Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
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O título dessa semana vem do grande Franciel Cruz (ou seo Françuel), jornalista e escritor do interior da Bahia que se adaptou a Salvador e manda de lá as melhores análises políticas de que se tem notícias nesses tristes trópicos. Como ele mesmo diz, é baiano não-praticante e seu livro Ingresia: Chibanças e Seiscentos Demônhos é um clássico com crônicas bem divertidas. Descobri seo Françuel faz pouco tempo, mas já vou surrupiar do indigitado a frase do título, que vou explicar mais embaixo o que significa.
1.
Quem está aqui há algum tempo já percebeu que nesse locked groove é assim: vamos de Karl Marx a Bell Marques, sem escalas.
No mesmo texto, inclusive.
Política tem sido um tema constante aqui. Considerações sobre como chegamos a esse buraco em que estamos enfiados, também.
Prometo que é uma fase; talvez, em anos ímpares (salvo algum plebiscito, referendo ou eleição suplementar em virtude de vacância do cargo por falta de envergadura moral, coisa que infelizmente não aconteceu nos últimos seis anos) eu consiga falar de assuntos mais amenos.
Por enquanto, aqui é quase sempre como se fosse um Cidade Alerta apresentado pelo bom e velho Nicolau.
Nicolau? Que Nicolau?
Aquele que é o fundador da ciência política como a conhecemos hoje: o Maquiavel, um dos ícones da cultura geral que é mais citado por gente que sequer sabe quem ele é. O adjetivo maquiavélico caiu em domínio público (literalmente) e dificilmente alguém sabe dizer de onde vem, mas sabe exatamente o que significa - um ardil para se conseguir algo, ao “assumir a aparência ou função” de outra coisa. Ou, em outra transliteração, um estratagema safado e bem filho da puta, mas camuflado de forma a levar alguém a realizar ou aceitar algo que beneficia, ao final, apenas o autor da pilantragem.
Segundo Rousseau, Maquiavel era tão ladino que conseguiu disfarçar, sob o manto de um compêndio de conselhos a déspotas ou aspirantes, um manual de como identificar os tocos que os que estão por cima sempre vão aplicar ao populacho. O livro é também de conhecimento geral e mais falado do que lido por aí: O príncipe.
Pela perspectiva Rousseauniana (ó, que erudição), Maquiavel amava tanto a República e a liberdade quanto amava a pele sobre sua carne ou conservar todos os seus membros ligados ao corpo. Portanto, não era besta de falar abertamente em favor de algum tema espinhoso - como liberdade, livre arbítrio e republicanismo - que pudesse atrapalhar seu sonho de ter uma aposentadoria tranquila. Errado não estava.
De alguma forma, Maquiavel foi bem-sucedido no ardil: até hoje, discute-se qual era sua intenção em escrever o livro. O príncipe é um texto estruturante da Ciência Política - nele, Maquiavel disseca toda a política daquilo que chama de principados, os Estados da Itália fragmentada do século XVI. Simples, lógico, fácil de seguir - o livro é uma aula em concisão e vai direto ao ponto, com histórias reais que servem de exemplo dos temas abordados.
Alguns capítulos são de interesse específico para o Brasil dos anos 2020 - o capítulo VII, especificamente, fala de como Cesare Borgia, o nobre duque de Milão a quem Maquiavel direciona seu ensaio, age para pacificar a Romagna recém-conquistada por seus exércitos. Nessa época, a região era meio como uma certa cidade maravilhosa e cheia de encantos mil que conhecemos hoje em dia: milícias tomavam conta das ruas e violência, roubos e picaretagens eram normais no dia a dia da população.
(…) encontrando-a sob o comando de senhores sem poder, que mais espoliavam seus súditos do que os governavam e davam motivos mais para desunião do que para união, tanto que a província estava cheia de latrocínios, tumultos e todas as formas possíveis de insolência, julgou o duque necessário para pacificá-la e reduzi-la à obediência (…) um bom governo.”
Citado de O príncipe, Nicolau Maquiavel, Editora Martins Fontes, 1ª edição
Borgia, gaiato que era, entendia por "bom governo" colocar no poder um cara cruel e competente na repressão e no autoritarismo, daqueles que prendem e arrebentam. Escolheu um tal de Remirro de Orco, que em pouco tempo botou a província toda em ordem, sem se importar em cima de quantos cadáveres, arbitrariedades e torturas.
Após conseguir o que queria, Borgia montou um tribunal para investigar o próprio subalterno e lavou as mãos, como se não soubesse de nada daquilo que o seu preposto havia feito. Para dar o exemplo e agradar às massas, o tribunal condenou o infeliz capitão Orco a ser cortado em duas partes, em praça pública.
