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Intro.
Já é tradição: final de ano é sempre época da minha retrospectiva bem pessoal e sem compromisso com ninguém. Escolho o que quero, falo do que ouvi, ignoro o que não me diz respeito. Estabeleço algumas regras:
só entra o que de fato eu ouvi bastante e me identifiquei. Parece óbvio, mas tem gente por aí que fala bem de disco só pelo nome na capa. Não tenho compromisso com jabá e nem com artista que vive só de glórias passadas;
Terrorismo novidadeiro aqui não se cria, mas também ficar sempre nos mesmos artistas dá preguiça. Nada de modinha, portanto;
e, finalmente, disco de bilionário com 265 compositores e 183 produtores em cada faixa passa bem longe daqui. Quem quiser ver maluco fazer cosplay de cowboy só porque é a nova onda comercial, fique à vontade. Aqui não, que nesse cafofo mando eu.
Com isso, vamos para a primeira parte da retrospectiva de música:
Os melhores discos do ano.
Nada melhor para falar disso do que um recurso manjado que vem desde os tempos em que ainda existia crítica cultural: a boa e velha lista. Na maior parte, textos rápidos, meio que um tuíte, sem perder muito tempo. Como sempre, algumas idiossincrasias minhas e nada muito equilibrado.
Uma vez li no Substack de um jornalista que ele sempre tentava escrever de forma que a mãe ou a tia dele entendessem. Acho nobre.
Como não sou assim, vou encher esse texto de referências obscuras e associações meio esotéricas. É um pouco pelo saudosismo: quando eu lia revistas como The Face, I-D ou alguma de música, lá na Era Paleozóica, eu gostava mesmo de textos em que eu não sabia porra nenhuma das referências. Era o que me fazia ir atrás e tentar descobrir, entender e aprender. Então, sinta-se à vontade para abandonar no meio, caso esteja muito com cara de fanzine revoltadinho e elitista. Entendo super.
Para começar, uma geral em bons lançamentos do ano, sem ordem definida.
66, Paul Weller
Ótimo nome para disco: é a idade do Paul mais legal da Inglaterra e referência ao ano em que seus ídolos batiam um bolão. Tem tudo a ver com o pop perfeito de Weller, que está em ótima forma.
I'm Totally Fine with It, Don't Give a Fuck Anymore, Arab Strap
Por falar em ótimos títulos, esse dos dois escoceses feiosos é imbatível. E o disco é de gente que sabe o que faz, faz o que quer e não segue modinha.
My Method Actor, Nilüfer Yanya
Boas guitarras, sem uma única música desperdiçada, pop sem sujar a testa com sorvete. A britânica multicultural Nilüfer Yanya tem um grande futuro pela frente.
How Will I Live Without a Body, Loma
Brian Eno adora. Precisa falar algo mais?
The Collective, Kim Gordon
Kim mostra que existe vida pós-Sonic Youth com um disco que parece feito em 2024 - ao contrário dos discos de seu ex-marido Thurston.
Lives Outgrown, Beth Gibbons
Beth faz as coisas no seu tempo, no seu ritmo e é sempre bom. O último disco dela saiu em 2003. Se precisar esperar tanto assim pelo próximo, vale a espera.
Wall of Eyes e Cutouts, The Smile
Dois grandes discos num único ano. Desse jeito, nem precisa de Radiohead.
Dulling the Horns, Wild Pink
Rock alternativo como não se faz mais, daqueles discos para ouvir do começo ao fim, sem pular faixa. Genérico, mas no bom sentido - exatamente o contrário de Foo Fighters.
Perpétuo, Black Pantera
O trio de Minas Gerais faz uma das coisas mais difíceis no Brasil: rock de verdade. E com um poder ao vivo que é difícil de encontrar.
Sessões Selo Sesc #12, Devotos
Banda punk-hardcore-reggae e tudo mais das quebradas de Recife. Não mudaram nada desde que apareceram e, ao contrário do que pode parecer, isso é ótimo. Vi o show recentemente e os caras continuam relevantes e militantes. Grande frase de Canibal, o vocalista/baixista da banda: “Falaram que Devotos teve pressa de gravar o primeiro disco. Eu falo que quem tem fome, tem pressa.”
Big Swimmer, King Hannah
Uma banda com uma vocalista com todas as boas referências - Patti Smith, PJ Harvey, Nico, Kim Deal, Beth Gibbons - e um guitarrista que sabe como botar o barulho no lugar certo. Músicas pop-noise com aquela distorção linda que há muito tempo não se ouve. Eu quase diria que é a segunda melhor banda de Liverpool em toda a história - depois do Echo & The Bunnymen, claro.
White God, Nick Cave and the Bad Seeds
Cave de volta do abismo onde esteve, depois de tragédias pessoais que fariam qualquer um pirar. Aparentemente, Damiel estendeu a mão para ele (Spoiler: só quem viu Asas do Desejo sabe do que se trata. Sim, ajoelho no milho, porque essa frase ganha o prêmio de referência mais obscura dessa edição).
Come Ahead, Primal Scream
Os singles que saíram antes prometiam muito: uma música melhor que a outra, recuperando um clima Screamadelica, clássico absoluto de 1991. A produção de David Holmes lembra os momentos mais dançantes da banda e traz novas influências como philly sound e italo disco (ou roubos descarados, bem como o Primal Scream sabe fazer). Tudo apontava para um grande disco e…nada 😕. Fora um ou outro momento, as melhores músicas são mesmo os singles; as outras alongam-se demais, como se faltasse edição. Mesmo assim, dá para saber que as principais faixas vão tocar muito em festas nas madrugadas e entrar fácil na lista das melhores músicas que eles já lançaram.
Contei 13 na lista aleatória acima. E agora sim vamos pela ordem, relator: os melhores discos do ano nessa shortlist dos 6 primeiros lugares, na contagem regressiva dos que mais rodaram por aqui no eterno Locked Groove das madrugadas.
06_Mahashmashana, Father John Misty
Desconfiei logo de cara, porque parecia cosplay setentista.
O nome do disco e os primeiros minutos da faixa título poderiam ser de um George Harrison derretido pelo ácido. Pra falar a verdade, o disco todo: produção estilo Phil Spector bebaço e com arma na mão; pianos de Elton John com banda de apoio incrível que sabe tocar de tudo; amplificadores valvulados como no primeiro disco do John; solos de SAXOFONES (!!!!!); Harry Nilsson e Beach Boys decadentes na mesma faixa; canastrice total nos vocais e até mesmo um plágio mais ou menos descarado da orquestra de Serge Gainsbourg.
Ou seja, me ganhou - é tudo o que eu mais quero num único disco. Só faltou Ringo tocando bateria na última música, com todo mundo no palco cantando junto e dividindo microfone, uns gaiatos com latão de Brahma na mão e Neil Young com cara de bobo alegre.
05_Nobody Loves You More, Kim Deal
A rainha sempre merece um reconhecimento gigantesco. Nem parece que é apenas o primeiro disco solo de Kim - afinal, ela sempre foi protagonista em todas as bandas em que tocou. A história é boa e emocionante: as faixas foram compostas entre 2011 e 2022, enquanto ela cuidava dos pais idosos, na sua cidade natal. Ambos faleceram pouco antes da pandemia. Passado o luto, Kim voltou a gravar as músicas com produção de Steve Albini, amigo das antigas e responsável pelo clássico Surfer Rosa do Pixies e que morreu repentinamente há alguns meses. Kim se viu sozinha de novo. A melhor hora para começar uma carreira solo depois de quase 40 anos na música.
Are you mine?
Are you my baby?
I have no time
For nothing, but love_citação da música Are you mine?, inspirada por uma frase da mãe de Kim, que sofria de Alzheimer.
04_Ballads of Harry Houdini, Papa M
Papa M é David Pajo, um verdadeiro Guitar Hero dos anos Noventa pra cá. Tocou em bandas que adoro, como Slint e Tortoise. Fez parcerias com Will Oldham, Stereolab, Yeah Yeah Yeahs. Tocou até na turnê de despedida do Gang of Four - se perigar, a banda mais influente do pós-punk.
Pajo tem uma obra solo de respeito. Doidão, teve também uma vida pessoal conturbada, passou por vícios, sofreu um acidente de moto complicado e chegou a tentar o suicídio há alguns anos. Fazia muito tempo que eu não ouvia um disco dele e esse aqui apareceu do nada, no final do ano. Despretensioso e viciante. Correu por fora e é um dos melhores de 2024, com louvor (ops, não o louvor daquele tipo que o Caetano gosta).
03_Diamond Jubilee, Cindy Lee
Escrevi sobre esse disco no começo do ano. Nada mudou para mim: sua mistura de tudo o que existiu no rock, esse gênero que morreu de morte matada há um tempo (ou foi morrida?) continua tão impactante quanto na primeira audição. Meio que um rádio tocando ao fundo de cenas de Twin Peaks, é uma viagem no tempo desde o começo do rock até o seu apagar, nos anos noventa. Grande disco, feito sem pretensão mas, ao mesmo tempo, com a certeza de que é grandioso. Entrou para a história.
02_The Hard Quartet, The Hard Quartet
Junte quatro velhacos, tranque numa casa em Malibu e mande fazer música. Mas nem precisa, já que são amigos e a música flui naturalmente, como mostra o disco. Um supergrupo bem no estilo decadente dos setenta, verdadeira esquadrilha da fumaça, os parças tocando muito e passando unzinho de mão em mão. Só o fino da música alternativa: Matt Sweeney, do Chavez; Stephen Malkmus, do Pavement; Emmett Kelly, da Cairo Gang; Jim White, do Dirty Three e músico de gente como Cat Power e outros grandes.
Tocam por diversão, com referências que só quem tem coleções gigantes de discos saberia decifrar. Ou não: até rola citação de Here Comes the Sun numa música, ou o clip de Waiting on a Friend [dos Stones], que é referenciado nos mínimos detalhes em outra. Tocam como se fosse fácil e parecem se divertir tanto quanto quem ouve.
Aqui uma informação aleatória engraçada: Matt Sweeney fez parte de um outro supergrupo no começo dos nos 2000, junto com David Pajo, o Papa M do quarto lugar dessa lista. Era o Zwan, banda do geniozinho da feira de ciências da escola, Billy Corgan (do Smashing Pumpkins). Completavam a banda Jimmy Chamberlain, batera da banda de Corgan, e Paz Lenchantin, baixista argentina que depois tocou no Pixies. O Zwan durou pouco, por motivos bem-explicados nas palavras de Corgan:
"E então você entra no que eu chamaria de comportamento cataclísmico. Sexo entre membros da banda em público. Pessoas que levam drogas através de fronteiras.Você entra em um estado de negação. Fui enganado por essas pessoas muito más. É constrangedor para mim. Mas isso deixou clara a minha motivação para tocar e ainda me fez voltar a gostar da minha antiga banda.”
Maravilha. Qualquer um que faça esse careca totalitário tremer nas bases tem minha total gratidão. 🙌
01_EMPATE TÉCNICO NO PRIMEIRO LUGAR
Love Changes Everything, Dirty Three
O maestro do Bad Seeds e parça de Nick Cave, o multi-instrumentista Warren Ellis, já apareceu lá em cima. O batera Jim White toca no nosso segundo colocado, o Hard Quartet. Para completar o trio, entra Mick Turner, um dos guitarristas mais requisitados do mercado, e que já tocou com Cat Power (com o amigo Jim White, numa das melhores bandas ao vivo que eu já vi).
O Dirty Three apareceu nos anos 1990 na Austrália e tem discos memoráveis. Cada um seguiu seu caminho, mas volta e meia tocam juntos. Esse disco vem depois de um bom hiato de 10 anos e nasceu de um encontro dos três na Austrália natal. Totalmente instrumental, é uma das melhores surpresas do ano e surgiu naturalmente, entre músicos que tocam juntos há décadas. Segundo Ellis, numa tradução livre: “a ideia era fazer como aqueles discos da Impulse! em que os caras chegam do nada e começam a tocar pra caralho” (Impulse! é uma gravadora de jazz famosa, de John Coltrane e outros grandes do jazz, e a maioria dos discos era gravada em um take só).
As músicas têm o nome do disco, são numeradas de um a sete e, apesar de instrumentais, não enchem o saco e não há exagero virtuosístico algum. Soa como um grande disco de jazz, mas sem ser jazz. É como Miles Davis uma vez falou: importam mais as notas que você não toca do que aquelas que você toca.
All Born Screaming, St. Vincent
Se eu pudesse escolher um único disco como melhor do ano seria esse, mas os Dirty Three estragaram meus planos - daí o empate. Escolha o seu, mas dou uma dica: esse aqui é mais pop, o outro mais cabeçudão, mas ambos valem muito.
Anne Clark sempre entrega, mas All Born Screaming é excepcional: conciso, variado, ótima sequência de músicas e nem um segundo de exagero. É o mais próximo que existe hoje de um grande disco de David Bowie ou dos Talking Heads, referências máximas de St. Vincent, especialmente na faixa Violent Times. Visualmente também ela entende da coisa: olha o clip aí embaixo. Disco perfeito, que nem a participação de David Grohl em Broken Man consegue estragar. Para ouvir no repeat, sem cansar.
E se quiser pode alternar com a versão em espanhol. Sim, ela gravou uma segunda versão completa do disco com todas as músicas em espanhol e eu não havia entendido o motivo - foi só para comemorar a formatura no Berlitz ou TCC do Instituto Cervantes? Mas depois soube que é em homenagem ao público hispanohablante que ela adora.
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CHROMAKOPIA, Tyler, the Creator
Não encontrei onde encaixar o disco novo de Tyler, the Creator. Mas Tyler Gregory Okonma é, junto com St. Vincent, um dos criadores mais completos na música hoje, com total domínio audiovisual. Cria e dirige seus vídeos, tem ideias fora do engessado padrão comercial e tem voz ativa em tudo, desde a produção do disco até o styling de palco ou vídeo.
Se há uma expressão para definir seu disco é “all over the place” - o que pode ser bom ou ruim. Ambicioso, Tyler junta de tudo: melodias bem no estilo Beach Boys, Beats e hip hop de tudo quanto é jeito, Gospel, R&B, Rock’n'Roll original, funk, 80s, disco, guitarras de Prince, Stevie Wonder da melhor fase, sons aleatórios e samples bem escolhidos. A música Noid, do vídeo abaixo, desenterra um sample genial da banda Ngozi Family, Zamrock puro (o rock psicodélico da Zâmbia dos anos 1970). E os vídeos do disco (como esse aí embaixo) são brilhantes e concebidos e dirigidos por ele. Ainda não entendi tudo e não me decidi se é um daqueles excessos que depois o próprio autor desconsidera ou se vai ser muito influente daqui a uns anos, tipo um Songs in the Key of Life.
Aqui jazz.
Sou contra estigmatizar e segregar. Durante anos, foi assim que a indústria musical funcionou. Mas achei melhor deixar jazz em seu próprio canto; no meio de tantos discos de música pop, é grande o risco de algo mais instrumental e menos imediato para a maioria das pessoas passar despercebido. Inclusive, o primeiro artista que cito é inclassificável e jogam seu nome no jazz só para ter um rótulo reconhecível. Da mesma forma, os outros artistas que coloco aqui usam o jazz como base, mas trazem muito mais influências na construção musical. Prefiro pecar pelo excesso do que pela falta.
Antes, um disclaimer importante: no 50best restaurants, estabeleceram uma regra: quem chega ao primeiro lugar vira Hors-concours. Então vou adotar essa mesma ideia para Kamasi Washington, que lançou um grande disco esse ano, Fearless Movement - porém, não muito diferente dos discos anteriores, que já eram ótimos e até mais inovadores do que esse. É uma grande obra que vai sendo construída aos poucos, mas todos os “tijolos” já estão lá - então dessa vez eu pulo o Compadre Washington e deixo para falar dele de novo no futuro.
Vamos começar sem ordem definida, com os discos de jazz que mais gostei esse ano:
Pra você, Ilza, Hermeto Pascoal
O homem que já fez um disco inteiro para Miles Davis lança disco novo. E é regra entrar em qualquer lista (minha) dos melhores. Esse é em homenagem a Ilza, mulher de Hermeto que faleceu em 2000. O cabra tem 87 anos e, parafraseando o título de um de seus discos clássicos, continua a fazer música livre.
The Way Out of Easy, Jeff Parker
Jeff Parker toca guitarra na banda instrumental Tortoise e, com exceção de uns poucos minutos no xilofone em uma das músicas, é o único da banda que não troca de instrumento durante a maior parte do show. Sempre sentado, é talvez a referência para os outros membros da banda: uma constante que sempre vai ancorar as músicas, não importam os caminhos que cada composição siga. Numa metáfora futebolística, deve ser um bom camisa 8, organizando a transição do jogo da defesa para o ataque. Aqui Parker junta uma grande banda que vai do Miles Davis no final dos 1960, passa por minimalismo e repetição, incorpora um Baden Powell rápido, volta ao jazz puro. Prova de que ainda tem muito a se fazer dentro da tradição.
Y’Y, Amaro Freitas
Jeff Parker tá em todas: além de seu disco solo e de tocar no Tortoise e em mais centenas de bandas de Chicago, arranjou tempo para participar do disco do pianista recifense Amaro Freitas. Mar de Cirandeiras, parceria dos dois, é uma das melhores músicas do ano. Amaro junta um monte de convidados (entre eles o saxofonista Shabaka Hutchings, do Sons of Kemet, na faixa-título) e tem total domínio de onde quer chegar: seu piano é o eixo em torno do qual suas músicas vão se desenvolvendo. Amaro é talvez a maior revelação da música brasileira em muito tempo.
Endlessness, Nala Sinephro
Galera (reduzida, claro) vê uma harpa e já pensa em Alice Coltrane. Mas aqui a belga-caribenha Nala Sinephro escapa totalmente de qualquer clichê e estigmatização. Seria fácil chamar de Spiritual Jazz - mas Nala vai além e sabe como usar sintetizadores e a música eletrônica para criar tensão em músicas que são, em uma primeira audição, bem contemplativas. Não é à toa que grava pela Warp, gravadora de música eletrônica avant-garde bem legal, que tem artistas como Autechre e Boards of Canada no seu catálogo.