A vida não vale nada sem lutar
Fito Páez, coerente e essencial, nesses anos selvagens em que vivemos.
Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Locked Groove completou um ano no último 11 de junho.
Tem sido uma viagem bem interessante: comecei essa newsletter para falar sobre o que eu queria, sem me preocupar com aprovações de outros, interesses comerciais, expectativas do público. Se alguém gostasse, melhor; mas, primordialmente, era para poder criar algo de forma independente, com um processo que eu pudesse controlar do começo ao fim - pesquiso, faço checagens, escrevo todos os textos, faço as artes, envio os emails, testo se tudo está funcionando, configuro o app. Os erros e enganos aqui são todos de minha responsabilidade. Da mesma forma, também assumo as eventuais omissões, simplificações grosseiras, conclusões exageradas e torcida militante.
Mas os textos parecem ter feito diferença para muitos. Já somos centenas. E que continue crescendo. Nesse novo ano, algumas novidades virão.
E, para começar, um texto novo; curto, sem muito assunto, mas que serve para aquecimento para as próximas semanas, depois dessas pequenas férias.
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Boa leitura, até mais. 😉
Intro.
Denuncie a idade agora, seja cringe e levante a mão ao responder: quem aí se lembra do tênis M2000?
E menos pessoas ainda devem lembrar do M2000 Summer Concerts - daqueles tempos em que não existia algo como o ingresso “Early birds” (os parcos ingressos que os festivais hoje em dia colocam em preço promocional só para fazer bonito e causar ansiedade), nem o terrorismo de ter que deixar um rim para comprar o ingresso sob o risco de nunca ter shows que valem a pena e ter de se contentar com sertanejos que não usam a lei Rouanet, mas enfiam as mãozinhas manicuradas no bolso do distinto público mesmo assim.
O festival M2000 era gratuito, patrocinado por essa marca de tênis que sumiu com o tempo. Acontecia nas areias de praias pelo litoral do Brasil - em São Paulo, era na praia do Boqueirão, em Santos. Era só chegar no calçadão e tentar achar um lugar na areia para ver os shows.
É verdade que não sobrava muito espaço em frente aos palcos. Era pior do que dia de sol em alta temporada, já que o grande público se acotovelava para ver os então famosos Deborah Blando, Chaka Demus & Pliers, Shabba Ranks, Gabriel, o Pensador e os headliners e maior nome à época, Mr. Big.
Quem?
Aquele mauricinho Faria Limer do Sex & The City fazendo um Ted Talk prototípico?
Não, pior: um bando de zé-ruelas do hard rock poseur que usavam laquê no cabelo, calças jeans 2 números menores e faziam sucesso com uma baladinha de trilha sonora de novela. Era como se Nirvana jamais tivesse existido e Guns'n'Roses fossem equivalentes aos Beatles, perto desses caras.
Por sorte, os shows que eu mais queria ver na época não eram exatamente os mais concorridos. Rollins Band, Lemonheads e uma então iniciante Nação Zumbi, em um dos seus primeiros shows em São Paulo.
Henry Rollins era o cara por trás da Rollins Band. Figura lendária do Black Flag, grande nome do hardcore e que, agora aposentado dos palcos, tem podcasts e programas de rádio ótimos e continua lutando contra todos os fascismos do cotidiano. No show, a banda vinha com grooves fortes e complicados que beiravam o jazz (apesar de também ter músicas que tocavam na MTV) e com Rollins numa performance histórica: uma joelhada acidental no próprio rosto o fez sangrar por mais de metade do show. Mas ele não parou e seguiu assim até o final. Altamente recomendado.
Lemonheads é a banda com a melhor relação custo-benefício que já vi na vida. Depois desse bom show gratuito nas areias da praia de Santos, vi um outro, dois anos depois, no antigo Palace. Estudante duro que era, não teria grana; mas, num golpe de sorte, encontrei uma nota de 10 reais na escadaria do metrô. Com exatos R$ 2,50 a mais (ainda tenho o ticket para provar), pude ver o show com a meia-entrada de estudante, aquela que os fachos-malhação do MBL tentam subtrair do público. Tudo bem que a banda original nem existia mais e era de fato um projeto solo do vocalista, mas foi um ótimo show. Dando praticamente por R$ 2,50.
Nação Zumbi, por sua vez, era o futuro. Depois desse, em que os pernambucanos eram ilustres desconhecidos para a maioria do público, vi logo depois um show deles no Aeroanta que me fez ter certeza de que muita coisa boa viria pela frente e que teríamos finalmente uma banda que cantava em português, ligada no que acontecia na música no resto do mundo e que tinha uma visão artística ímpar. Hoje, de todas as bandas da época, é junto com o Planet Hemp a que tem a maior folha de bons serviços prestados (em breve, conto do primeiro show que vi da banda carioca). Não viraram paródia de si próprios.
E finalmente cheguei ao assunto, após esse nariz de cera gigante.
Gosto de fazer isso. Quem manda nesse espaço aqui sou eu; fodam-se os manuais de redação da Folha e do Estadão. Até porque não sou jornalista mesmo e essas regras que fiquem para quem gosta de escrever editorial com escolha difícil e de passar pano para miliciano.
Escondido lá no meio do lineup estava um argentino magro, de cabelos compridos, que ninguém sabia muito bem como havia aparecido ali: Fito Páez. Eu não fazia muita ideia de quem era. Sabia que os Paralamas gostavam dele e faziam versões cover de músicas suas. Via sempre seus CDs nas lojas. Mas, ao mesmo tempo, não conhecia muito o som e nem sabia o que esperar. Vi um pouco e não chamou a atenção, apesar dos evidentes refrões pop e do bom ritmo do show. Fui andar pela praia e voltei depois para ver, no meio da fumaça, os velhões do Inner Circle.
Fim da história? Por alguns anos, sim.
1. Ao lado do caminho.
Em 2010, vi novamente Fito Páez, em condições bem diferentes: fechou as comemorações do bicentenário1 da Revolução de Maio, em Buenos Aires.
A essa altura, ele já havia ganhado Grammys de montão; seu disco de 1992, El Amor Despues del Amor, havia se tornado o mais vendido da história na Argentina; lançava os discos que queria; arrastava multidões para seus shows, mas fazia questão de fazer também concertos menores, sempre que possível.
Esse, em si, era gigantesco. A festa do bicentenário levou milhões de pessoas às ruas de Buenos Aires, em vários dias de comemoração na semana do 25 de maio.
Rodei pelas ruas da capital tomando vinho nacional (ótima pedida nesse país), em dias seguidos de festa, que avançavam madrugada adentro.
À época, os presidentes sul-americanos estiveram presentes em peso para o evento. De direita, talvez só houvesse Piñera, do Chile - situação que iria se inverter nos anos seguintes, com a onda conservadora no continente.
A treta da vez, em Buenos Aires, era entre a presidente Kirchner e o prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, que reinaugurou, sem a presença da presidente, o o mítico Teatro Colón (fechado por anos para reformas estruturais e grande evento do Bicentenário). Macri, o herdeiro do empresário preferido da ditadura militar, e que havia sido eleito prefeito 3 anos antes, não apareceu quando Cristina Kirchner deu início às comemorações no palco da 9 de Julho. Chávez, Morales e Lula eram alguns dos presidentes que estavam lá e foram criticados pelo mauricinho portenho, que se recusava a dividir o palco com eles.
O show de Páez foi impecável, mesmo à distância - tinha tanta gente que era impossível chegar perto até mesmo dos telões. Eu não acompanhava o que Fito Páez vinha fazendo - mas o show foi tão impactante, ao levantar a multidão gigantesca na 9 de Julho, que me arrependi de não ter prestado mais atenção àquele show inesperado que tive oportunidade de ver, quando ele já era grande na Argentina, mas um desconhecido no Brasil, 15 anos antes (e até hoje o Brasil dá as costas aos vizinhos, como sempre fez - Páez continua ignorado).
O que mudou minha opinião, principalmente, foi essa música aqui: uma preferida das madrugadas de vinis rodando incessantemente.
Descobri também que Páez sempre luta o bom combate. No palco, em frente de centenas de milhares de pessoas, comemorou o bicentenário da Argentina livre de forma sincera e emocionada, sem patriotadas fake. Comemorou com todos, cantou o hino nacional argentino ao final com outros artistas e emocionou-se de estar ali. Mas não estava cego.
Em 2011, Macri foi reeleito prefeito, com sua plataforma neoliberal na economia e neofascista nos costumes. Páez não deixou por menos: na sua coluna no jornal Página 12, detonou Macri, denunciou que a ideologia dessa ‘nova’ direita é saudosa da ditadura de 1976 e, de quebra, botou o dedo na cara da metade da população portenha que escolheu fervorosamente esse caminho.
Metade dos portenhos gosta de ter os bolsos cheios; às custas de quem, não importa. À metade dos portenhos, encanta aparentar ser mais do que é. E o que essa metade está sendo ou em que está se transformando, cada vez com mais veemência há décadas, causa-me repulsa.
Fito Páez, coluna no jornal Página 12
Palavras proféticas para um futuro próximo: em 2015, Macri foi eleito presidente da Argentina, num prenúncio da onda conservadora de extrema-direita que tomou de assalto o continente. Por esse texto de 2011 Páez foi atacado de todas as formas, ao ponto de ter sido processado por um grupo de advogados, promotores e juízes de direita com uma vaga acusação de “preconceito contra os eleitores de Macri". Depois de anos, o delirante processo dos fachos justiceiros foi arquivado por falta de base legal.
2. Anos selvagens.
Passei um bom tempo reencontrando Fito Páez de forma aleatória. Ouvia músicas dele em playlists, sempre com prazer, mas sem procurar. Madrugadas com músicas em constante rotação são assim: de vez em quando, algo que você não espera aparece no shuffle.
Há alguns meses, por acaso, dei de cara com um disco novo de Fito Páez. Na capa, uma foto PB, com ele bem jovem - Los Años Salvajes.
Pensei tratar-se de uma coletânea retrospectiva de carreira, versões antigas, demo tapes, algo assim. Ao ouvir a primeira música, achava que era o que encontraria.
Estava errado.
Fazer crítica musical não é o objetivo primordial de Locked Groove, apesar do nome. Inclusive, acho que é algo que até perdeu o sentido - hoje a velocidade é tão grande que, no Twitter, já tem gente fazendo crítica imediata, faixa a faixa, de um disco recém-lançado nos minutos anteriores. E nesse espaço aqui a ideia é sempre falar de algum assunto que tenha muitas ramificações, histórias boas para se contar, conexões com outros momentos, e não ficar falando do que foi lançado agora ou do que está bombando.
Mas Los Años Salvajes surgiu para mim em um momento bem escapista e foi importante para a sanidade mental. Tive uma espécie de revelação ao me deparar com esse disco, lançado no final de 2021 sem muito alarde. Ouvi tanto que não podia deixar de falar dele, mesmo que fosse na forma de tuíte mesmo, para não encher o saco de ninguém.
Então, vamos tentar com 280 caracteres.
Valendo:
_Fórmula clássica do rock: músicas rápidas e tocadas com fúria, depois uma baladinha calma, repete tudo. Referências: Stones 70s, Harry Nilsson, Abbey Road e, principalmente, discos solos de Lennon (grande ídolo de Páez) e sua paixão por rock básico, pianos e amplificadores valvulados.
Pode mais um tuíte?
_Outra referência, e talvez essa seja a chave - Lou Reed dos anos 1990: New York, Songs For Drella e Magic and Loss. Aos 50 anos, Reed fez os discos mais maduros, coesos e tradicionalmente rock and roll de toda a carreira, décadas depois do que muitos consideravam seus melhores anos.
E não resisto. Por fim, mais um:
_O disco é exatamente isso: Fito Páez tem total domínio de cada faixa, comanda uma ótima banda, usa todos os truques aprendidos por anos e não soa cansado, como muitos músicos mais novos que ele (Strokes, anyone?). Grande disco de festa, 10 faixas em 40 minutos. Ouça, que vale.
Mas, tirando essa conversa toda de crítica musical: e se eu falar somente que é um puta disco? E com um cara gente boa que fala de coisas importantes e escapistas como:
Toda sangre lleva inscripta un dolor
Yo solo quiero tu sonrisa
Una cerveza, un cigarro, una pizza
Y salgamos a besarnos al solVamos a lograrlo, Fito Paez, 2021
Não dá pra deixar de pensar que, nessa época escrota em que vivemos, é bem o que precisamos.
Ou, ainda, umas boas histórias em letra bem Lou Reed, como essa aqui:
Drake no es el rapero canadiense
Es un mecánico de coches
En un taller de Almirante Brown (Luis Roberto era igualito a Drake)Lili y Drake, Fito Paez, 2021
O velho Lou irônico, literário e grande escritor, é canalizado por Páez em várias das músicas, inclusive com direito a personagens típicos do Wild Side e do súcio boulevard.
Páez escreve bem, faz parecer fácil compor músicas tão boas e até mesmo faz soar bem um dueto com um mala do porte de Elvis Costello.
Praticamente um disco de greatest hits num universo paralelo, que dá para ouvir do começo ao fim e ainda colocar para ouvir de novo. É ótimo para madrugadas, viagens de carro, festas. E tem uns easter eggs espalhados, como homenagear Marielle, zoar a extrema-direita e olhar com atenção sempre para a situação escrota em que nos metemos nos últimos anos. Sem estragar a diversão. E sim, você pode ser escapista por um momento, sem abrir mão de lutar.
No dejemos que se lleven lo mejor de nuestras vidas
Lo Mejor de Nuestras Vidas, Fito Paez, 2021
3. Mesmo que a noite chegue.
Depois de tantos anos, um artista estabelecido como Fito Páez poderia só reciclar seus melhores momentos e fazer bailinho da saudade disfarçado de turnê. Mas o disco parece feito por alguém que ainda tem muito a dizer e soa, inclusive, mais fresco e novo do que alguns discos mais antigos dele mesmo. E diferente.
O que não muda é o Fito Páez que se preocupa com o mundo em que vive e com seu país; que lembra sempre da influência de gente como Spinetta e Charly García (seus mentores) e de sua musa de sempre, Fabi Cantilo; que não esquece das dificuldades que outros podem estar passando, que sempre tem um olhar atento para a sociedade da qual faz parte.
E que está sempre disposto a lutar contra esses monstros que teimam em sair dos buracos em que se escondiam, e que agora não têm mais vergonha alguma de ocupar as ruas impunemente.
Pelear contra los nazis y los fachos de mierda, como ele bem diz. Mas sem deixar de beber, encontrar amigos e amores, festejar, sair ao sol, curtir a cidade. Ocupar todos os espaços.
Vamos conseguir. Temos que lutar contra tanta estupidez.