New dawn fades
Madrugadas nas metrópoles cinzentas. A segunda parte do texto da semana passada.
Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Intro.
Previously on Locked Groove:
Madrugadas sem rumo por Barcelona. Adele me faz beber, disse o inglês. A arte de fazer amigos e influenciar pessoas.
Nessa semana, a segunda parte da série continua, com mais duas cidades que têm muito em comum.
2.Cidade do México

A popularmente conhecida CDMX, capital do México, é, a exemplo de São Paulo, um gigante disforme que se espalha a perder de vista: um emaranhado de ruas, prédios feios, avenidas inóspitas, poluição e um mar de carros. Ao mesmo tempo, assim como sua contraparte brasileira, tem uma vida pulsante, que não se revela logo de cara. Culinária, arquitetura, cultura, música, bares bons e com boa bebida, bares ruins com música ruim, vizinhanças onde se pode andar tranquilamente, ao lado de outros bairros onde é melhor não pisar depois de escurecer; tudo se mistura em uma metrópole como essa. E, aos poucos, descobre-se lugares com uma beleza singular ou uma personalidade muito própria.
Visitamos o México em 2019 - a última viagem grande antes da pandemia. Tem muito o que falar, e já fiz um texto sobre Oaxaca aqui. As semanas que passamos lá rendem muita conversa em mesa de bar, na madrugada. Mas não vou entregar tudo de uma vez, é claro.
Em uma cidade bem turística, seguimos uma regra muito boa, que dizem ser muito aplicada lá: quanto mais chilangos (apelido dos moradores da capital) em algum bar, taqueria ou restaurante, maiores as chances de ser algo legal e não uma tourist trap. Isso funciona muito: são tantos lugares legais escondidos pela cidade que há descobertas que jamais aparecem em guias turísticos. Para cada Café Tacvba, há um Hola El Güero, primeira taquería em que fomos, logo ao chegar.
O país da comida de rua por excelência é fantástico para descobertas. Qualquer carrinho ou banquinha tem boa comida. Isso tem uma explicação: com as distâncias grandes da metrópole e um trânsito caótico, ninguém consegue almoçar em casa ou até mesmo em restaurantes mais tradicionais. Com isso, a comida de rua é sempre uma ótima opção para apressados trabalhadores locais.
Andar pela cidade sem rumo e sem pressa era sempre garantia de entender melhor como isso é importante para os mexicanos e fazer descobertas que muita gente que fica nos tradicionais caminhos turísticos jamais imaginaria encontrar.
Alguns bares são inevitáveis. Por exemplo, o Licoreria Limantour, centenário bar e que sempre entra nas listas dos melhores do mundo, é destino certo e já foi um watering hole para os beats, nos anos 1950-60. E, como Neal Cassady, Jack Kerouac ou William Burroughs, andar pelas madrugadas vibrantes de Condesa e Colonia Roma é uma experiência para quem quer conhecer a cidade em um ritmo próprio, sem obrigações. E permite descobrir lugares como o Tacos Orinoco, em Roma Norte, com sua fila de chilangos saindo para a rua. Originário de Monterrey, suas mesinhas simples de metal são os melhores lugares para uma boa comida da madrugada.
Mas mesmo lugares anônimos valem a pena. Numa madrugada, saímos de um show do The National (CDMX está sempre na rota de bandas) e andamos pela avenida próxima à casa de shows, até parar em uma discreta taquería de rua, com seu "churrasquinho grego" na porta, porta-guardanapos simples de plástico e vendendo, além da comida, nada mais do que os doces refrigerantes locais, como o Sangría Mundet. Sentamos em uma mesinha improvisada na calçada, carregando nossos tacos.
Atrás de nós, duas meninas que tinham cara de ter vindo do show falavam animadas entre si, olhando para nós. Tiravam selfies conosco ao fundo. Impossível não notar. Cruzei o olhar com uma delas, ela sorriu. Intrigados, pensamos no que poderia estar acontecendo, e olhei por acaso meu reflexo na janela da taquería. Paula e eu entendemos na hora: as duas achavam, talvez pela barba ou pelos óculos, que eu deveria ser o vocalista do the National; no caso, surrealisticamente teria saído às pressas ao final do bis, percorrendo algumas quadras para aproveitar a ótima comida de rua mexicana. Bem improvável, mas tivemos certeza de que era isso que se passava na cabeça das duas.
Seguimos caminho rindo, em direção mais uma vez do Licorería Limantour, nosso porto seguro para uma madrugada na Cidade do México, ou de algum outro bar com mesas na calçada e muita gente em volta, numa cidade que fica acordada até tarde e onde a rua é importante.
No dia seguinte, fui até uma agência para alugar o carro que iríamos usar na viagem pelo interior do país. O atendente chamou outras duas meninas até a mesa dele; deram sorrisos entre si, olhando para meu cadastro completo, com nome e endereço, recém-preenchido num tablet, e minha carteira de motorista. Fiquei pensando o que seria - talvez me confudissem novamente com alguém, pensei. El Chapo? Outro membro do Cartel de Sinaloa? José José?
Mistério explicado: o atendente me perguntou, sorrindo, “é de São Paulo, certo? Dizem que lá o trânsito é ainda pior do que aqui, é verdade?” Fiz que sim com a cabeça e conversamos um pouco sobre como essas duas cidades gigantes eram.
Na saída, ele me falou, como se nada fosse: “não se preocupe se a polícia o parar. A placa da Baja California sempre faz pensarem que se trata de narcos. Mas logo liberam, quando veem que são estrangeiros".
Sorri para ele, agradeci pela dica, e manobrei o carro, misturando-me ao fluxo gigante de carros que seguia pelas várias pistas da avenida principal da metrópole mexicana.
3.São Paulo

São Paulo já foi mais da madrugada. Hoje, paralelamente à destruição conduzida pela especulação imobiliária e à gentrificação desenfreada, a noite paulistana parece desaparecer em ritmo acelerado.
São Paulo talvez esteja passando pelo mesmo processo que Londres, Amsterdam ou Nova York tiveram recentemente: especulação imobiliária, altos preços de alugueis, gentrificação de bairros até então ‘abandonados’, leis mais rígidas para estabelecimentos que funcionam na madrugada. Um eterno ciclo que se retroalimenta e fez com que mais da metade dos clubes noturnos de Londres fechassem de 2015 para cá.
Pandemia não teve tanto a ver com isso - já era um processo bem aprofundado. Mudanças culturais, novos hábitos, talvez um movimento pendular de conservadorismo - alguém mais esperto pode saber qual a relação entre tudo isso. Mas pode ser também que eu apenas não esteja vendo o que acontece na noite, por não andar pelos lugares certos.
Bairros menos centrais vibram todo final de semana com festas e mais festas de “funk” - o apelido racista e aporofóbico preferido de políticos, demagogos em geral e jornalistas preguiçosos para a variedade de festas e eventos que acontecem à margem do Guia da Folha e que reúnem multidões com pouco dinheiro e muita vontade de sair, mas poucas opções e mais escassos ainda meios de locomoção.
Ou, também, posso estar ficando velho.
Imagina. Claro que não é isso.
😒
A ruazinha onde ficava o Retrô (na segunda encarnação, já que eu era jovem demais e não morava em São Paulo quando a primeira casa abriu) era em uma parte bem degradada de Santa Cecília. Hoje é um bairro que passa por gentrificação e, em breve, deve seguir o destino de outros bairros como Pinheiros ou Barra Funda e entrar na mira da especulação imobiliária, apesar de já ser bem verticalizado.
Era meu destino preferido das noites, logo que comecei a morar em São Paulo. Chegar ao Retrô seria mais fácil, se fosse cedo. Mas, como antes da 1h da manhã não havia ainda sequer bebida gelada, em geral só se chegava lá mesmo por volta de 1h30, quando a estação do metrô ali perto já havia fechado. Táxi era fora de cogitação: mesmo dividindo entre 3 ou 4 pessoas, saía caro. A solução era pegar algum ônibus circular da madrugada e descer na Angélica ou, com um pouco de sorte, em frente à Santa Casa.
