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Intro.
Semana passada foi aquilo que vocês viram (e se não viram, ainda tá em tempo; vai lá e veja a primeira parte, sobre os melhores discos do ano).
Aqui vai ser papo reto, já que ninguém aguenta mais essa conversinha de retrospectiva e quer mesmo é largar a caneta, ir pra festa de fim de ano e enfiar o pé na jaca às custas da empresa, mesmo que tenha que aguentar discurso de CEO. Pelo menos sai barato para eles, como diria o sábio Luigi.
Aqui nessa quebrada, ao contrário das festas de fim de ano de firma, não tem Jota Quest, Tiaguinho ou karaokê de Evidências - mas tem, isso sim:
Os melhores shows do ano.

E já vamos metendo o louco, porque teve muito show bom em 2024.
Não é surpresa. O seu artista preferido, atualmente, só paga boleto se excursionar muito, fizer shows lotados, cobrar mais caro no ingresso. Disco virou desculpa para vender show, quando antes era o contrário. Lembra quando os The Beatles desistiram de tocar ao vivo, ou Brian Wilson decidiu que só iria compor e gravar em estúdio? Isso acabou. Agora, o negócio é faturar com show - e haja festival com as mesmas caras de sempre e turnê gigantesca sem disco novo.
E como acontece sempre que se fala dos melhores do ano, vamos para a lista, o suspense, a contagem regressiva e tudo mais, bem aos poucos, para encher muita linguiça até vocês saberem qual foi o melhor show do a
Então: vem aí o 01: o melhor show do ano foi Bikini Kill, Audio Club/São Paulo, 5 de março.
Inspirei-me no grande Mark Arm, vocalista do Mudhoney, para mandar essa logo de cara.
Uma vez, li que o Mudhoney estava no auge da popularidade em 1989 e fez uma turnê de sucesso pela Europa, criando expectativa para shows cada vez mais lotados e disputados a tapa. Em 3 de dezembro, chegou a Londres para tocar no Astoria, tradicional casa de shows londrina. Tudo esgotado e gente fazendo fila desde cedo na porta. Para se ter uma ideia, a banda de abertura eram apenas os “irmãos mais novos” do Mudhoney, três caras também de Seattle: uma banda chamada Nirvana.
Astoria lotadaço, plateia alucinada pelo show de abertura, expectativa em alta e gente tentando subir no palco; e foi aí que o Mudhoney começou o show. Já na segunda música, Mark Arm falou “Para vocês não encherem mais o nosso saco, vamos tocar essa aqui de cara”. E começou com Touch me I’m sick, maior hit da banda e a música mais aguardada em toda a turnê, o momento mais caótico dos shows.
Bikini Kill é histórica, influente, essencial. Formada em 1990, em Olympia, Washington, foi uma das bandas que mais incorporou o rótulo “riot grrrls" , termo irônico criado em fanzines que circulavam pelo Noroeste americano. Kathleen Hanna, Tobi Vail e Kathi Wilcox vinham do background do punk de Do It yourself, publicando fanzines, fazendo demos em cassete, tocando em festas alternativas, clubes pequenos, rodando os EUA em vans bem velhas e fazendo shows em cada cidadezinha onde havia algum punk. Praticamente uma versão vida real das bandas de Esperanza Hopey Glass em Love and Rockets - aliás, para quem lia os quadrinhos dos irmãos Hernandez (ainda vou falar deles no futuro, já prometi), Bikini Kill sempre foi importante e essencial.
Grande show, daqueles para não ficar um minuto parado, músicas clássicas e a banda, mais experiente e véia de guerra, tocando melhor do que nunca. No momento clássico do “Girls up front!” (quando Kathleen chama as mulheres para pogar na frente do palco), o show vira uma coisa linda de se ver. E ainda vale muito como aula prática de como lidar com macho chato: uns skatistas-fascistas (estilo Cão-véio, sabe? Essa cotovelada na boca eu deixo para vocês associarem a quem melhor se enquadrar) não arredaram o pé do lugar privilegiado em que estavam e queriam arrumar treta com a onda feminina que seguia para a frente do palco. Empurrões e dedo na cara e Kathleen chamou a segurança para tirar os cururus de lá. Só provou aquele clichezão que infelizmente não muda: nem todo homem, mas sempre um homem.
02. Melhor show brasileiro: Guilherme Arantes, Sesc Pompéia/São Paulo, 6 de março.
Sim, não é erro e nem interferência do hacker de Araraquara.
