Raw, a revista gráfica para os malditos intelectuais
Quando histórias em quadrinhos ainda não eram para adultos.
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1.
Numa época em que os filmes de super-herói dominam as salas de exibição e marmanjos fazem fila para ver gente de collant se pegando em lutas confusas e altamente inverossímeis, parece estranho que, num passado relativamente recente, as Histórias em Quadrinhos tenham sido uma subcultura pouco falada.
Quando cheguei nesse rolê, super-heróis eram ultrapassados e sobreviviam num nicho de nerds fãs adolescentes. As editoras de HQs estavam numa crise de dar dó, perdendo público para outros tipos de entretenimento. Nenhum adulto dava muita bola e HQ era considerada coisa de criança ou de adolescente desajustado. Eu mesmo nunca havia gostado de super-heróis e nunca li muito. Mas nesse final dos anos 1980 o panorama já começava a mudar, com novos autores que tiveram carta branca para fazer o que quisessem simplesmente porque, quando eles chegaram nos quadrinhos mainstream com umas ideias bem subversivas, quem estava no comando só mandou um desanimado “Who cares?”
Passei a ler quadrinhos com autores como Frank Miller (Cavaleiro das Trevas), Alan Moore (Watchmen) e uma novíssima geração que incluía Neil Gaiman (Sandman) e Grant Morrison (Doom Patrol e outras loucuras). Na época a lábia das grandes editoras vendia que esses autores revolucionários trariam um pouco da “sensibilidade européia” e da ousadia do underground para o tiro, porrada e bomba das previsíveis HQs do mainstream. De fato, as melhores histórias da época foram deles e quase se pode falar em HQs autorais - mesmo que os personagens fossem, na maior parte das vezes, os surrados super-heróis.
A revitalização das HQs mainstream por autores que criavam histórias muito mais complexas e inovadoras do que a média da época permitiu que a indústria dos quadrinhos voltasse a ser relevante na cultura pop e a entrar na mira dos executivos do entretenimento - por exemplo, dos tubarões da Warner, dona da DC Comics, editora de Superman, Batman e outros e que foi ponta-de-lança da renovação das HQs nos anos 1980.
Logo veio o primeiro Batman (1989), de Tim Burton, que deu caminhões de dinheiro para a Warner. Com super-heróis ganhando uma aura ‘cool’ de novo, não demorou muito para rolar uma retomada das HQs bestas e entediantes de super-herói lutando com supervilão, recuperando os personagens sedimentados há décadas nas mentes do público. Voltavam as histórias simples como sempre foram, mas com um verniz de ‘profundidade’, o que resultou nesses filmes que hoje monopolizam as salas de cinema e fazem a cabeça do público médio. Ainda volto nesse tema, que rende muita conversa.
Não entrei na onda de super-heróis e meu interesse acabou assim que esses autores migraram do tema, lá na primeira metade dos anos noventa. O que sobrou disso foi meu interesse pela chamada Arte Sequencial (ó que nome lindo para Histórias em Quadrinhos). Comecei a procurar novos autores, em geral os alternativos dos EUA e alguns do mercado europeu. Não liguei muito para Vingadores ou semelhantes - inclusive, nunca entendi exatamente do que eles se vingavam. Até hoje sigo nessa ignorância abençoada.
Fui atrás de muita coisa nas HQs que realmente importavam: Love&Rockets e a editora Fantagraphics, os britânicos todos, a editora Drawn&Quarterly, autores como
Ok, nada mais de namedropping aqui. Já entendemos. 😕
Não lembro exatamente como fazíamos para encontrar informação nos tempos antes da internet (tipo, lá pelos idos da Idade Média), mas é fato que conseguíamos. Minto. Na verdade, até sei que uma das formas era bem das antigas - uma boa e velha biblioteca.
2.
O Centro Cultural São Paulo (carinhosamente CCSP daqui para a frente) era tudo o que eu poderia querer. Recém-chegado a São Paulo, com dinheiro contado no bolso e algum tempo livre, eu estava naquele pequeno intervalo entre o começo da faculdade e ter que começar a trabalhar de verdade. Uma época em que você ainda não pensa nos boletos que chegam. Eu morava num bairro mais ou menos central, ao lado da faculdade. Duas estações de metrô ou quatro paradas de ônibus e eu já estava no CCSP.
