Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Intro.
Previously on Locked Groove:
Madrugadas nas gigantes metrópoles cinzentas. Tacos e selfies na noite de Colonia Roma. Forró e roncos no amanhecer de São Paulo.
Nessa semana, a terceira (e, por enquanto, final) parte da série. E sim, o subtítulo do texto de hoje é um clichê óbvio demais para não ser usado.
O título vem da música do australiano Ben Lee, Gramercy Park Hotel.
4.Nova York

Lotado, dizia o concierge do hotel. Não temos como acomodá-los aqui depois do final dessa estadia, era o que ele falava. E eu olhava para ele e não parava de pensar em Bronson Pinchot, em Beverly Hills Cop. Acrescentou que o hotel era muito procurado, que as reservas eram sempre acertadas com muita, muita, muita antecedência, que tínhamos dado sorte de ter conseguido a semana anterior e que não havia como estender a reserva por mais um dia sequer. Deu um sorriso plastificado para mim, enquanto perguntava se poderia ajudar em algo mais, mas já virando nos calcanhares e indo atender um outro casal que havia acabado de chegar.
Eu estava ali porque tínhamos um dia a mais em Nova York - o voo de ida havia atrasado, e a volta foi remarcada para um dia depois.
9 dias antes, estávamos no ônibus, na pista do aeroporto. Vi um dos funcionários da companhia aérea subir a escada do avião pela terceira vez em pouco menos de 10 minutos, desde que havíamos parado ali com as portas do ônibus ainda fechadas. Mal chegou ao topo da escada; um membro da tripulação saiu pela porta e falou algo que não consegui entender.
Quando a porta abriu e ele entrou no ônibus lotado, eu já sabia o que ele iria falar. E poucos minutos depois, iniciamos o caminho de volta pela pista.
15 horas depois, chegamos a Nova York após um outro voo conseguido de última hora, com escala e troca de avião no Panamá e 2 cafés da manhã, um em cada voo. Mas não perdemos o horário de check-in do chatíssimo hotel, que afirmava que, caso o horário de entrada não fosse respeitado, a reserva da semana inteira cairia.
Comecei a procurar outro hotel no celular, ainda no lobby.
No dia seguinte, carregamos as malas para o táxi, em direção a Midtown. O concierge sorria sem parar para nós na despedida, como se tivesse tomado Prozac como café da manhã. E logo em seguida à nossa entrada no carro virou para o lado, o sorriso profissional desaparecendo tão rápido quanto surgiu, para dar uma instrução ou sei lá que caralhos ele iria fazer.
O novo hotel ficava várias ruas acima do anterior. Descendo do táxi na Lexington Ave, dava para ver o parque do outro lado da rua - e que dá nome ao hotel.
O Gramercy Park Hotel começou a ser construído em 1924, foi inaugurado em 1925 e, após expansões, chegou finalmente à sua forma final em 1929, pronto para receber hóspedes dispostos a gastar muito por um hotel de alto luxo em Nova York - isso, claro, se não tivesse ocorrido o Crash naquele mesmo ano, que entre setembro e novembro devastou a economia americana.
Ainda assim, famosos fizeram do hotel um porto seguro - Humphrey Bogart casou nos salões do Gramercy Park Hotel, a família Kennedy viveu no segundo andar por alguns meses antes de Joseph Kennedy virar embaixador no Reino Unido, outros ricos da época apareciam por lá, com o Rose Bar (do próprio hotel) em pleno funcionamento, mas a portas fechadas para os simples mortais, durante a Lei Seca.
Mas a decadência do hotel na euforia do pós-Segunda Guerra foi longa e o público milionário foi se bandeando para outros lados. Virou um lugar discreto, barato e procurado por quem buscava residência fixa. Artistas e bandas usaram bastante o hotel nas décadas seguintes: a piada era que você sempre passava pelo Gramercy Park Hotel “on the way up” ou “on the way down". Bandas se hospedavam lá quando não tinham acesso a orçamentos milionários e o sucesso de público ainda era modesto, ou, então, quando já haviam passado do seu auge e a conta não fechava mais.
Em 1971, Bowie ficou hospedado lá, quando ainda era um semi-desconhecido na América. Era a tentativa de Tony Defries, seu empresário, de torná-lo conhecido. Alugou o 1º andar inteiro para Bowie e sua entourage. Antes, certificou-se que as janelas eram bem acessíveis para as lentes dos paparazzi lá embaixo na Lexington, que buscavam alguma imagem sórdida do astro britânico da androginia. E pouco importava se muitos desses paparazzi eram contratados pelo próprio Defries, assim como algumas groupies que gritavam incessantemente na calçada.
Mesmo sem contar essa gente que vinha do outro lado do Atlântico, o hotel já era conhecido por bandas americanas. Big Star, em uma rara turnê em 1973, ficou no Gramercy Park Hotel. A proverbial falta de sorte da banda apareceu: durante um show para executivos de gravadora que não apareceram, alguém entrou nos quartos da banda e roubou o que encontrou, para raiva de Alex Chilton, que quebrou o que restou do quarto, até terem de sair às pressas, antes de a polícia chegar.
Era um hotel discreto, na verdade. Bob Dylan ficava incógnito lá por dias, quando queria desaparecer; outro Bob, Marley, ficou hospedado no hotel antes de seus famosos primeiros shows em NY, quando tocou no Max's Kansas City - que, aliás, ficava a algumas quadras dali. E essa proximidade foi um dos motivos que Lou Reed escolheu para ter o hotel como residência, nos anos 1970, quando era assíduo frequentador do Max's e namorava Rachel Humphreys, sua musa transgênero.
Reed gostava do Gramercy Park Hotel por ser perto de tudo o que ele gostava. O Max's e outros clubes que frequentava eram ali perto, não era longe do Meatpacking District e seus inferninhos gays, o consultório do “dr. Feelgood” que supria suas drogas legais era perto da Union Square e, finalmente, os dealers que ficavam em volta do muro do próprio Gramercy Park (o parque, não o hotel) garantiam uma boa caminhada no lado selvagem.
Outro que também fez do hotel sua base foi Hunter S. Thompson, enquanto lutava para terminar Fear and Loathing on the Campaign Trail, seu livro clássico sobre as eleições americanas de 1972, e que dava festas intermináveis nas suítes pagas pela Rolling Stone, onde não sobrava um espelho na parede.
Os Rolling Stones ficaram lá depois da primeira tour americana, em 1964. Clash ficava sempre lá quando ia aos EUA e Joe Strummer tocou no Rose Bar, anos depois. Até mesmo uns caipiras irlandeses se hospedaram no Gramercy em sua primeira turnê americana, antes do estrelato - Bono contou em entrevista, anos depois, que saiu com um casaco de pele que havia comprado em um brechó, se achando muito transgressor e rock and roll, às 9h de uma manhã de início de inverno na Lexington Ave; um ciclista passou por ele, diminuiu a marcha, sorriu e falou algo que Bono, 40 anos depois, ainda fica vermelho ao lembrar.
Ficamos no Gramercy Park Hotel muitos anos depois de tudo isso. Agora, é um hotel elegante, mas ainda alternativo. Edições originais de fotos de David LaChapelle estão por todos os cantos. Os quartos são todos escuros, mas elegantes, luz indireta - cortesia da arquitetura de interiores idealizada por Julian Schnabel. Uma pequena caixa bluetooth no formato de um amplificador Marshall é a única lembrança dos tempos mais rock and roll do hotel.
Fomos jantar ali perto, no Cosme, grande restaurante mexicano de Enrique Olvera. E, coincidentemente, no mesmo endereço onde era o famoso Max's Kansas City. Fomos a pé, voltamos a pé. Conversamos com um casal romeno simpático e cheio de referências - falamos sobre viagens, NY, cinema (haviam acabado de ver uma retrospectiva no Lincoln Center de filmes premiados com a Palma de Ouro em Cannes, incluindo um romeno).
A conversa começou quando eles se espantaram com o último prato, o Duck Carnitas, o mais emblemático do restaurante, e comentaram conosco que o garçom, mexicano, havia sugerido que experimentassem vários dos pratos bons dali. Acabaram com tanta comida que não conseguiam comer mais nada a essa altura. “Bom, algum homeless vai se dar bem essa noite”, falaram, enquanto pediam para embrulhar o que havia sobrado.
Pedimos também o Duck Carnitas - pato assado por muitas horas na coca cola. Parece bizarro, mas é incrível. E tudo o que comemos nessa noite foi muito bom. Em alguns casos, espetacularmente bom. E foi ali que tomou forma a ideia de irmos a Oaxaca e interior do México, como contei aqui.
Voltamos para o hotel sem procurar mais nada na noite de Midtown - tem muita coisa ainda por ali, apesar de os tempos em que Lou Reed morava no hotel já terem ficado para trás - para irmos ao Rose Bar, onde Joe Strummer já havia dado uma canja, Lady Gaga fez um afterhours pós-vitória nos Grammys há alguns anos, Madonna frequentava antes da fama ou onde, segundo lendas com pouca comprovação, Elton John, Nile Rodgers e David Bowie tocaram sem compromisso em alguma madrugada, em décadas passadas.
Falamos com alguém que parecia ser a hostess - não era, e pediram para esperarmos por ela no balcão externo do bar, antes da cortina que dava acesso ao bar propriamente dito. Não parecia haver uma grande fila à espera, mas mesmo assim, havia algumas pessoas na mesma situação que nós. A velvet rope na entrada do bar era o máximo que víamos - as cortinas encobriam a visão das mesas e não ouvíamos a música vinda lá de dentro.
Esperamos pela hostess embaixo da última foto de Tupac Shakur vivo. Ela falou conosco, foi para trás das cortinas por um tempo, e voltou como se houvesse recebido uma ótima notícia. Seguimos com ela e fomos levados a uma mesa. Estava bem calmo e sem muita gente. Nada rock and roll, nada glamouroso. Aparentemente, só havia ali um bom DJ, com um público de uns nerds de startups ou empresas de social media bem hipsters, conversando calmamente e tomando cerveja.
Pedi um Sazerac, depois outro. Mas nada parecia interessar ali. Meia hora depois, ainda no começo da madrugada, resolvemos ir embora para o quarto. Subimos com meu segundo Sazerac e com uma taça de vinho (e tínhamos ainda mais 2 garrafas, compradas em outro momento na Astor Wines, boa loja de bebidas).
Meio frustrados por não termos visto o Rose Bar que esperávamos, chegamos ao quarto.
E aí lembramos do mini-Marshall na cabeceira da cama.
Liguei, fiz toda a função de parear via bluetooth. Abrimos a cortina, a janela com vista para a lateral do parque. O quarto era grande - haviam dado upgrade por ser a lua de mel, como eu havia falado na hora da reserva.
Procurei a playlist que havíamos tocado alguns dias antes no casamento. De cara, pensei que não havia dado certo o pareamento; parecia que nada tocava. Mas, de repente, ouvi o crescendo da bateria leve, com o baixo simples e potente, daquele início “acho-que-ouvi-isso-com-Alceu-Valença" de Dance Yrself Clean, do LCD Soundsystem, banda local e sempre presente nas nossas madrugadas.
Ficamos ouvindo, bebendo, esperando.
O vocal baixinho de James Murphy subindo aos poucos. Bateria e baixo ao fundo.
E aí veio a virada de bateria.
E começou.
Don't you want for me to wake up?
Essa viagem de lua de mel aconteceu em junho de 2017. A última madrugada da viagem durou muito. No dia seguinte resolvemos tomar café da manhã no parque - uma das boas vantagens de se hospedar no Gramercy Park Hotel é que você tem acesso à chave do parque, que é particular e de uso apenas de quem é do quadrilátero em volta: mansões de gente rica, entre elas um clube do qual fazia parte Theodore Roosevelt e todos os republicanos históricos de NY, gente que tem cadeira cativa no board do Metropolitan, e o hotel. No meio do parque, uma escultura gigante de Alexander Calder.
No parque é proibido consumir comida ou bebida, dizia a placa na entrada.
O porteiro que nos acompanhou, sério, até o portão, falou um formal "enjoy your walk" e, olhando para os sacos de papel em nossas mãos, deu uma piscadinha e falou ‘fiquem mais nos cantos do parque, ali não tem câmera alguma e dá para comer tranquilo, sem ninguém ver".
😉