Guilherme Arantes juntou uma banda só de macaco velho (por exemplo, Carlini do Tutti Frutti numa das guitarras, Willy Verdanguer, do Secos & Molhados, no baixo, outros tão gabaritados quanto), deu uma geral na carreira inteira, incluindo até música do Moto Perpétuo, sua banda de Rock Progressivo dos anos 1970, e fez um dos melhores shows brasileiros que já vi na vida - e fácil o melhor do ano, num 2024 de grandes shows nacionais.
Pesado e pop ao mesmo tempo, sem vacilar, Arantes começou já com A Cidade e a Neblina, do seu disco de estreia, de 1976. Foi enfileirando uma sequência de hits - umas cinco músicas que muitos artistas dariam um braço para ter composto.
Qualquer um se perguntaria o que viria depois de um início tão avassalador como esse, com músicas que tocaram tanto que são clássicos da música pop brasileira. E o que veio? Mais hits. Uma máquina do pop, Guilherme Arantes já foi o maior arrecadador de direitos autorais do Brasil e dá para entender o motivo.
Sem pausa, emendando uma música na outra, sem solo pentelho e sem amaciar. Não teve bis: Arantes falou que haviam passado da hora e não iriam perder tempo para sair do palco e que continuariam a tocar até o final. Sábia decisão.
Num ano em que vi grandes shows nacionais - Ney Matogrosso lotando estádio, Bethania e Caetano em turnê também em estádios, Nação Zumbi, os novos do Black Pantera, Devotos, Marina Lima - Guilherme Arantes fez uma volta triunfal. Para quem se acostumou a achar que Guilherme Arantes era aquela produção anos 1980, com teclados de banda cover de churrascaria e bateria que parecia alguém fazendo purê de batatas, ver uma banda tão Rock and Roll quanto a que ele juntou é uma experiência completamente nova. Bem vindo de volta.
03. Melhor festival: C6 Fest, Ibirapuera/São Paulo, 19 de maio.
Primavera Sound morreu mesmo de morte matada, apesar do esforço da nova produtora de colocar música ambiente de supermercado esnobe ou rock burro de rádio para tentar salvar o rolê. Foi até engraçado ver artistas como The Killers, tão subversivos quanto pão de forma. No final The Cure correu por fora, fez show lotado e parecia ter garantido sobrevida ao festival. Não adiantou nada. Melhor assim - uma nova edição, depois de tudo o que rolou em 2023, perigava ter um headliner como Imagine Dragons ou Maroon 5, a depender dos gênios da T4F, que entendem tudo de dinheiro e nada de música.
Em 2024 não foi só o Primavera que foi de arrasta pra cima. Outros festivais não se viabilizaram e alguns preferiram uma saída honrosa, como o Popload, que volta em 2025, depois de sair elegantemente de cena por dois anos.
O C6Fest, na contramão do mercado saturado, fez uma ótima edição sem precisar apelar. Teve curadoria boa de artistas, lugar incrível - o Parque do Ibirapuera - palcos bem localizados e nada de muvuca para circular. Grandes shows: Pavement, o inesquecível da Cat Power tocando Dylan ‘66, algumas boas surpresas como Squid e Paris, Texas. Variado, com nomes desconhecidos e alguns que já têm público cativo, segue no template estabelecido pelos antigos Free Jazz e Tim Festival. Os cabras têm dinheiro: no de 2025 vai ter Wilco, Pretenders e Nile Rodgers (Chic) pelo lado pop, e o velho mestre Mulatu Astatke no jazz. Espero que tenha longa vida.
04. Melhor performance: Maria Bethânia, Mineirão/Belo Horizonte, 7 de setembro e Allianz Parque/São Paulo, 18 de dezembro.
A turnê de Caetano Veloso e Maria Bethânia provou algumas coisas: que Bethânia tem carisma suficiente para carregar um estádio lotado, que Caetano anda menos falante e parece um pouco cansado, que a canção evangélica que ele escolheu para o repertório não funciona, mas não pelo preconceito religioso: é porque é muito ruim mesmo e quebra totalmente a sequência. Parece até um merchan incluído de última hora, coisa que Caê já fez com maestria, mas que dessa vez não funcionou.