Depois descobri que o secretário de cultura responsável pela criação do CCSP era Mário Chamie, poeta reconhecido como criador da Poesia Práxis e professor que dava aula para mim na faculdade.
Uma história boa: na inauguração do CCSP, com tudo feito a toque de caixa para ajudar na eleição seguinte, um repórter perguntou a Chamie sobre uma insistente goteira que teimava em roubar a cena, no meio da laje do espaço expositivo. Chamie deu de ombros e falava sobre os planos futuros para o CCSP. O repórter insistiu, sempre voltando à goteira. Em um momento, Chamie mudou o discurso e começou a falar nas entrevistas que todos estavam ali para inaugurar a goteira mais bem planejada da cidade, um feito de arquitetura que entraria para a história. Obviamente, virou manchete e a repercussão nos jornais durou dias e dias, até pedirem a cabeça do secretário de cultura. Esse senhorzinho de uns 60 e poucos anos, que dava aula de terno completo e bigode dos anos 1940, contava essa história com um sorriso matreiro. Muitos que assistiam às aulas não entendiam as ironias que apareciam no meio das densas discussões sobre semiótica e teoria da comunicação - na verdade, sequer entendiam do que se tratavam as aulas. Mas Chamie era acessível e sempre conversava de igual para igual com os alunos, fora da sala. E tinha um conhecimento surpreendente sobre Talking Heads, veja só.
Onde eu estava mesmo? Ah, na porta do Centro Cultural São Paulo, na rua Vergueiro. Inaugurado em 1982, era algo que eu nunca havia visto antes: bibliotecas, discoteca, jardins, terraço, salas de cinema, shows em uns anfiteatros pequenos, auditórios para peças de teatro, espaço de exposições e uma arquitetura sensacional, de concreto e ferro, com grandes vãos livres e amplos espaços abertos. E o melhor: quase tudo de graça ou por um preço bem razoável.
Frequentei muito a discoteca que tinha um imenso acervo em vinil, batizada em homenagem a Oneida Alvarenga (que hoje ninguém sabe quem é, mas foi uma das grandes musicólogas do Brasil e colaboradora importante de Mário de Andrade). Eram tempos pré-streaming e dinheiro para discos era curto. Tinha de tudo, desde gravações de rituais indígenas até um disco do Velvet Underground do qual eu só tinha ouvido falar até então.
Li trechos de vários autores beat na biblioteca, outros clássicos e muita coisa de referência que dava para garimpar naqueles móveis de aço, com pequenas gavetas cheias de fichas catalográficas. Mas o que me chamou a atenção mesmo foi algo que na época estava aos poucos deixando de ser uma cultura marginal: havia uma gibiteca no CCSP, batizada com o nome de Henfil, com um acervo gigante e variado de revistas em quadrinhos, fanzines e até livros teóricos.
Na Gibiteca Henfil li muita coisa que interessava e que não tinha em casa e sequer conseguiria comprar em algum lugar. Explorei o acervo, li coisa antiga, li alguns novos que sempre chegavam lá, numa constante atualização dos títulos à disposição. E tudo sem gastar um centavo. Espaço público é assim.
E, um dia, encontrei uma revista que conhecia de nome, mas não sabia bem do que tratava.
Depois descobri que era um Santo Graal dos quadrinhos.
3.
A revista RAW, uma antologia de histórias em quadrinhos, foi criada em 1980 por Art Spiegelman e Françoise Mouly, em Nova York. Ele era cartunista underground por vocação e professor na School of Visual Arts por motivo de…boletos. Ela era artista visual por vocação e colorista de HQs da Marvel por motivo de…boletos.
Hoje são nomes bem reconhecidos no mundo das HQs e até mesmo fora dele: Art Spiegelman lançou Maus (1986), em que conta a história de seu pai como sobrevivente do Holocausto, na II Guerra Mundial e foi a primeira e única história em quadrinhos a ganhar o prestigiado prêmio Pulitzer; Françoise Mouly, por sua vez, é diretora de arte da revista New Yorker. Mas quando criaram RAW a coisa era bem diferente e fizeram na porra-louquice - eles faziam de tudo, com equipe reduzida, e parças cediam histórias para a publicação abrindo mão dos royalties, só para ajudar mesmo. Uma das edições tinha uma capa handmade: algumas capas com layouts e ilustrações diferentes foram impressas e logo em seguida rasgadas por um mutirão de amigos; logo em seguida eram remontadas, com pedaços de diferentes capas sendo ‘costurados’ de forma aletatória. Praticamente uma obra cubista.
