ao final da noite. E depois sobe mais um degrau, se houver dedicação: pode começar a ir ao mercado comprar os peixes já encomendados. Um dia, se você se esforça e o chefe reconhece seu trabalho, você tem total autonomia para decidir se um ou outro peixe é o mais indicado, mesmo que o vendedor fale o contrário. Daí, você começa a subir na vida: pode começar a cozinhar o arroz, fazer conservas, montar pratos que não envolvam peixe. Depois pode afiar facas. A essa altura, já perdi a conta de quanto tempo passa até você poder começar a cortar o peixe.
Em outra ocasião, levei uma bronca, de leve, por não comer um hossomaki gigante de uma única vez. Shimizu falou ‘da próxima, então, você já sabe como faz'. Simpático sempre, mas a tradição é que manda.
Foi um dos primeiros restaurantes japoneses que conheci em São Paulo. Descobri por acaso e dei sorte. Shimizu-San já faleceu, mas seu filho assumiu o balcão e, da última vez em que estive lá, a qualidade continuava a mesma. Tem coisas que trazem um conforto exatamente por não mudarem.
O Sushi Guen fica numa das regiões mais movimentadas e impessoais de São Paulo - nada tem menos cara de bairro do que essa confluência caótica da Avenida Paulista com a Brigadeiro. Mas, escondido ali, na galeria comercial pouco glamourosa, tem o maior jeito de um pequeno restaurantezinho. Não é porque não está no bairro que não pode ser considerado como os outros: é uma resistência a essa mudança desordenada, a esse constante desfazimento a que São Paulo é submetida. É uma cidade que, constantemente, destrói tudo e reconstrói em cima - não exatamente para melhor. É uma cidade da especulação imobiliária, em que os bairros, principalmente os tradicionais, vão dando espaço cada vez mais a prédios de arquitetura duvidosa e altos muros.
Há um movimento pendular que acontece na vida urbana desde sempre: por um lado, cidades recuperam áreas degradadas, retoma-se a convivência das ruas, criam-se parques e novos usos para a cidade; por outro, a gentrificação de áreas gigantes, novos empreendimentos imobiliários e expansão desenfreada e desorganizada destroem o que já existe de bom.
No movimento atual desse pêndulo, São Paulo, sempre mais rica, só que para poucos, tem se tornado cada vez menos democrática e, ao mesmo tempo, perde muito da sua história e do que a caracteriza na memória de quem mora aqui.
A São Paulo da verticalização e da especulação imobiliária é a exata oposição ao que é comfort food e ao que esses lugares todos de que falei aqui representam. A narrativa dominante para a cidade e para o Estado de São Paulo passa por progresso, crescimento econômico e cosmopolitismo; mas o reverso da moeda, o significado real dessa narrativa, é a constante desumanização, a distorção do espaço público e, finalmente, a dissolução da memória.
Poder ir a um lugar tradicional, que é ponto de referência de quem mora perto, que faz parte da história do bairro e das histórias pessoais de muita gente, permite que a cidade seja menos dura, impessoal e distante.
No futuro, talvez esses restaurantes todos sejam apenas uma memória antiga, que vai se apagando com as mudanças na cidade. Mas sempre dá para acreditar, também, que o movimento pendular urbano possa sair desse extremo do progresso a qualquer custo e voltar a valorizar a vida que os lugares da nossa memória representam. Vamos aproveitar enquanto ainda é possível. E, nos próximos feriados, talvez já seja bem possível para muitos.
Cada restaurante citado tem seu link no meio do texto, é só procurar lá. Poderia ter escrito de muitos outros, tem ainda muita coisa boa na cidade. Mas essa pequena amostra já deve bastar para quando pudermos sair de novo, sem preocupação, para um daqueles almoços bem longos de tarde de sábado.
PARA ACOMPANHAR A LEITURA
Caipirinha, origem controversa, 1900s
Talvez o único cocktail conhecido no mundo como tipicamente brasileiro.
Dizem que nasceu no começo do século XX. Câmara Cascudo, historiador, coloca a origem do drinque no interior de São Paulo, na região de Piracicaba, criado por latifundiários de cana-de-açúcar. Outros ainda dizem que a bebida apareceu no Rio de Janeiro, feita por marinheiros para evitar escorbuto; ou, ainda, que nasceu em São Paulo, sim, mas para combater a gripe espanhola, por volta de 1918.
Todas essas versões têm seu fundo de verdade. Assim como vários drinques da história da coquetelaria, as lendas são muitas e é difícil saber a origem exata.
Um outro caminho a se tomar é investigar bebidas anteriores. O Grog, ou Navy Grog, já fazia uso da mesma forma de construção. A Canchancara, de Cuba, usava até o mesmo tipo de aguardente, bem menos conhecido na ilha caribenha do que o tradicional rum. E isso sem falar do Daiquiri e de drinks parecidos da família dos sour.
De qualquer forma, é um drinque bem brasileiro e bem fácil de fazer. E onipresente em todos os tradicionais restaurantes que citei acima. Até no japonês Sushi Guen vi gente tomando caipirinha de sakê.
Um drink simples de fazer e fácil de estragar, justamente por ter poucos ingredientes. Originalmente leva limão Tahiti, que é o que uso nessa versão. A cachaça é artesanal, envelhecida em tonéis de Amburana. Boa para almoço de sábado, mesmo que não seja no verão. E boa para se tomar algumas, conversando sem pressa e aproveitando um final de semana ou um feriado.
Nessa versão:
2 doses de Cachaça - artesanal, do Assentamento Quilombo Dandara, MG.
1 e 1/2 dose de suco de limão Tahiti. Mais uma metade cortada em 4 pedaços, macerados.
Ao invés do açúcar refinado, 3/4 dose de simple syrup de açúcar demerara. Menos doce, essa versão faz aparecer mais a cachaça envelhecida.