Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Esse texto aqui é para retomar um assunto das últimas semanas, enquanto me recupero da viagem ao Rio de Janeiro.
Teve muita coisa boa na viagem ao Rio: fim de tarde na Adega Pérola, o primeiro festival de música desde que começou a pandemia, noites sem fim em Copacabana, praia, caranguejos. Conto em breve.
A semana foi corrida e Locked Groove chega num dia diferente.
Para essa semana, quis recuperar aqui algumas coisas que ajudam a dar contexto a ideias das últimas semanas. Uma grande e importante matéria do NY Times me fez pensar novamente em um tema que, talvez, tenha ficado um pouco no ar.
E repito sempre, como disco de vinil riscado (ou um locked groove): se não assinou ainda, clique abaixo.
Se já assina, acha que mudou sua vida e quer contribuir para esse locked groove continuar rodando infinitamente, pinga um capilé aí.
Boa leitura, até mais. 😉
1.
Desde hace rato, cuando uste' llegaron
Ya estaban las huellas de nuestros zapatos
Se robaron hasta la comida'l gato
Y todavía se están lamiendo el platoThis is not America, Residente
Pense no Haiti: um país que já foi a colônia mais rica das Américas. Que foi o segundo país independente do continente, depois de uma guerra cruel e devastadora. Essa ilha que, hoje em dia (e desde sempre, se pensarmos bem), aparece na boca de gente do naipe do especulador transformado em comentarista do Manhattan Connection como exemplo de país que deu errado, meio como a dar uma piscadinha cúmplice e sugerir algo como "tá vendo, foi só deixar na mão deles que nada deu certo".
Esqueci de comentar aqui um detalhe. Melhor ainda, O DETALHE: o Haiti foi a primeira República preta. Independente politicamente há mais tempo do que o Brasil ou qualquer outra república da América hispânica.
Para quem acredita em groselha de especulador coxinha, deve ser uma revelação saber que, em 1789, o Haiti era chamado de Pérola das Antilhas e estava longe de ser uma colônia periférica: era responsável por 40% de todo o açúcar e 60% de todo o café consumidos na Europa à época. O lucro resultante estava todo nas mãos da burguesia francesa, uma vez que existia ali o “Exclusivo", que tornava mandatório que todo o comércio fosse com a metrópole. Foi o que financiou, ao fim e ao cabo, a própria Revolução Francesa, ao conferir poder financeiro para a burguesia que se formava em torno do comércio exterior de uma das nações mais cosmopolitas da época e que se opunha ao absolutismo do Estado francês.
Além da importância econômica, o Haiti tem importância simbólica: fica na ilha de Santo Domingo, primeiro lugar onde Colombo desembarcou nas Américas, em 1492. Foi por isso que recuperei, há algumas semanas, Os Jacobinos Negros, o livro do historiador, jornalista e ativista C.L.R. James. Influente até hoje e uma das obras fundamentais do Pan-africanismo, o livro conta a história da Revolução Haitiana de uma forma inédita até então. Ao mesmo tempo, dá poucas pistas sobre o que acontece depois: fala meio por cima das reparações pagas após a independência. E é aí que o bicho pega. James não dá detalhes, mas uma matéria bem completa do NY Times joga luz sobre essa questão.
Coagido pela Marinha Francesa, o governo do país recém-independente concordou em pagar reparações a todos que perderam propriedades no Haiti - além das terras, a mão de obra escravizada também era considerada propriedade, nos termos do acordo. No primeiro ano, o que foi pago era o equivalente a 6 vezes a renda total do Estado Haitiano. Por anos, as indenizações sugaram as finanças do país - ao ponto de novos empréstimos terem sido feitos para pagar a dívida original.
A lista dos indenizados foi extensa, incluindo a Imperatriz do Brasil, banqueiros, nobres europeus e outros ricaços da época. Em 1911, só os pagamentos dos juros dos empréstimos comprometiam 2,53 dólares de cada 3 arrecadados com as exportações de café, a maior renda do país.