Revelou muita gente boa dos quadrinhos e foi ganhando relevância cada vez maior. Usava diferentes métodos de impressão, diferentes tipos de papel e era impressa em formato grande, diferente de tudo do mercado. Dava total liberdade aos colaboradores e publicava artistas estrangeiros até então pouco conhecidos nos EUA. Durou em períodos intermitentes até 1991 e influenciou muita gente. Era Punk total, no sentido do Do it yourself. Spiegelman e Mouly começaram a revista, inclusive, no mesmo espírito do punk original - queriam uma revista em que pudessem ler histórias que estivessem a fim de ler ou que gostassem de fazer, em oposição ao mercado massificado dos super-heróis.
RAW era subversiva, confrontacional e irônica, bem o oposto daquele trololó todo da HQ mainstream. A tagline já indicava tudo e mudava a cada edição - o título lá em cima, inclusive, é de um dos números da RAW.
Olha só que fofuras, em tradução livre:
The Graphix Magazine That Lost Its Faith In Nihilism (a revista gráfica que perdeu a fé no Niilismo)
The Graphix Magazine That Overestimates The Taste of The American Public (a revista gráfica que superestima o gosto do público americano)
High Culture for Low Brows (alta cultura para ignorantes)
The Graphix Magazine of Postponed Suicides (a revista gráfica dos suicídios adiados)
Ops, essa última aqui é treta. A mãe de Spiegelman, sobrevivente de Auschwitz, teve depressão por anos depois da II Guerra Mundial até o suicídio, no começo dos anos 1970. Spiegelman teve um surto psicótico e foi internado nessa época, depois de seu pai dar a entender que ter um filho cabeludo, maconheiro e quadrinista underground desempregado havia deixado a sra. Spiegelman deprimida. 🫶
E por que estou contando tudo isso sobre uma revista que não existe mais há décadas? Porque naquela Gibiteca do CCSP encontrei exatamente o número 1 da RAW. Edição histórica e rara, que hoje em dia alcança valores acima de 5 mil dólares. Conhecia a revista só de ouvir falar e nunca sequer tinha visto uma de perto. Aliás, nunca sequer tinha visto alguém que já tivesse visto uma.
Numa tarde preguiçosa e chuvosa, sentei em uma das poltronas do CCSP para ler aquele pequeno tesouro escondido.
4.
RAW não fazia parte do acervo circulante e só podia ser consultada dentro da Gibiteca. Li e reli algumas vezes sempre que ia lá. Conheci muitos artistas por meio daquela única edição (por algum motivo, a Gibiteca não tinha nenhuma outra). A própria Maus, de Spiegelman, começou a ser serializada nessa edição, antes de ser encadernada na forma que ganhou o Pulitzer (e no futuro ainda vou falar de Maus, que eu coloco no mínimo entre as 5 HQs que mais gosto).
Li grandes artistas como Joost Swarte, Charles Burns, Javier Mariscal e outros. Mas o que me chamou a atenção foi uma dupla de artistas que eu até então não conhecia. A história era em PB e tinha um estilo de filme noir, altamente estilizada, com traços que lembravam o Expressionismo alemão. Grandes massas de preto e uso inteligente do branco para contraste. Jamais havia visto algo assim. Os nomes dos autores estavam no começo da história - José Muñoz e Carlos Sampayo.
Caí numa pegadinha que muita gente caiu, como soube depois: nas HQs dos EUA o nome do escritor sempre vem primeiro, então passei um bom tempo achando que Muñoz era o roteirista. Só descobri que ele era o desenhista quando comprei, dois anos depois, a biografia em quadrinhos de Billie Holiday feita por ambos.
