Rios, pontes e overdrives
Para fechar a retrospectiva de 2024, o mais improvável livro do ano.
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Intro.
Sete anos para ser escrito. 522 pessoas entrevistadas, incluindo 7 longas entrevistas com o próprio biografado. 1344 páginas. Peso de 1,84 kg na edição paperback, um pouco mais na original em capa dura. 74 reimpressões em cinquenta anos desde a primeira edição impressa. Cerca de 10.000 exemplares ainda são vendidos por ano, 50 anos após o lançamento. Prêmio Pulitzer em 1975.
Números importam aqui. Especialmente quando se trata do livro que conta a história de um biografado como Robert Moses, administrador e urbanista.
Olha só, aqui tem mais ainda: Moses teve 12 cargos públicos durante sua vida, tanto no estado de Nova York quanto na cidade. Alguns deles ao mesmo tempo: em 1960 exercia nove cargos públicos simultaneamente. Naquele ano, a área sob sua administração no estado de Nova York era de 420 km², o equivalente a praticamente metade da cidade de Nova York (todas as Five Boroughs, não apenas a ilha de Manhattan).
Construiu as maiores obras viárias da cidade e do estado, além de parques, prédios icônicos e outras obras públicas de magnitude inigualável. São 147 grandes projetos, entre eles as maiores pontes para ir e vir de Manhattan para o continente ou regiões vizinhas, como a Robert F. Kennedy (que liga Manhattan, Queens e Bronx), um dos maiores feitos de engenharia da época, ou Riverside Drive (uma via expressa ao longo do rio Hudson), o Lincoln Center, o Central Park Zoo, inúmeras rodovias, pontes e viadutos no estado todo, parques em Nova York e Long Island, inúmeros playgrounds e muitas outras obras menores interligadas aos grandes projetos viários. Suas obras custaram, em valores de hoje, US$ 244 bilhões (ajustados pela inflação do período).
De 1934 a 1968, nenhum agente público teve mais poder em modificar a cidade e o estado de Nova York do que Moses. Passou pelas administrações de seis governadores de estado e cinco prefeitos (e, ainda, cinco presidentes dos EUA, incluindo Franklin Delano Roosevelt, um inimigo declarado).
Não leio com frequência livros com tantas centenas de páginas (e nem com tantos números). Precisam ser realmente bons e essenciais para despender tanto esforço. Apenas imagine segurar um calhamaço de quase dois quilos. E ler então todas essas páginas com a devida atenção e sem dispersar?
Grandes livros são, em geral, de grandes autores: Tolstoi, Dostoyevski, Joyce e poucos mais. São livros que entram para a história e se mantêm como referência por muitos anos. Esse é um para entrar nessa lista restrita.
Li vários outros bons livros em 2024, mas há algum tempo tenho me dedicado a ler esse que descrevi aí em cima, após alguns anos em que ficou na minha estante. A lombada com 4,5 cm de profundidade, com o título em grandes letras vermelhas, em corpo 65 pts., intimidava logo de cara. Se começasse, quanto tempo levaria para terminar? E quantas páginas levaria para de fato entender do que se tratava e decidir se valeria a pena ir até o final? Funcionaria como calço de porta, caso eu não gostasse das primeiras páginas?
Um dia, há algumas semanas, comecei. Não precisou de muito para eu ter certeza de que era
O melhor livro do ano.

1.
Apesar de todos os números enfileirados aí em cima sobre obras públicas, Robert Moses nunca foi eleito para algum cargo público; perdeu a única eleição que disputou na vida, quando se candidatou ao governo do estado, em 1934. Aparecia muito em notícias de jornal, seu rosto era conhecido de quem lia o New York Times e outros grandes jornais da época, mas Moses não era um político famoso e muitos novaiorquinos, talvez, tivessem dificuldade em associar o nome à pessoa sem que fosse dado um contexto. E, afinal, o que torna tão especial a biografia de um funcionário público pouco conhecido, quase anônimo, numa época tão turbulenta quanto o século XX?
The Power Broker, de Robert A. Caro, esse tijolaço de 1344 páginas e quase dois quilos de que falei nessa longa introdução, é o melhor livro que li em muito tempo e, talvez, um dos mais importantes para se entender de forma muito cristalina algo que é tema de uma boa parcela da melhor literatura desde sempre: o poder.
Robert Caro começa o livro em 1909, em Yale, onde Robert Moses estudou. É cinematográfico: na beira da piscina, o capitão do time de natação da Universidade, Ed Richards, escuta Moses explicar seu plano para conseguir financiamento para outros esportes além da natação. Moses era o segundo melhor nadador do grupo, atrás apenas de Richards, e tesoureiro responsável pela administração dos fundos da equipe.