Melhor exemplo do conceito de maquiavelismo não existe: após conseguir o que queria - a pacificação a qualquer custo da Romagna - Borgia finge surpresa e consternação ao saber dos métodos, digamos, um pouco rudes de seu capitão; descarta o auxiliar como se não tivesse nada a ver com o peixe. Novos tempos civilizados se fazem necessários para a vida seguir e o capanga que não se importava em sujar as mãos deixa de ter sua utilidade.
Quem não pensou no capitão Jair como um proverbial Remirro de Orco sobre uma motocicleta? Após cumprir seu papel na história que se repete como farsa, o desocupado que ocupa a presidência vai deixar de ter sua utilidade e será, em algum momento, descartado. Mas, até lá, ele vai fazer o que precisa ser feito: incorporar em si e servir de exemplo vivo da tão temida polarização.
E, afinal, o que é esse bicho exótico que está sempre na boca de 10 entre 10 Mervais, Camarottis, Magalhães, Sardenbergs, Cruzes e outros menos cotados? Ou, ainda, que povoa os sonhos e o subconsciente daqueles candidatos que estão na luta inglória contra a margem de erro?

2.
Não vamos descer muito essa ladeira aqui, mas cabe uma definição do sentido original do termo polarização, na Física:
A polarização é um fenômeno que ocorre com as ondas eletromagnéticas, nas quais elas são selecionadas e divididas conforme a orientação de sua vibração. Essa propriedade consiste na orientação espacial dos vetores campo elétrico e campo magnético.1
Ou seja, grosso modo, polarização é um fenômeno que faz com que ondas eletromagnéticas sejam segregadas e direcionadas para um lado ou outro opostos entre si, e não para todas as direções ao mesmo tempo.
O conceito, apropriado por alguns cientistas políticos e abraçado pelo jornalismo, passa a ter o significado de uma divisão da sociedade em dois pólos antípodas e altamente excludentes.
A partir daí, é um tirinho de espingarda até se chegar ao que realmente importa para os valorosos ventríloquos do jornalismo político: para cada extremista de direita sedento de sangue, há um extremista de esquerda pronto para tocar fogo na porra toda.
A política polarizada teria, dessa forma, um movimento pendular, em que se sai do extremo do ex-sindicalista raivoso e da ex-guerrilheira ressentida para o pólo oposto do ex-capitão militarista. A solução, costurada na boca do sapo pelos moderados do Brasilzão véio de guerra, seria permancer no centro e olhar para todas as direções. A virtude, como dizem os antigos, estaria no caminho da temperança.
Ou, como os mervais da análise política dizem: na terceira via.
Para surpresa de zero pessoas.
3.
(Nesse terceiro ato, sobem as cortinas e desvenda-se o grande plot twist, o maquiavelismo que está na origem da ascensão de uma figura tão pequena à presidência.)
Eu, que sou tão previsível quanto um palíndromo da terceira via, já vou sacar aqui de novo o bingo antidemocrático de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como as democracias morrem. Os quadrantes que o vândalo da democracia precisa preencher, como quem já leu esse texto aqui sabe, são:
rejeição ou fraco compromisso com as regras democráticas;
negação de legitimidade aos oponentes políticos;
tolerância ou encorajamento da violência;
disposição para restringir liberdades civis dos oponentes, incluindo a mídia.
Não vou entrar no detalhe de cada um deles de novo, mas é só bater o olho aqui que já se sabe que o capitão da extrema-direita faz check ✅ em todos. Ou seja, um dos pólos já tem dono.
UPDATE: Levitsky foi entrevistado em 19/09/2022, no programa Roda Viva.
E falou sobre as eleições brasileiras e o risco de levar a eleição para o segundo turno: Bolsonaro, o pequeno, vai tentar melar a eleição, segundo ele.Veja aqui, se tiver tempo. São quase duas horas.
Voltando.
A uma extrema-direita truculenta, antidemocrática e regressiva, contrapõe-se, na narrativa dominante nos meios de comunicação, uma esquerda que durante anos foi caracterizada como sectária, baderneira, corrupta e autoritária.
A construção dessa imagem de uma esquerda odiosa que está aí para invadir sua sala de jantar, colocar gente de cor para nadar na sua piscina, depredar vidraça de banco e queimar prédio de organização patronal vem de muito tempo. Já o pólo oposto foi normalizado e aceito durante o período em que foi conveniente: Bolsonaro não ascendeu ao poder apenas por ter o apoio verde-oliva - um grande consenso se formou em torno de sua candidatura e o levou à presidência.
Depois de um determinado ponto, com esses dois pólos caracterizados dessa forma, parece natural que o terreno no centro possa ser habitado por quem possui temperança e comedimento. Montou-se aí uma estratégia da terceira via, em que um candidato moderado teria chances de reinar absoluto e restituir o controle político do país a quem considera isso um direito seu. Bolsonaro, nesse arranjo, seria um pedágio necessário a se pagar para se livrar da esquerda que ocupava o poder há mais de uma década.
Claro que faltou combinar com os russos, como diz o velho ditado inspirado em Garrincha. A terceira via levou um chapéu lá no meio de campo e a extrema-direita se posicionou como a força principal contra a esquerda. Hoje, uma candidatura de direita só se viabiliza se contar com o apoio do núcleo duro do rebanho bolsonarista.
4.
E aí voltamos ao velho Nicolau, que deixei aqui aquecendo na lateral do campo e só à espera de a plaquinha subir.
Maquiavel, antes de todo mundo, cantou várias bolas. Raymond Aron, filósofo francês e verdadeiro centrista, destaca o capítulo IX de O príncipe como a primeira análise da história sobre luta de classes, que depois seria um tema central de boa parte da obra de Karl Marx.
Nesse capítulo, Maquiavel sustenta uma tese importante sobre a polarização primordial na sociedade. Um príncipe, segundo sua perspectiva, só pode ascender ao poder sem recorrer a atos criminosos ou violências intoleráveis se tiver o apoio de seus concidadãos: pelo favor do povo, ou pelo favor dos grandes. Esses humores diversos nascem de uma única razão - o povo não quer ser comandado ou oprimido pelos grandes, e os grandes querem fazer exatamente isso: comandar e oprimir.
Para Maquiavel, o príncipe (ou um governante qualquer) é um intermediário entre os grupos - deve manter o favor do povo e, ao mesmo tempo, saber conduzir-se entre os grandes. Mas deve ter em mente que sempre precisará viver com o mesmo povo; ao passo que pode fazer e desfazer os grandes, se for astuto o suficiente para isso.
Aí é que parece estar o grande ponto dissonante da teoria da polarização nesse país tropical abençoado por Deus. Ao vender polarização como ruim, obra do capeta mesmo, fonte de toda a disgrama que se abateu sobre o Brasil nos últimos anos, deixaram de fora o elemento essencial da equação, aquele que não pode ser trocado: o povo.
Nenhum projeto de terceira via apoia-se no favor do povo; apoia-se, apenas, no favor dos grandes. Como se bastasse agradar a quem habita a parcela belga da nossa Belíndia (identificada por Edmar Bacha nos anos 1970). Por inércia, o povão seguiria o caminho dos iluminados. Ou melhor, seria conduzido.
Nesse setembro de 2022, as pesquisas eleitorais indicam uma estabilidade e uma linha de clivagem muito clara no eleitorado. O retrato do apoio a Bolsonaro mostra um eleitor branco, masculino, entre 39-49 anos, escolaridade mais alta e renda acima de 5 salários mínimos. Não por acaso, é um retrato parecido com o do eleitor da terceira via.
A polarização existe, de fato. Mas não é a que os Borgia locais imaginam ser. Talvez porque não olhem além dos seus principados. Talvez porque, ao forçar a mão na manipulação artificial das peças no tabuleiro, não levem em consideração a lição principal de Maquiavel, no capítulo IX de O príncipe : você não pode substituir o povo.
(…) Quem se tornar príncipe pelo favor do povo deverá manter sua amizade, o que será fácil, pois tudo que lhe pedem é não serem oprimidos. Mas quem se tornar príncipe pelo favor dos grandes e contra o povo deverá, antes de qualquer coisa, procurar conquistá-lo (…) Concluirei somente que é necessário ao príncipe ter o povo como amigo; caso contrário, não terá remédio na adversidade.
Citado de O príncipe, Nicolau Maquiavel, Editora Martins Fontes, 1ª edição
A terceira via, esse transtorno delirante persistente da mente dos Borgia locais e seus auxiliares, é apenas um desvio mais longo no caminho da direita. Dá voltas, faz curvas, retoma o traçado original - mas, ao final, é apenas um desvio e nunca será a via principal. Nesse momento, a polarização de fato existe, como sempre existiu e vai continuar existindo. A clivagem primordial da sociedade brasileira está onde sempre esteve - quem está deslocado, na verdade, é quem está no desvio da terceira via, mas já escolheu seu lado - e não terá remédio na adversidade, como diz o velho Nicolau.
Epílogo.
E como não poderia deixar de ser, agora posso usar o auxílio audiovisual do seo Françuel para explicar a polarização, de forma bem mais sucinta do que eu fiz no texto acima.
https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/fisica/polarizacao