Durante um bom tempo, antes de descobrir a HQ sobre Billie, a história da RAW foi a única que li de Muñoz e Sampayo. A HQ era Wilcox&Conrad e se passava num inverno na Nova York de 1979. Uma história policial, noir, com o ritmo e o clima muito parecidos com os filmes policiais europeus da década, que The French Connection (1971), filme de William Fredkin, capturou bem.
José Muñoz e Carlos Sampayo eram argentinos. Haviam ido separadamente para a Europa entre 1972 e 1973 e nunca mais voltaram para a Argentina. Resolveram se empirulitar de terras portenhas quando viram que o clima político estava cada vez mais pesado - nem era ainda a ditadura militar, mas os desaparecimentos já haviam começado por conta de grupos paramilitares de direita. Conheceram-se na Convenção de Quadrinhos de Lucca em 1974 e começaram a trabalhar juntos, por anos. Muñoz conta em uma entrevista que ficou ilegalmente na Europa até 1987, quando finalmente pôde se regularizar.
Sua obra é cheia de nuances, nada maniqueísta (no que é bem diferente dos Comics dos EUA) e é bem política, mesmo quando tratam de temas policiais como Wilcox&Conrad. Sua criação mais conhecida também milita nessa área da literatura noir: Alack Sinner, um detetive novaiorquino que investiga casos em que os crimes das sarjetas se misturam com corrupção policial e até política internacional. Arte e texto se complementam de forma fluida e a narrativa quase cinematográfica de Sampayo é valorizada pelos enquadramentos de Muñoz. Tinham até um recurso Hitchcockiano recorrente: ambos apareciam no background de algum quadrinho ou até com alguma fala, sem serem identificados.
Foi minha introdução aos quadrinhos argentinos. Passei a explorar trabalhos de Breccia, Oesterheld e outros e acabei reunindo quase toda a bibliografia encadernada de Muñoz e Sampayo. Grandes apreciadores de música, fizeram biografias de Billie Holiday e Carlos Gardel, criaram muita coisa e seguiram com Alack Sinner por várias histórias. Detalhe: o personagem envelhece com o passar dos anos, algo raro nos quadrinhos.
5.
Sempre que voltava ao CCSP procurava pela edição número 1 da RAW, onde descobri tanta coisa e, especialmente, essa história clássica de Muñoz e Sampayo. Uma das minhas preferidas.
Uma vez, (talvez uns dois anos depois de ter lido a história pela primeira vez) procurei a RAW na estante da Gibiteca Henfil. Não achei. Falei com um funcionário e ele disse que devia estar com alguém, mas não havia registro de terem pegado naquele dia. Voltei de novo outro dia e nada da revista.
Nesse dia, sentei em uma das poltronas para ler alguma outra HQ que escolhi e por acaso olhei na lateral da poltrona de madeira quando fui deixar a mochila no chão. Havia um monte de adesivos redondos coloridos colados na perna da poltrona. Alguns números de catálogo bibliográfico. Saquei na hora que eram os adesivos que eu via colados nos livros e revistas, usados para inserir o dispositivo eletrônico que faria o alarme soar, caso alguém tentasse sair com alguma publicação. Entendi o que havia acontecido com a RAW. Ou, pelo menos, foi o que imaginei.
Nunca mais vi a revista, mas faz anos que não vou lá; há um bom tempo que só passo no CCSP para ver shows ou filmes. Mudei de endereço algumas vezes e não moro mais tão perto. Mas ainda quero voltar à Gibiteca Henfil e ver se realmente a RAW desapareceu de vez.
Procurei durante muito tempo a edição encadernada El Bar de Joe, de Muñoz e Sampayo, onde Wilcox&Conrad, a história que eu mais gostava, foi compilada nos anos 1980. Impossível de achar. Sempre esgotada ou a preços caros em sebos nos EUA ou Europa. Até esqueci por um tempo.
Até que em maio passado, nas estantes da boa livraria Tipos Infames de Madrid, encontrei uma nova edição encadernada, reeditada pela Salamandra Graphic. Era o último grande livro encadernado de Muñoz e Sampayo que faltava.
Assim que cheguei em casa, olhei a capa dura, folheei e vi a arte fantástica de Muñoz, com suas grandes manchas de nanquim. Fui e voltei pelas páginas. Pensei se a história era mesmo tão boa quanto eu lembrava.
Finalmente, abri na página onde começava Wilcox&Conrad.