Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
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Quando comecei a rodar esse locked groove, imaginava ter sempre 2 ou 3 textos prontos e ir soltando aos poucos, sem pressa.
E tenho mesmo alguns de reserva, assim como também ideias para outros. Mas tem horas em que você sente que não é o momento ainda para determinado texto ou ideia; e não consegue avançar muito, mesmo que seja só uma leve adaptação ou uma revisão.
Aí apareceu algo que nem estava muito no meu radar. Sabia que uma série da Netflix baseada em uma das HQs que eu mais gosto estava em produção. Mas não sabia que estava tão próxima de sair. No próximo dia 5, estreia mundial.
Como já falei antes, não faço crítica cultural aqui. Mas é uma série que foi tão importante para mim, na vida, que resolvi aproveitar o gancho. Boa leitura, até a próxima semana.
P.S.: O título vem da música de Roy Orbison, In Dreams, de 1963, usada magistralmente no filme Veludo Azul, de David Lynch. E que não escapou ao radar de Neil Gaiman, o grande escritor de Sandman e enciclopédia ambulante da cultura erudita e da cultura pop.
6 de junho de 1916, Wych Cross, Inglaterra.
Um senhor idoso chega a uma mansão vitoriana nos arredores de Londres, com um livro ancestral, Magdalene Grimoire, um mítico tomo de magia usado para evocar espíritos e entidades desde a Idade Média. Entrega-o a Roderick Burgess, um mago e grande picareta inspirado em Aleister Crowley, o ocultista britânico. De posse do Grimoire, Burgess faz um ritual de evocação com o objetivo de capturar a Morte. Erra o alvo. Termina por aprisionar outra entidade: Sonho.
São as primeiras cenas do primeiro número de Sandman, de Neil Gaiman.
Resumo rápido, para quem não sabe do que se trata: Sandman, ou Sonho, é um dos 7 perpétuos - são arquétipos, personificações antropomórficas de forças naturais como Morte, Delírio, Destino, Desejo (em inglês, todos os nomes começam com D). Após ser capturado por Burgess e encarcerado por mais de 70 anos, Sonho liberta-se e tenta reconstruir o Mundo do Sonhar, que foi totalmente desarranjado por sua ausência durante décadas. É uma série de fantasia que mistura mitologias, referências culturais, literatura.
Não sei. Talvez nesse resumo eu não tenha feito justiça ao que a série de Neil Gaiman realmente é; e se eu disser apenas que é uma das melhores obras já feitas nas Histórias em Quadrinhos?
Essa sequência de quadrinhos que virou clássica é a primeira que li, em 1989, assim que cheguei em casa, depois de ter passado na banca do centro - um hábito semanal das sextas-feiras.
Sim, naquele século, ainda compravam-se revistas em bancas. (Revistas? Bancas? O que é isso?)
Histórias em quadrinhos eram um hábito recente para mim. Nessa época, não havia ainda o mercado multimilionário que existe hoje, de adaptações para o cinema ou TV, jogos eletrônicos etc. Era uma subcultura bem restrita e HQ, para a maioria das pessoas, não era mais do que um bando de super-heróis que cheiravam a naftalina e personagens do Maurício de Sousa ou da Disney.
Na época da entediante 7ª série, eu passava nerdíssimas tardes lendo HQ ou ouvindo música. Assistia filmes ainda em VHS, retirados em locadoras - outra invenção do final do século XX que virou pó. Era um portal que me permitia evitar ao máximo o contato com a fascista cidade do interior e pensar em como poderia ser a vida fora dali.
Sandman apareceu numa época em que eu comecei a ler algumas das obras mais importantes de HQ mainstream da história. Em poucos anos, saíram Cavaleiro das Trevas, Watchmen, Elektra, V de Vingança e outros que viraram clássicos. Cheguei a tentar ler os super-heróis que faziam sucesso na época - mas as histórias eram tão ruins e toscas, se comparadas a essas, que desisti.
Sandman e Neil Gaiman ajudaram a abrir para mim todo um universo de referências e informações. Típico de quando não havia ainda internet: você aprendia e buscava informação sempre por essa teia de leituras e referências cruzadas. Dava trabalho, mas a recompensa valia.
Cada informação levava a novos questionamentos e você descobria cada vez mais coisa nova.
Quem era a inspiração estilística para Sonho, o personagem título - Blixa Bargeld, Peter Murphy? Fiddler's Green era mesmo G. K. Chesterton? E quem era Chesterton? Qual a relação entre as duas peças de Shakespeare que Gaiman usa na série? Bowie era a inspiração para Lucifer? E a biblioteca do Sonhar, que tinha livros que somente foram sonhados, e nunca escritos - teria alguma informação real naquilo?
Fui levado a muita coisa em literatura por conta de Sandman, aprendi sobre filmes, bandas, fatos históricos. Aprendi também sobre outras HQs: o genial Love and Rockets, que depois passou a ser minha série preferida, eu descobri por uma entrevista que Gaiman fez com os irmãos Hernandez. A partir daí, fui entrando cada vez mais nos quadrinhos underground e não-americanos e deixei para trás as grandes editoras de super-heróis (pelo menos a DC Comics, para seu mérito eterno, deu liberdade criativa total para Gaiman, como já havia feito com outros grandes como Alan Moore e Frank Miller).
Quadrinhos, música, filmes, literatura, arte - era uma educação autodidata em si. E as capas de Dave McKean são, também, um capítulo à parte: influenciaram muita gente e entendi muita coisa de arte e design por meio delas (e até hoje copio descaradamente soluções que ele dava para muitas artes).
Sandman tinha também um papel civilizatório, além da história e da arte: falava de alteridade, identidade de gênero, racismo, preconceito.
Sempre foi multicultural, sempre teve respeito por culturas diferentes e evitava apropriações e simplificações.
Li os 75 números da série, que durou de 1989 a 1996. Gaiman decidiu terminar a série quando achou que deveria, sem se curvar ao crescente sucesso que fazia - chegou a ser a 3ª série de quadrinhos mais vendida dos Estados Unidos. Gente como Norman Mailer elogiava. Virou referência cultural e é republicada, em formato encadernado, desde então.
Vai virar série, depois de anos e anos de desenvolvimento. Em 5 de agosto estreia no Netflix.
Não entendi ainda se todo o poder narrativo da série original pôde ser transplantado para a adaptação. Mas o trailer promete e Neil Gaiman acompanhou de perto. Ruim não deve ser.
Li Sandman pela última vez muitos anos atrás. Durante os anos 2000, comprei os encadernados que saíram pela editora Conrad, depois da série original ter sido publicada em formato de revistas durante os anos 1990. Tenho duas vezes a série toda: na forma original e nos encadernados.
Gaiman virou celebridade no Brasil. Suas sessões de autógrafos formavam filas de virar quarteirão.
E Gaiman virou meme nos últimos anos. No Twitter, ficou famosa sua expressão “Oh, Brazil". Durante anos, era sempre de forma elogiosa e mostrava seu carinho pelo país. De uns tempos para cá, virou também um lamento, talvez inconformado pelo país que ele aprendeu a amar ter virado por uma curva errada no caminho. Uma das vezes foi quando a ex-ministra Damares usou uma imagem de um livro de Gaiman para ilustrar um post alucinado sobre o lesbianismo da princesa Frozen da Disney; outra foi quando um brasileiro tentou “alertá-lo” que a série da Netflix estava montando um cast multirracial. Essa bem-intencionada alma só podia mesmo vir de uma das capitais do fascismo tropical - Curitiba, claro.
Entendo a triste surpresa de Gaiman: nem na mais absurda distopia um país poderia regredir tanto quanto o Brasil logrou fazer, em poucos anos.
Um país bem diferente do que Gaiman conheceu, como mostra a introdução escrita por ele a uma edição encadernada brasileira dos anos 2000:
"Suspeito que uma das razões pelas quais Sandman tem sido tão popular no Brasil ao longo dos anos é que os brasileiros compreendem a confluência - eles entendem que muitas correntes de arte e cultura e de crenças podem se unir e criar algo vivo e vital. Sandman sempre teve tudo a ver com confluência".
Li esse trecho novamente hoje.
E fiquei pensando que talvez isso ainda exista no Brasil. Que essa bad trip em que estamos agora seja apenas um surto passageiro; e que, em breve, voltaremos ao normal, como país.
Talvez esteja chegando a hora de sair desse pesadelo.
It's too bad that all these things
Can only happen in my dreams
Only in dreams
In beautiful dreamsIn dreams, Roy Orbison, 1963
Para terminar, fique aí com uma das melhores cenas do cinema, cortesia de David Lynch, influência direta para Neil Gaiman.
Quem teve esse papel de “índice” para o que existia fora da cidade de 20.000 habitantes foram os livros de Sidney Sheldon. Descobri um deles aleatoriamente na biblioteca pública, e acabei lendo todos que algum adorável ser comprava e doava para aquele decrépito casarão onde eu ia fazer pesquisas na enciclopédia Barsa vermelha, que em casa quem tinha eram só os meninos ricos, onde serviram apenas para enfeitar rebuscadas estantes de jacarandá.
Foi um susto fascinante descobrir que existia todo aquele mundo de cidades e culturas e lugares no mundo ali fora. Foi o que me trouxe a BH.
Pra quem não viveu em períodos pré internet fica difícil, eu diria impossível, entender como está o mundo e o acesso à informação.