Boa parte do dinheiro das reparações foi parar nos cofres de muitos bancos. E que não eram pouca coisa: um dos credores, o Crédit Industriel et Commercial, foi um dos financiadores da Torre Eiffel; outro dos bancos beneficiados foi um que viria a se tornar o Citigroup.
Da mesma forma que o dinheiro do comércio colonial e do tráfico de escravos enriqueceu a burguesia e depois sustentou a Revolução Francesa, o dinheiro pago após a independência do país remunerou bancos e empresas que cresciam com esse “investimento", ao passo que o país ficava na miséria. E não apenas estrangeiros lucravam: essas indenizações - praticamente um novo “Exclusivo" fora do sistema colonial, um método de transferência de renda semelhante ao monopólio da antiga metrópole - também cooptaram sócios locais.
Elites locais predatórias assumiram o papel de capatazes - a multiplicação da dívida e a apropriação da pouca renda que sobrava fizeram com que muitos enriquecessem num país miserável. Estima-se que a renda per capita hoje poderia ser de 6 a 8 vezes maior, se o dinheiro gasto nas reparações ou nos juros das dívidas fosse investido no país.
É o caso típico que os pesquisadores Acemoglu e Robinson apresentam em Why Nations Fail: uma elite local predatória associa-se a um capital internacional para explorar seu país como se fosse colônia. Ao mesmo tempo, pode-se dizer também que é o método mais atual de dominação na América Latina - não é preciso sequer intervenção armada.
No caos latino-americano, esses padrões de exploração dupla - pela força do dinheiro e pela força das armas - são a energia entrópica de um sistema que se repete ao infinito. E sempre interconectados.
2.
Dominação econômica é uma das constantes, a dominação pela força bruta é a outra. Intervenção armada deixou de ser comum em anos recentes, mas é uma irmã gêmea intrinsicamente ligada ao dinheiro.
De 1915 a 1934, os EUA controlaram totalmente o Haiti com tropas, estabelecendo uma espécie de protetorado na ilha; mesmo após a retirada militar, as finanças do Haiti permaneceram sob controle dos EUA até 1947. Desde então, outras intervenções armadas dos EUA alternaram-se com regimes despóticos, corruptos e altamente genocidas, como o da família Duvalier.
A mais recente intervenção estrangeira no país ocorreu a partir de 2005, quando os capacetes azuis da ONU empreenderam a primeira ação do organismo internacional com suas novas diretrizes. Antes, as forças de paz da ONU não se envolviam em combate a não ser para auto-defesa; com essa operação, comandada pelo Brasil, estabeleceu-se um novo padrão com ações ativas de repressão e combate, para "pacificar” o país, mesmo com emprego de força letal.
E, como numa versão geopolítica e bem filha da puta da teoria do caos, uma bala perdida nas ruelas da Cité Soleil atinge um menino que sai para ir à escola, numa comunidade da zona oeste do Rio de Janeiro.
Exagero de retórica à parte, essa metáfora é cortesia de uma interpretação muito específica da Constituição Federal. O artigo 142 da CF, com regulamentação em leis e decretos complementares, permitiu o estabelecimento da Garantia da Lei e da Ordem (GLO, como é conhecida). é um mecanismo que naturalizou o uso de força militar em situações urbanas sem necessidade de se decretar Estado de Defesa ou Lei Marcial. A Missão de Paz no Haiti foi um ensaio bem-sucedido do que ocorreria nos anos seguintes, quando soldados brasileiros treinados em situações reais nas ruas do Haiti trouxeram para casa a militarização do combate ao crime.
A exemplo do que aconteceu na Colômbia ou no México, a escalada militar no combate ao crime não diminuiu o problema - ao contrário, foi como gasolina no fogo e levou a extremos de violência.
E percebe-se que a intenção era exatamente essa: da mesma forma que o constante endividamento do Haiti e de países latino-americanos sempre foi fonte de enriquecimento e meio de dominação, uma constante guerra - às drogas, ao crime, qual seja o espantalho da vez - é o mecanismo de se exercer controle social e garantir, finalmente, uma mobilização permanente contra mudanças. Colocar tropa nas ruas pela GLO é conservadorismo em estado bruto: mantém-se uma ordem imutável, pela força das armas.
3.
Os padrões interconectados são facilmente reconhecíveis: dominação econômica e dominação social/política andam de braços dados e se complementam, em favor do conservadorismo. Novamente o Haiti como exemplo: “a mais odiosa dívida pública da História", segundo historiadores haitianos, jogou na miséria a população do país, deixando-a à mercê das botas de elites espoliadoras que completaram o serviço com ditaduras ou apoio a intervenções estrangeiras e que hoje reinam absolutas num país devastado.
É o mesmo projeto que se vê em muitos países da América Latina. No Brasil, o retrocesso de 2018 para cá é uma outra faceta desse movimento: a regressão engendrada pelo atual governo militar disfarçado de civil é a mesma registrada pela “Revolução redentora” de 1964. Para os donos do Poder e seus jagunços fardados, quanto mais conflito, violência e criminalidade, melhor. Uma sociedade mobilizada contra um inimigo comum é mais fácil de ser convencida da necessidade de se “conservar” a lei e a ordem.
O haitianismo, aquele fantasma que assombra todos os países que subjugam populações nativas e trabalhadores escravizados trazidos de outro continente, se faz presente desde a origem dos Estados nacionais do continente. Independente antes de quase todos os outros, o Haiti era o exemplo de tudo o que as novas elites locais queriam evitar. Daí a necessidade de o poder econômico nos novos países sempre se escudar em uma força militar que era primordialmente voltada para fazer frente a uma insurreição local e não para combater um inimigo externo. E é daí que nasce o conceito de se associar qualquer tipo de perturbação da ordem estabelecida com a criminalidade.
A História brasileira é cheia de casos assim: Canudos, Contestado, toda a história do Cangaço, as greves anarquistas de São Paulo, greves do ABC, morros cariocas, bailes funk da periferia de São Paulo e por aí vai - poderia passar uma madrugada citando exemplos como esses. Militariza-se o combate ao narcotráfico ou ao crime comum como pretexto para que se recorra, sempre que possível, às Forças Armadas como uma guarda pretoriana que deve garantir…a Lei e a Ordem.
4.
Aquele seu tio do almoço de família sempre lembra, saudoso, de como na época do regime militar brasileiro era possível dormir de janela aberta, andar sem medo pelas ruas (salvo se você não estivesse sempre com carteira de trabalho no bolso), os trens chegavam no horário e se amarrava cachorro com linguiça. Após os civis reassumirem o poder, diz impávido o tio do pavê, é que o país caiu nessa criminalidade toda e agora estamos à beira da guerra civil.
Nada mais falso; ao contrário do que diz a burrice popular, a partir de 1964 os índices de criminalidade e violência deram um salto mortal e dobravam ou triplicavam no país a cada 10 anos. As muitas Cités Soleil dos morros ou periferias eram mantidas na alça de mira e na ponta da baioneta mas, ao mesmo tempo, aumentavam exponencialmente de tamanho, ao receberem cada vez mais gente sem perspectiva e sem meios de sobrevivência. A ruína da política econômica dos proto-Paulo Guedes, associada com a brutalidade do regime e a militarização das polícias, reproduzia o plano que transformou o Haiti no que é hoje. Ou que manteve a Bolívia segregada por séculos, transformou a América Central em terra de ninguém, deixou cicatrizes profundas em sociedades como as da Argentina ou do Uruguai, criou uma guerra não-declarada permanente e de baixa intensidade no México; exemplos não faltam.
As ditaduras de antes já não existem, mas da mesma forma que a economia latino-americana assumiu contornos neoliberais "modernizantes", a intervenção armada também se sofisticou. Hoje é feita por meio de dispositivos legais e sem que haja ruptura institucional. Em casos como o do Brasil, a tomada de poder, como aconteceu em 2018, se dá pelas urnas e as tropas vão para a rua amparadas pelas leis.
O que permanece igual sempre é o outro lado dessa corda que é permanentemente esticada em prol da lei e da ordem - as Cités Soleil de todas as Américas.
Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa que te recuerde
Si quieres mi machete, él te muerdeThis is not America, Residente
E aqui, repetindo o post de algumas semanas atrás, o vídeo de Residente: