Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Hoje um post num dia diferente: aproveitei para testar outro dia de envio. Mas na sexta que vem volta o dia original e tem bastante coisa: vou falar sobre a retomada da vida na rua - saímos mais pela cidade, voltamos a trilhar velhos caminhos, agora já vacinados, com menos receio e sem tanta preocupação de estarmos na mira da sanha genocida do governo.

Miles.
Era uma ocasião histórica. Pela primeira vez, Miles Davis, “o pitonista de renome internacional", como os jornais o denominavam na época, viria ao Brasil.
1974. Mais um general havia sido democraticamente escolhido pelo alto comando das Forças Armadas para a presidência do Brasil: Ernesto Geisel tomou posse em 15 de março. No ano anterior, o Milagre Econômico do regime autoritário havia feito o PIB brasileiro crescer 14%, índice comparável aos melhores anos da economia chinesa nos anos 2000. Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, embarcava para ser embaixador em Paris, após notáveis serviços prestados ao regime. Em São Paulo, terra natal do "Gordo” (apelido carinhoso do ex-ministro), os donos do dinheiro animavam-se para mais um ano de vacas tão robustas quanto ele - no Natal anterior, o lado nobre da Rua Augusta e as ruas paralelas, tão endinheiradas quanto, tiveram suas calçadas acarpetadas, para comemorar mais um ano de bonança.
A vinda de um grande nome do jazz fez quatrocentões, ricos em geral e prototípicos Faria Limers - então ainda concentrados na Avenida Paulista - terem orgulho da cosmopolita metrópole e garantirem seus ingressos. O show era em lugar nobre, o Theatro Municipal. Prepararam-se para a ocasião: senhores de ternos, senhoras de roupas bem formais e elegantes, para ver aquele que havia sido eleito um dos homens mais bem vestidos do mundo nos anos 1950 e 1960.
Mas a plateia que ocupou os assentos mais caros - custavam 100 cruzeiros na época, ou atuais 85 dólares - não devia saber muito bem quais direções o som de Miles havia tomado na última década.
E era tudo bem diferente do que se imaginava: Luis Fernando Veríssimo falou, anos depois, "Parei de ouvir Miles Davis quando ele começou a usar sandálias". Sacanagem suprema - Miles era bem estiloso, como provam as fotos da época. Só não era o que queriam que fosse. Aos 48 anos, era bem mais contemporâneo e antenado do que os tiozões que o conheciam ainda do tempo do Bebop.
O septeto que aportou no Brasil trazia na bagagem pedais de distorção, pilhas e pilhas de amplificadores, guitarras e teclados elétricos, set de bateria de rock. A fase acústica havia ficado para trás desde o disco Nefertiti, de 1967. A partir daí, Miles realizava mutações mais rápidas do que se podia acompanhar, trocando músicos, adicionando mais gente, passando o som de seu trompete por um pedal de distorção; era uma grande banda de funk-jazz-minimalista-eletrônica, influenciada por James Brown, Sly and the Family Stone, Stockhausen, Afrobeat e Jimi Hendrix. Os funks colossais de 2 acordes, distorção e grooves longos eram tudo aquilo que a maior parte do público menos esperava.
Em alguns minutos, começou um constante e ruidoso êxodo a partir das poltronas mais bem posicionadas do Municipal. Enquanto os bem vestidos e irritados casais mais velhos saíam batendo o pé e bufando de raiva, com a microfonia das pilhas de Marshalls ecoando pelos elegantes corredores, o público jovem, vestido como os 7 caras em cima do palco, ocupava os espaços abandonados pela geração mais velha e avançava por entre as cadeiras das galerias, para chegar mais perto do palco e presenciar um dos espetáculos mais radicais e iconoclastas já apresentados por um músico da estatura de Miles.
Nos dias seguintes, os jornais não perdoaram.
Como na primeira noite, Miles Davis voltará a apresentar números jazzisticamente anti-convencionais, dividindo a plateia e provocando reações distintas. Há os que aplaudem o conjunto, entusiasmados com as propostas musicais de vanguarda, e os que o condenam. Para estes, o espetáculo de Davis desperta apenas curiosidade, visto perder-se num mero jogo formal.