Mas o que ficou mais evidente é que Bethânia é a melhor intérprete da música brasileira - e olha que vi Ney Matogrosso um pouco antes, também em estádio. Dona do espaço, segura de tudo, é o ponto alto do show e fez versões definitivas de músicas como Um índio e Reconvexo e, ainda, quase tomou para si uma música que é Caetano na veia, Vaca Profana.
05. Melhor show que ninguém viu: Drahla, Specka, Madrid, 24 de maio
Lugar pequeno, no porão de um prédio comercial meio qualquer coisa, perto do estádio Santiago Bernabéu, em Madrid. Platéia de não mais que 20-30 pessoas, um espaço mais ou menos do tamanho d’A Obra (quem é de Belo Horizonte conhece, é um porãozinho de bons sons). Drahla é uma banda pós-punk de Leeds, cidade operária do Norte da Inglaterra e de onde vieram somente bandas como Gang of Four, Mekons, Wedding Present, Soft Cell, Sisters of Mercy, para ficar em algumas.
Fazem bonito e têm som para estar na companhia desses gigantes aí. A vocalista e guitarrista Luciel Brown é a alma da banda: canta bem, toca guitarra como poucos - não ouvi nada que fosse derivativo - e tem presença cool no palco, que poderia até passar por arrogância; mas foi só acabar o show para ela ir para a banquinha de LPs e merch da banda e conversar com todos, sempre simpática.
Deu até saudade dos tempos em que eu via toda semana bandas tocando em lugares assim, na madrugada de São Paulo. Valeu mais do que um festival inteiro das mesmas bandas de sempre, como acontece atualmente.
E vamos acelerar aqui, já que ainda vou usar os últimos giros desse Locked Groove para falar das músicas do ano. Claro, são músicas que ouvi esse ano, mas não necessariamente feitas agora. Já falei muito na edição anterior de algumas. Então vai ser meio uma frase pra cada, sem alongar muito. Afinal, as melhores músicas, para mim, são sempre aquelas que não perdem tempo e vão direto ao ponto.
Violent Times, St. Vincent
A melhor música do melhor álbum. Lembra um David Bowie da fase Scary Monsters. Não tem como não gostar.
Rio’s song, Hard Quartet
Disco foda de uns macacos velhos do rock, tem muita música boa e é difícil escolher uma só. Mas botei essa aqui muito pelo clip - uma refilmagem take a take do clip dos Stones Waiting on a Friend e filmado praticamente nos mesmos lugares. Genial. (e veja depois o original, para comparar).
The Center Cannot Hold e Love Insurrection, Primal Scream
As músicas que saíram como singles prometiam muito. Parecia que o Primal Scream seria relevante de novo - e os caras já tinham tido voltas improváveis antes. O disco decepcionou, mas as músicas sozinhas são incríveis. Essa aí embaixo é uma delas: Bobby Gillespie como um V sem máscara, não abandona a militância e continua prestando bons serviços - o hedonismo do Primal Scream é uma lembrança de que devemos ocupar todas as trincheiras (mantra que sempre repito aqui) e não deixar que os fascismos cotidianos nos dominem.
O título da música abaixo vem do poema de Yeats, que já citei também. Em tempos violentos como os que vivemos, é o mais indicado para manter a resistência.
Aos melhores falta a convicção, enquanto os piores
estão cheios de intensidade apaixonada.
_W.B. Yeats
Pedro Navaja, Willie Colón e Rubén Blades
Esse é um clássico de 1976, mas que só descobri agora. Ouvi muito Fania e outros latinos dessa época - comprei muito disco de Salsa e Latin-rock-jazz na loja de discos que eu mais gostava em São Paulo, a Big Papa Records. Por algum motivo, nunca havia cruzado com esse disco antes, Siembra, união do grande cantor panamenho Rubén Blades com o músico-ativista genial e às vezes malaco-gangsta prototípico Willie Colón, nascido no Bronx de pais porto-riquenhos.
O disco pegou o primeiro lugar na lista do projeto que compilou os 600 discos essenciais da América Latina. Grande disco e Pedro Navaja é a canção mais famosa da dupla. Clique aí embaixo, que tem Rubén Blades numa versão incrível ao vivo.
Blades cita Mack the Knife no começo dessa que é uma das grandes músicas narrativas da história, em que o instrumental ajuda a contar a letra - pense em Domingo no Parque ou Construção, para entender do que se trata. Garanto que você também vai achar a melhor música que ouviu esse ano.
Descobri por acaso. E é verdade demais o final da música: La vida te da sorpresas, sorpresas te dan la vida, ¡ay, Dios!