O plano de Moses era pedir mais dinheiro para um magnata da imprensa de Nova York, Ogden Mills, um veterano ex-nadador por Yale, mas sem contar para o mecenas que o dinheiro ajudaria a custear também outras equipes de esportes (Moses havia tido a ideia de juntar em uma liga os esportes menos populares que o Futebol Americano, o mais renomado da faculdade). Segundo Moses, investir o dinheiro em um fundo único permitiria que a grana fosse usada com o que fosse mais necessário, de acordo com a alocação definida por alguém esperto o suficiente - no caso, o próprio autor da ideia.
Richards ficou atônito com a proposta de Moses: a cínica manipulação de um bem-intencionado patrocinador era algo que o capitão do time não conseguia aceitar. Disse não para Moses, que lançou mão de uma cartada extrema: ameaçou renunciar ao posto de tesoureiro e até mesmo à equipe de natação, da qual era um das estrelas.
Richards aceitou a renúncia na hora e Moses nunca mais nadou pelo time.
O domínio narrativo de Caro já me ganhou aí. Em poucas páginas, resume muito da personalidade e das motivações de Moses, em temas recorrentes que aparecerão nas centenas de páginas seguintes.
Depois de uma geral em quem é esse personagem e por que merece milhares de páginas, Caro começa a contar os primeiros anos da carreira de Moses, seus primeiros fracassos nos embates com a burocracia e com os estamentos do serviço público ou, pior ainda, com os donos do poder - milionários privilegiados com total desprezo pelo interesse público.
Poderia ser uma história edificante e linear, naquele estilo cafona de “jornada do herói” que os autodenominados storytellers, copywriters e lorotellers de hoje tanto gostam. Mas Caro tem nuance, sutileza e poder narrativo para criar uma progressão dinâmica do livro que, em muitos momentos, reverte expectativas e nunca subestima o leitor.
Usa bem o “elenco de apoio”: por meio da trajetória de Moses, conta a história de gente como Al Smith, governador democrata de Nova York e que viabilizou boa parte da carreira inicial de Moses. Smith, um ítalo-irlandês filho de imigrantes do Lower East Side de Manhattan, dava drible da vaca nos aristocráticos Republicanos e Democratas e era sucesso de público (ou demagogo, como o chamavam) - tanto que se tornou o primeiro católico a concorrer à presidência dos EUA, em 1928. Para se ter uma ideia, só em 1960 um católico seria novamente candidato e, finalmente, eleito presidente dos EUA: o também democrata de origem irlandesa, John Kennedy.
Tudo é bem estudado e analisado e vem de fontes de respeito, com entrevistas com gente que viveu a época e muita referência a acervo de jornais e arquivos públicos. Caro faz um trabalho minucioso da reconstituição da ascensão de Moses e deixa bem claro o motivo do fascínio de todos por ele - considerado genial por pares, subordinados e até por adversários políticos, Moses era um dos trunfos de qualquer governador ou prefeito (e até presidente). Era o cara que fazia acontecer e transformava em realidade obras até então apenas sonhadas.
Dá para se compilar um genial livro dentro do livro só com a fase idealista de Moses. Nele, o protagonista é o judeu não-praticante e quase anglo-saxão, de família rica e aristocrática de Nova York, e que tem um choque de realidade, aprende a ser humilde e a respeitar o governador filho de imigrantes e sem formação superior; é o idealista do serviço público que quer construir parques acessíveis e que se importa com a qualidade de vida dos cidadãos, que une e motiva a equipe para conseguir entregar o melhor trabalho possível, que abre mão de sua vida pessoal por uma vocação para servir o público, que bate de frente com milionários canalhas que querem ter privilégios e ocupar os melhores espaços públicos em Nova York.
Moses construiu uma reputação de trabalho duro, entregas precisas, cronogramas cumpridos à risca, máxima produtividade e cuidado estético e formal em tudo o que fazia. Subiu a régua para obras públicas e entregou praias, parques, pontes e rodovias que fizeram história.
Go, Moses, go!, é o que o leitor, agora claramente um torcedor, pode exclamar depois das primeiras duzentas páginas. Mas Robert Caro, mestre em narrativa e versado nos mais sofisticados recursos estilísticos, tem outro livro em mente.
2.
Depois de levar uns tocos iniciais em suas tentativas de reforma do serviço público e da legislação, Moses começou a observar de perto Al Smith. É uma educação informal e prática na política: o jovem Moses aprendeu a transitar pelos labirintos da política com o velho politicão do Tammany Hall (um grupo político que dominava o Partido Democrata em Nova York, meio um Centrão da política novaiorquina). Sem qualquer sutileza ou flexibilidade, o idealista Moses colecionava inimigos e fracassos; inspirado por Smith, o prático e safo Moses passou a dominar como poucos os arranjos de bastidores, o controle de informações privilegiadas e as trocas necessárias para rir e fazer rir.
Ganhou poder e construiu um império baseado em seu conhecimento inigualável das leis e regulamentações e uma atenção aos detalhes que lhe permitia cavar financiamentos de onde ninguém imaginava. Passou a ser mais prático e objetivo, obcecado por conseguir o que quer que fosse importante para seus projetos. Não se detinha diante de nada: passava por cima de comunidades, pequenos fazendeiros, em certa medida até de aristocratas e políticos - claro, depois de entender quem poderia ajudá-lo em seus objetivos ou com quem poderia comprar briga impunemente. Mentia, omitia dados, distorcia informações, caluniava adversários - tudo em nome de sua ambição construtiva.
Ganhava a confiança da imprensa e, por meio de sua família rica e influente, conseguia bons contatos - como Iphigene Ochs Sulzberger, herdeira do New York Times e sua apoiadora desde sempre. Se os seus superiores resolvessem colocar um freio em suas ambições, era simples: ameaçava renunciar ao cargo. Mas, óbvio, não sem antes vazar a informação para a imprensa, que o defendia sem pensar duas vezes. Pegaria mal para qualquer prefeito ou governador a demissão desse ‘herói’ da mídia hereditária, num tempo em que o New York Times“(…) era a Bíblia, surgindo todas as manhãs com uma visão da vida que milhares de leitores aceitavam como realidade”, como diz Gay Talese em seu livro clássico sobre o jornalão novaiorquino.
Em cerca de 10 anos, virou um dos maiores operadores políticos da cidade de Nova York ao mesmo tempo em que ganhou a reputação de grande realizador, o que permitiu que, apesar de ser um conservador Republicano, trabalhasse tanto com democratas como os governadores Al Smith ou Franklin Roosevelt, quanto com Republicanos como o prefeito Fiorello LaGuardia.
O biógrafo Caro domina a narrativa com maestria e vai, aos poucos, mostrando o lado escuro da força: Moses se revela cada vez mais arrogante e manipulador, toma decisões arbitrárias, destrói carreiras de outros funcionários públicos só por picuinha. Não é um livro chapa-branca, como muita biografia por aí. Caro entra no detalhe de todos os meandros da complexa relação de Moses com o poder e analisa a fundo sua obsessão por parques, pontes, obras viárias, urbanismo e…água.
Não passa pano: ao mesmo tempo em que não deixa de reconhecer o papel central de Moses na construção de uma Nova York mítica no inconsciente coletivo do século XX, com obras fundamentais como Riverside Drive, Lincoln Center ou as pontes que conectam Manhattan às 5 boroughs, também mostra como Moses foi em grande parte responsável pelo gigantismo inóspito de aço, concreto e especulação imobiliária que caracteriza hoje a cidade.
3.
Mais números para fechar a conta e revelar outro lado de Moses.
Detalhista, Moses fez com que seus projetos para parques e praias em Long Island fossem acessíveis somente por passagens de nível por baixo de pontes nas rodovias; por exemplo, em Jones Beach, a altura das pontes foi pensada para ter exatamente 2,75 metros - abaixo da altura dos ônibus padrão, com mais de 3 metros. Com isso, ônibus de turismo ou do transporte público eram obrigados a parar longe das praias e parques. O privilégio de acesso era para quem tinha carro. Ou seja essa classe média bem de vida e WASP (todo mundo conhece esse acrônimo: branco, anglo-saxão, protestante) que caracterizou o Sonho Americano no século XX e era o público prioritário de Moses.
Basta lembrar que a cada vinte ou trinta salva-vidas contratados para piscinas e praias, havia somente um que não fosse branco. Uma conta pensada exatamente para desestimular qualquer um que tivesse outro tom de pele a fazer uso do espaço público recém-construído. Num país em que as leis Jim Crow ainda estavam em vigor em muitos estados, qual mãe negra ou latina (ou até mesmo italiana) se sentiria segura em deixar seu filho sob a monitoria de um homem branco? Ao mesmo tempo, os salva-vidas brancos eram todos alocados na principal área da praia de Jones Beach, a mais imponente de todas. Os demais salva-vidas eram reservados para faixas menos nobres, em baías menores e menos equipadas para lazer.
Moses não era só da praia - adorava piscinas e fez o possível para construir o maior número delas em seus parques, especialmente na cidade de Nova York. Uma das piscinas que mais gostava ficava exatamente no distrito de origem do prefeito LaGuardia, entre as ruas 114 e 115 - por acaso, pertinho do Harlem, bairro majoritariamente negro e latino. Um homem do seu tempo, Robert Moses pensou em um estratagema para desestimular que “pessoas de cor" usassem a piscina e se misturassem com os cidadãos-de-bem caucasianos: baixou em três graus a temperatura da piscina em relação ao aquecimento das demais, por acreditar que “essa gente” tinha menos tolerância ao frio do que os brancos.
E Moses sempre tinha água na cabeça. Projetou a Riverside Drive, uma pista expressa que corre por toda a costa oeste da ilha de Manhattan e é um dos grandes legados de Moses, um sonho antigo de recuperar para a cidade todo o litoral oeste, que até então um grande lixão a céu aberto e cortado por linhas férreas altamente poluidoras e barulhentas.
Após a intervenção de Moses, a Riverside Drive ganhou um parque que acompanha a larga via expressa de 6 pistas. Playgrounds e quadras foram construídos e novas árvores foram plantadas em uma extensão feita artificialmente na beira do rio para garantir mais verde e espaço de lazer. Uma cobertura foi providenciada para a linha férrea que passa lateralmente à Riverside Drive, amenizando poluição e barulho. Mas isso acontecia somente da rua 77 até a 125. Daí em diante, nada de parque, aparelhos públicos ou cobertura para a linha férrea até a rua 145. Esses 20 quarteirões são os que definem as divisas do Harlem. Nessa área, a Riverside Drive deixa de ser acompanhada de um parque e vira uma via expressa tão feia quanto a Marginal Tietê. No Harlem, aliás, Moses construiu apenas UM playground, ao passo que construiu outros 254 no restante da cidade, durante a década de 1930.
Para não deixar dúvidas de suas escolhas, o sempre detalhista Moses povoou os parapeitos de ferro fundido da Riverside Drive com imagens de barcos, peixes, ondas e outros temas náuticos, em um toque simpático para criar uma identidade para esse parque à beira de um rio.
Entre as ruas 125 e 145, que demarcam o Harlem negro e latino, a decoração nos parapeitos é outra - pequenos macaquinhos em poses divertidas. 🫠
4.
Moses é um personagem complexo e, principalmente, com um legado complexo. Por um lado, sua obra pública é essencial para a imagem que Nova York tem até hoje; por outro, os limites de seu pensamento exclusivista e segregacionista do espaço público persistem ainda hoje, de forma negativa. Seu urbanismo modificou a face de Nova York, mas há um incômodo protagonismo do automóvel e total desprezo pelo transporte público - para Moses, o automóvel era o centro de tudo e o pedestre, um mero apêndice. Meio como se seu público ideal fosse o sr. Wheeler, da clássica animação da Disney, Motor Mania, de 1950.
(Facilitei para você e botei aí embaixo esse que é um dos curtas de animação que mais gosto).
Mas a real é que ainda não tenho uma opinião formada sobre The Power Broker ou Robert Moses, e por um motivo muito simples: ainda não terminei de ler o livro.
Estou mais ou menos na metade, mas isso não me impede de dizer: é o melhor livro que li no ano, talvez um dos melhores do século XX. 1344 páginas em que não se desperdiça uma palavra, em que não há uma frase mal-escrita por Robert Caro. Ainda vou falar mais disso.
E Robert Caro não é um homem de medir palavras: depois do livro sobre Moses, que levou 7 anos para ser feito, o cabra ainda fez quatro volumes (com centenas de páginas em cada um) cobrindo toda a vida de Lyndon Johnson, presidente dos EUA entre 1963 e 1968, vice de Kennedy e que assumiu após o atentado de Dallas.
O livro de Caro é essencial para muitos. Barack Obama disse que The Power Broker mudou a forma como ele enxergava a política e o serviço público. Muita gente boa elogiou o livro - Gore Vidal, por exemplo, bicha chata prototípica, genial e no limite da arrogância intelectual, era só elogios.
Não tive dúvidas em indicar como melhor do ano. Essencial para entender muito do século XX e, ainda, tem muito a ver com os tempos em que vivemos, mesmo que trate de assuntos que ocorreram há mais de meio século. Livrão.
E vou entrar em 2025 ainda com The Power Broker. Já estou vendo que vou diminuir o ritmo nas páginas finais, para aproveitar o máximo possível desse que é um dos grandes livros da história.