Era uma portinha para a rua, um porão com pista de dança, bem escuro, paredes pintadas de preto, com estrobo bombando o tempo todo. O som, em ótimo volume ensurdecedor, era tudo o que havia de mais underground na época: em geral, pós-punk, new wave, industrial, hip hop, eletrônico (inclusive, por volta de 1995 chegou a haver uma noite totalmente eletrônica e era uma das melhores pistas de São Paulo).
Um amigo comentou uma vez que o Corpo de Bombeiros talvez nunca tivesse feito uma inspeção ali, ao ver os fios expostos, canos enferrujados e portas com cadeado na saída de incêndio.
Desconfio que a vigilância sanitária também não.
A conta de luz devia ser toda resultante das caixas, com som altíssimo, dos estrobos que não paravam e de poucas lâmpadas estrategicamente instaladas em lugares como banheiros - o que, aliás, não impediu, uma vez, que tivéssemos de usar isqueiros para procurar, no chão do banheiro, uma pequena quina de papel (😬) que caiu da boca de uma amiga quando ela deu uma gargalhada. Achamos; ela, mais do que depressa, já colocou de novo na boca.
As paredes vibravam com os graves, copos andavam sozinhos pelas vibrações em cima do balcão do bar - que ficava em outro andar. Os ouvidos zumbiam ao final da noite, de tão alto que era o som. E era pior ainda quando alguma banda tocava no pequeno espaço do palco, na pista sempre lotada. E mesmo nesse aperto todo, ainda era possível um slam dancing ou um stage diving.
Perdi a conta de quantas vezes fui lá, ou de quantos shows vi, de bandas que sumiram no tempo.
Num sábado, em feriado prolongado, eu estava de bobeira - não era o melhor dia para o Retrô e, na verdade, para nada na cidade - e combinei com os poucos amigos que não haviam viajado de vermos o show da banda brasiliense Low Dream. Um após outro, foram desistindo. Acabei indo sozinho, enfrentando o ônibus da madrugada, que havia demorado mais do que o normal para passar. Cheguei lá e descobri que não estavam cobrando o ingresso de entrada, tradicional quando havia show. Achei estranho e melhor não comentar. Entrei direto. Fui para a pista, e nenhum sinal de preparação para nada. E descubro que a banda havia também decidido não aparecer; nunca soube o motivo.
Uma vez ali, fiquei - voltar para casa não era uma opção, naquela madrugada vazia de São Paulo. E foi uma das decisões mais acertadas que tomei: sozinho na pista, sem estar em grupo, com o som alto reverberando pelo pequeno porão, com o dinheiro contado para bebida, e já sabendo que deveria durar a madrugada inteira ali, para poder pegar o metrô assim que amanhecesse. Foi como se estivesse na minha casa, ouvindo música que gosto, mas junto com pessoas que eu não conhecia (não encontrei nenhum rosto familiar nesse dia), e era bem como se fosse um estrangeiro na própria cidade. Fiquei sozinho, dançando, bebendo, sem preocupação alguma; é uma das madrugadas de que lembro com mais detalhes, entre todas as que passei naquela pista.
A caminhada até o metrô foi tranquila, na luz azulada do comecinho da manhã, seguindo pelos espaços livres entre os corpos deitados no chão do Largo Santa Cecília, de gente que havia tido uma madrugada muito mais dura ali fora, com seus cachimbos improvisados. Gente que não tinha forças para levantar, mesmo que, horas depois, o sol estivesse a pino.
Entrei no metrô e desci várias estações depois, no Paraíso. Subi as escadas para encontrar os primeiros sinais do sol já avermelhando o céu. Cheguei até o portão do prédio do quarto-e-sala que dividia com meu irmão. Ouvi, ao me aproximar do interfone, a estática de um radinho de pilha mal-sintonizado tocando forró. Olhei para o hall, onde ficava a mesa do porteiro da noite. Vi que ele estava sentado na cadeira, com a cabeça jogada para trás, os óculos tortos pendurados em uma orelha, a boca aberta. Na mesa, o interfone fora do gancho. Ao lado do rádio.
Ouvi de novo o barulho vindo do interfone - monocordicamente, como se fosse um fundo para o forró cheio estática, escutava nitidamente o ronco ritmado do porteiro. Eram 6h02 da manhã de domingo.