- Estado de São Paulo, sexta feira, 31 de maio de 1974
Não parece ter sido uma escolha difícil para o crítico do Estadão. Como acontece sempre no bom e velho jornal dos Mesquita, a imparcialidade sempre tem lado.
Esfregar na cara dos conservadores senhores do planalto paulista sua nova direção musical, ao se recusar a ser enquadrado como música de coquetel, foi um dos últimos feitos de Miles antes de entrar em um período de reclusão, que durou até o começo dos anos 1980. Estava viciado em morfina e heroína desde o acidente que sofreu, anos antes: foi encontrado em sua Lamborghini destruída, na madrugada de NY, inconsciente, com as pernas quebradas em vários pontos e coberto de um pó branco, que depois descobriram vir do recém-comprado pacote de quase meio quilo de cocaína que havia estourado sobre ele, no impacto.
No Municipal, Miles precisou ser carregado por 2 assistentes até o palco. Tocava sempre de costas para a plateia. Talvez, por isso, tenha conseguido esconder o rosto distorcido pela dor que, segundo seus músicos, era constante nessa época, quando o efeito analgésico das drogas diminuía.
A dor intensa e a dificuldade de locomoção não impediram Miles e sua banda de detonarem pelo Centro Histórico de São Paulo, vagando nas madrugadas pelas redondezas do antigo hotel Jaraguá - que ficava no mesmo prédio em que operava o jornal do crítico que condenava a música anti-convencional de Miles. Talvez a raiva do jornalista em sua crítica tenha vindo de tentar fechar textos na madrugada enquanto, alguns andares acima, Miles, como se não houvesse amanhã, enfiava na jaca os dois pés destroçados.
Johnny.
Alfredo José da Silva começou a se virar desde cedo no que gostava, a música. Não por diletantismo, mas porque precisava mesmo pagar as contas. Filho de uma lavadeira e de um cabo do Exército, pôde ter uma boa formação artística ao cair nas graças de uma família para quem sua mãe trabalhava. Aprendeu piano clássico, ao qual adicionou o som que gostava - Nat King Cole, Gershwin, Cole Porter, Frank Sinatra arranjado por Nelson Riddle. Inspirado pela música americana que tanto gostava, e sabendo que precisava de um nome artístico, rebatizou-se Johnny Alf.
No Rio dos anos 1950, Alf não podia se dar ao luxo de escolher onde trabalhar. Vagava de bar em bar, de boate em boate. Sua fama se fez no bar do Hotel Plaza, em Copacabana. Diz Ruy Castro que o bar era tão fracassado que vivia às moscas, enquanto turistas e boêmios preferiam lugares mais hip, ali perto mesmo. Mas, para Alf, era um presente: podia tocar o que quisesse, já que ninguém estava mesmo olhando, e ainda ganhava para isso. Com o tempo, começaram a aparecer fãs que iam lá só para vê-lo. Uns moleques que mal tinham idade ou dinheiro para frequentar as boates caras da época. Entre eles, gente como Carlos Lyra, Roberto Menescal e Antônio Carlos Jobim, que o seguiam em cada lugar em que tocava. O grande baterista Milton Banana, que tocava do outro lado da rua, ia fazer jam sessions no Plaza com Alf, quando largava o trabalho, no começo da madrugada.
Mas Johnny Alf, que vinha de um lugar bem diferente do que vinham os seus fãs, sempre precisava encarar os boletos que se acumulavam, com os incertos trabalhos e constantes calotes na noite carioca. Acabou aceitando uma proposta para se mudar para São Paulo, em 1955, e tocar na Baiúca, uma boate recém-aberta na Major Sertório e que havia acabado de se mudar para a Praça Roosevelt, então ponto nobre em São Paulo. Alf virou o músico residente por mais de uma década. E sua ausência do Rio, no período em que a Bossa Nova decolou, talvez tenha sido o motivo de ele ser bem pouco conhecido como um dos pilares do estilo.
Gay “discreto", como diziam na época (e ainda dizem, nesse país tropical abençoado por Deus), Johnny Alf era modesto e ficava sempre no segundo plano, feliz por poder viver de sua música, mesmo que ganhasse pouco. Conseguiram arrancá-lo do exílio paulistano para tocar em um dos primeiros shows identificados como da Bossa Nova, na Faculdade de Arquitetura, na Praia Vermelha. Tímido, e sem nunca ter tocado para uma plateia tão grande, Alf bebeu durante toda a ponte aérea. Depois, ainda bebeu mais um pouco após chegar ao Rio, ao ponto de terem de colocá-lo embaixo do chuveiro da Atlética da faculdade para se aprumar. Ainda assim, subiu mais pra lá do que pra cá ao palco da Arquitetura.
Voltou para seu emprego em São Paulo, discretamente, sem se preocupar com os louros que mereceria, por um estilo musical que virava um dos maiores sucessos da época. Sarah Vaughan cantou com ele na Baiúca e o convidou a ir com ela para os EUA - Alfredo José da Silva desconversou e nunca foi, assustado com a possiblidade de ter de enfrentar plateias maiores do que as da boate em que se apresentava toda semana.
Alf seguiu com sua vida paulistana quase anônima. Nas horas vagas, fazia um freela e tocava com amigos no Cave, na Rua da Consolação, perto da Baiúca, onde era o pianista residente. Foi nessa boate que o poeta e diplomata Vinícius de Moraes decidiu matar umas horas antes de voltar ao Rio, na madrugada, de táxi - pé de cana que era, pensou em beber por horas e depois dormir no balanço do carro, pela Dutra.
Ao entrar na boate, foi reconhecido por - oh, que surpresa - uns bacanas paulistanos, que o chamaram para a mesa em que estavam. Em altos brados, conversavam sobre os dividendos da Bolsa e tomavam uísque bom, sem ligar a mínima para o conjunto que tocava.
Vinícius ouviu um piano elegante, bem familiar, mas que jamais imaginaria encontrar ali. Foi até o palco e reconheceu Alf, discretamente atrás do instrumento, tocando anonimamente com alguns outros músicos. Conversou num intervalo da música com o amigo por breves minutos e voltou à mesa, a tempo de ouvir um dos Faria Limers prototípicos reclamar que Vinicius havia sido indelicado ao abandonar a mesa e ir falar com aquele músico que “não tocava coisa com coisa e atrapalhava a conversa".
Vinicius se levantou, sem olhar para trás, foi até o palco e falou em voz alta as imortais palavras, que o seguiram por décadas:
"Meu irmãozinho, pegue a sua malinha e se mande para o Rio, porque São Paulo é o túmulo do samba.”
Anos depois, Alf continuava tocando onde podia ganhar um troco, sem qualquer ressentimento por não estar no mesmo pedestal que seus fãs declarados, todos aclamados com a Bossa Nova que ele ajudou a criar.
Nos anos 1990, a Baiúca, onde havia tocado durante muito tempo, mudou-se da decadente Roosevelt para um novo endereço - no Itaim, pertinho do novo coração financeiro de São Paulo, a Avenida Faria Lima, que era para onde havia ido o público endinheirado, que permitia que lugares assim pudessem contratar gente como Johnny Alf - por bem menos do que valia, mas por bem mais do que ele conseguiria ganhar em outros lugares.
João.
Em 1999, a auto-denominada maior casa de espetáculos da América Latina iria abrir as portas com um grande coquetel para convidados VIP e um show histórico com dois baianos famosos: Caetano Veloso e João Gilberto. Na outra ponta do triângulo havia outro baiano, que era um dos sócios da casa. Publicitário, tinha sido dele a ideia de juntar esses dois grandes nomes da música brasileira.
Em sua matreirice de anos e anos de bons serviços prestados, Caetano percebeu, na hora em que fez a passagem de som, que João iria reclamar. Talvez até saísse sem se apresentar, cioso que era das melhores condições técnicas para seus shows. Caetano, em toda a sua baianidade nagô, resolveu dar um jeito na situação e, segundo dizem, falou para João que não precisava passar o som.
Após horas de garçons passando de um lado a outro, João Gilberto e Caetano Veloso sentaram-se em banquinhos no palco, para a primeira música em conjunto.
Nota impertinente: vi dois shows de João Gilberto na vida - em ambos, a fama que o acompanhava desde que deu alguns chiliques ao vivo na Rede Globo não se materializou. Apesar do seu proverbial atraso para subir ao palco ter ocorrido nas duas ocasiões, tocou por muito tempo, atendeu a pedidos, brincou com a plateia, sorriu. Tudo isso faz pensar que, talvez, o bode pessoal de alguns incomodados tenha lhe imputado uma fama que não é justa ou, ainda, que João estava simplesmente tirando o recalque em cima de quem merece ser achincalhado. Prefiro pensar que é a segunda opção.
Mas João não queria ficar mudo e sussurrou essa queixa: um eco vinha das primeiras fileiras do auditório. E não só isso - o ar condicionado era forte demais e mal-direcionado, bem em cima dele.
A plateia, acostumada a conduzir e não a ser conduzida, começou a vaiar João Gilberto. Sem perder a deixa, João mandou para cima dos poucos e bons:
“Vaia de bêbado não vale"
E mostrou a língua.
Das poltronas, mais revolta. Dizem que Roberto Justus, indignado, gritava: “Quem esse João Gilberto pensa que é?”
Caetano tentava botar panos quentes. Diplomaticamente, falou algo como “Quem vaia João não tem lugar no meu coração". Não adiantou o caô: João Gilberto continuava a disparar contra a plateia, a casa de shows, o universo.
Nos dias seguintes, o terceiro baiano dessa história, sócio da casa, relatou que ficou uma semana de cama, devido ao stress que sofreu com o barraco de João Gilberto. Penso que, talvez, nessa semana não tenha havido nenhum caso de assédio moral nas empresas dele, tudo graças a um velho baiano. Talvez. Quem pode saber? Mas, se for isso, mais um ponto para João.
Para saber mais:
The Heat Warps, site que compila em ordem cronológica todos os shows da fase elétrica de Miles, de 1969 a 1975. Os shows de São Paulo ainda não apareceram. Mas tem muita coisa para descobrir lá e vale bem a pena.
Miles veio ao Brasil após dois álbuns de estúdio bem controversos, On the Corner, de 1972, e Get Up with It, de 1974. O primeiro ganhou nota zero da revista Downbeat na época do lançamento, foi atacado de todas as formas e, durante anos, foi considerado um dos piores discos da história. Dos anos 1990 para cá, foi redescoberto e, hoje, é considerado um dos melhores de Miles. Eu, particularmente, coloco entre os 10 que mais gosto. Essa matéria conta bem como o álbum foi recebido na época.
Deu no NYTimes uma boa matéria, que usa muita coisa de Ruy Castro, o primeiro a chamar a atenção para como Johnny Alf foi importante para a música brasileira e, principalmente, para a Bossa Nova.
Ruy Castro escreve fácil sobre tudo aquilo que ele gosta - basicamente, música, Rio de Janeiro e Flamengo. Como Machado de Assis falava, em Esaú e Jacó: "…O mundo começa aqui no cais da Glória ou na Rua do Ouvidor e acaba no Cemitério de São João Batista. Ouço que há uns mares tenebrosos para os lados da Ponta do Caju, mas eu sou um velho incrédulo.”
O livro dele sobre a Bossa Nova, Chega de Saudade, é uma das leituras mais interessantes sobre música que alguém que não é acadêmico pode querer.
A música que Tom Zé, outro baiano, fez sobre a baixaria toda da briga de João Gilberto com aquela plateia que entende pouco de música, menos ainda de humanidade e que, com certeza, apertou 17 na urna: