Locked groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Ressaca de feriado, semana de eclipse (no creo, pero…) e sem muito tempo para escrever numa semana mais curta que outras. Então pega aí um monte de textos desconexos escritos no mais absoluto freestyle, em um dia em que estava pensando em algumas teorias interessantes sobre o interior e sobre o Brasil. É o que tem pra hoje.

1. Rio acima
O sítio ficava na beira do rio. No início dos anos 1960, a cidade ainda não havia chegado até ali.
O primeiro povoamento daqueles lados do Estado de São Paulo veio por conta da navegação fluvial em direção ao interior, avançando pela Baixa Mogiana - o rio sempre foi importante na região e muitas indústrias instalaram-se lá por isso. Era, nessa época, uma cidade conhecida pela indústria cerâmica.
Minha mãe sempre contou desse sítio e de como, em finais de semana ou eventos festivos, alguns funcionários do meu avô (que era dono de uma cerâmica, junto com outros sócios) ficavam encarregados de churrascos. Eram pescadores exímios e preparavam peixes no fogo, pescados ali mesmo no rio.
Mas o que gostavam mesmo era da época da piracema. Colocavam redes na subida do rio, perto do sítio, e só aguardavam os peixes pularem alegremente na armadilha. Faziam iguarias no fogo: um bolinho de ovas que pegavam das fêmeas capturadas nas redes. Muitos bolinhos, já que sempre havia muita gente nesses churrascos.
Davam muita risada, felizes com a fartura, e contavam histórias como a da vez em que viram um jacaré saindo da mata pegando fogo, em brasa, e entrando no rio para escapar das chamas. O bicho, vermelho, brilhando na noite, entrava no rio e subia a fumaça resultante do contato com a água.
Não se sabe se eles mesmos acreditavam na história. Quem pode saber? 🤔
E tome mais cachaça e outro bolinho vindo direto do artigo 34 da lei 9605/98, antes de partir para a próxima patranha.
2. Quem não sabe
Educação física era sempre a aula menos aguardada no colégio de freiras onde eu estudava, nos anos 1980. O professor, que diziam ser ex-sargento do exército, era o exemplo mais bem-acabado da máxima que Woody Allen adaptou de George Bernard Shaw: “Quem sabe faz, quem não sabe, ensina. E quem não sabe fazer e nem ensinar, vira professor de educação física".
O sadismo do professor em punir os alunos com voltas sem sentido na pista de atletismo do colégio só encontrava paralelo com seu favorecimento dos filhos de amigos e conhecidos. Eu e mais alguns outros, que éramos da cidade vizinha, ficávamos sempre para o final na escolha dos times - não por acaso, muitas vezes não havia alternativa a não ser montar um time inteiro com meus concidadãos. Com o tempo, passamos a preferir assim.
Sob os olhares complacentes das freiras, o disciplinador já chegava com a cara emburrada, não importava o dia. O clima de sequestro se instaurava desde cedo pelo professor, que tratava os alunos aos berros e xingamentos. Uma vez, bateu boca com um aluno e murmurou “eu perco meu emprego, mas ainda meto a mão na cara dele".
O aluno tinha 9 anos.
Nunca vi acontecer alguma competição na pista de atletismo: só servia mesmo para o constante regime de punições físicas engendrado pelo suposto ex-militar. Talvez a aula toda fosse apenas isso: uma sequência sem fim de punições - voltas e mais voltas na pista, polichinelo, flexões de braço, agachamento - que emulavam, talvez, a vida nas casernas. Um dia, ele mandou um pobre coitado gastar mais um pouco do asfalto da pista por algo que ninguém entendeu. Na terceira volta, o menino sofreu uma queda. Fratura exposta no braço. Na semana seguinte, o valoroso reservista disparou: “também, o cara vai correr e fica olhando para os lados, mandando beijinho, tinha que levar um tombo daqueles mesmo para deixar de ser besta".
A compaixão faltava, mas a simpatia sobrava quando o professor conversava com as meninas de 14, 13 ou até mesmo 12 anos, durante as aulas - que eram conduzidas, no lado feminino, por uma professora que dava aulas de queimada ou ensinava técnicas para baliza de fanfarra. Enquanto fazia a tropa toda correr mais uma vez na pista, o professor reunia-se com o lado feminino da aula e ficava lá, todo sorrisos, beijinhos inocentes e, principalmente, todo olhos e abraços apertados.
Apitava lá do outro lado para mandar-nos dar mais uma volta, e logo voltava a total atenção aos conselhos que dava diligentemente e às piadas e elogios que distribuía para os 50% que não estavam sob sua responsabilidade docente.
3. Já podeis, da Pátria filhos
Parte de uma congregação espanhola, as freiras do colégio davam bastante atenção aos rituais patrióticos no colégio, naqueles tempos em que ainda existia Educação Moral e Cívica e OSPB na grade curricular.
Toda segunda feira havia hasteamento da bandeira. Em geral, as religiosas escolhiam quem tirava notas boas e não tinha faltas disciplinares, estava com a camisa limpa ou, na maior parte das vezes, quem tinha altura suficiente para fazer um bom papel na cerimônia.
Eu acabava sendo chamado mais vezes - além de good looks, a habilidade em subir a bandeira no espaço de tempo em que o hino nacional tocava também era valorizada, algo que muita gente não possuía. Em alguns casos, a bandeira subia cedo demais e o paspalho ficava lá olhando para os lados sem saber se voltava para a fileira de onde saiu ou se deveria reger a turma perfilada; em outros, o coitado precisava dar um sprint nos centímetros finais para que não tivesse que ficar lá lutando contra as roldanas e cordas quando já não havia fundo musical e todos olhavam para ele; ou, ainda, se subisse rápido ou lento demais, a bandeira poderia enganchar na corda e aí era uma luta inglória para desembaraçá-la. Acreditem, não era fácil para a maior parte dos alunos.
Um grupo de alunas-modelo, ao querer agradar o fervor patriótico da professora de Educação Moral e Cívica (era uma freira que parecia vinda diretamente das Falanges Franquistas), teve uma ideia brilhante: e se a classe toda decorasse os hinos e cantasse um diferente a cada semana? Claro que, por mais cordeiros em pele de cordeiros que sejam os brasileiros, não há hino suficiente para tamanha empreitada. Em poucas semanas, estávamos decorando coisas como a Canção do Expedicionário ou o hino da Marinha.
Da mesma forma que ser alto me fazia ser escolhido para hastear bandeira, na classe havia uma compensação pela altura - eu sempre sentava no fundo da classe, o que tornava mais difícil que a freira, míope e baixinha, conseguisse ver se eu estava cantando os hinos ou não.
Era uma alívio escapar das tarefas que as freiras valorizavam. E, vejo agora, era justificado: podia guardar forças e paciência, dessa maneira, para aguentar ler passagens e mais passagens da Bíblia, no púlpito, nas constantes missas em que o entediado padre não queria gastar sua voz com um bando de moleques de 1º grau. E nas quais eu sempre passava um aperto para evitar que notassem que eu nunca comungava, uma vez que não havia feito Primeira Comunhão (e nunca fiz, na verdade).
4. Já raiou a liberdade
E já que estou em terreno musical, uma pequena pausa, com uma canção singela do doido Charly García.
Obs: trocar Videla pelo ditador que melhor lhe convier.
yo que crecí con Videla
Yo que nací sin poder
Yo que luché por la libertad, pero ahora la puedo tener, oh(…)
Yo que crecí entre fachistas
Yo que morí en el altar
Pero a la noche estaba todo mal(…)
Ahora no estoy más tranquilo, ¡no!
¿Y por qué tendría que estar?
Todos vivimos sin aprender
Y todo el tiempo he sido yo un anormal
5. No horizonte do Brasil
Aparentemente, por esses dias, um bobo alegre com voz de apresentador de rifa de quermesse (talvez por isso capitaneasse há até pouco tempo o Big Brother Brasil) disse que "sonha com um Brasil em que as crianças aprendam estatística desde cedo".
Calma, não parece ser um ódio descomunal contra os guris, como ocorre com frustrados professores de educação física. É apenas um ódio a livros, literatura e tudo mais o que ele não entenda. Do fundo de seu armário, o alegre moço falou que livros de 1860 e, finalmente, todos os cobrados no ENEM, são difíceis e chatos; em seguida, dá vivas a Harry Potter, compara literatura clássica a tomar óleo de fígado de bacalhau e termina dizendo que não usa Dom Casmurro para nada, mas usa estatística todos os dias.
Pode ser fake. Não encontrei - e nem procurei muito - o original da citação. Mas, como diria o Arnaldo Jabor fake, que inclusive escreve melhor que o original, “se o meme da Internet é mais legal que a verdade, imprima-se o meme".
Estudei estatística em duas faculdades e a estatística não mudou minha vida, ao contrário do que disse o self-made presenter que, note bem, por acaso é filho de um diretor da mesma emissora de TV em que trabalhava. Mas, pelo menos, me ajudou a prestar atenção em alguns números que ajudam a entender um pouco a realidade. Tipo esses dados aqui, que encontrei num ótimo site, e que traz números da eleições para presidente desde 1989, na cidade em que morei até os 18 anos.
Resultados de eleições presidenciais, 1989-2018
(votos válidos no turno decisivo)
1989
Direita 73%
Esquerda 27%
1994
Direita 64,7%
Esquerda 35,3%
1998
Direita 65%
Esquerda 35%
2002
Direita 35%
Esquerda 65%
2006
Direita 46%
Esquerda 54%
2010
Direita 56%
Esquerda 44%
2014
Direita 68,5%
Esquerda 31,5%
2018
Direita 81,7%
Esquerda 18,3%
(Guarda aí essas informações. Volto nesses números depois).
6. Rio abaixo
"A pequena vila de Mogiguaçu é banhada pela margem esquerda de um rio do mesmo nome (…). É a sede de uma freguesia que antigamente incluía Franca, Batataes e Casa Branca, mas que, como a população tem aumentado muito, foi aos poucos se reduzindo ao território entre o Jaguarhymirim e o Rio Mogiguaçu". - Agustin de Saint Hilaire
Com um olhar atento para os detalhes digno de um artista, o botânico francês Augustin de Saint-Hilaire chegou ao Brasil em 1816, mesmo ano de outros compatriotas das tintas e pinceis, e em 6 anos por aqui percorreu mais de 9000 km e várias províncias do interior do Brasil. Foi responsável por uma das maiores fontes de informação sobre o Brasil do século XIX e catalogou meticulosamente tudo o que encontrou pelo caminho.
Descobri quem era Saint-Hilaire quando li o influente Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, um dos grandes intérpretes do gigante verde-amarelo. O historiador comunista, em seu monumental trabalho de 1942 (meio datado, mas ainda relevante hoje em dia), citava bastante Saint-Hilaire e me fez ir atrás de Voyages dans l’interieur du Brésil e, especificamente,Voyage dans les provinces de Saint Paul et Saint Catherine, um dos tomos da curiosa obra do francês. As poucas linhas dedicadas à região em que nasci sempre me chamaram a atenção. Não sou partidário de determinismos de qualquer vertente, seja geográfico, social, racial - mas sempre sorria ao ler sua descrição da região.
Ali, na Baixa Mogiana, região do Estado de São Paulo, Saint-Hilaire encontrou moradores que classificou como “primitivos e grosseiros, de hábitos rudes". Chamava à atenção, inicialmente, a violência sem sentido dispensada pelos locais aos cães e a outros animais de estimação; aos poucos, o pesquisador francês entendeu que era uma consequência da brutalidade de todas as relações de poder, seja com escravizados ou até mesmo com os próprios familiares ("La femme est trop souvent la première esclave de la maision, le chien est le dernier", para citar Saint-Hilaire literalmente).
Segundo narra o cientista francês, aquele rio que margeava a cidade, nascido na Mantiqueira, era repleto de excelentes peixes e considerado a razão principal do aumento da população local e do desenvolvimento de vilas nas redondezas por seu papel de integração fluvial.
Mas nem tudo era progresso nesse paraíso terrestre: em fins do século XVIII, uma epidemia desconhecida devastou a freguesia de Mogiguaçu, com alto índice de mortos após breve doença. Cólera? Varíola? Sarampo? Ou, sei lá, algum vírus ancestral da Gripe Espanhola ou do Covid?
Nessa mesma época, para evitar a fadiga de cruzar as águas caudalosas do rio atrás de pesca, os mogianos ancestrais se acostumaram a pegar quantidades prodigiosas de pescado sem esforço ao jogar ao rio o timbó, nome dado a várias espécies de cipós pertencentes à família Sapindaceae, tóxicos ao extremo - grosso modo, os peixes se enfraqueciam e ficavam desnorteados em meio às águas tóxicas. Os pescadores mandriões podiam tirar sua boa sonequinha despreocupada, sabendo que os grandes pintados, dourados e mandis do rio iriam acabar presos sem problemas em suas redes.
Ótima ideia, aparentemente. Quem não gostaria de poupar esforços e ver os peixes milagrosamente se multiplicarem aos seus pés? A esperteza dos pescadores ribeirinhos de Mogi Guaçu, como falei lá no começo do texto, é uma constante, pelo visto - tem raízes profundas.
Mas a concentração absurda dessa toxina na água e nos peixes consumidos pelos preguiçosos pescadores e pelos inocentes compradores das feiras locais levou a um desastre ecológico e humanitário: a tal epidemia nada mais era do que envenenamento cruzado, o resultado do método preferido de pesca dos locais.
Em 2021, a cidade continua famosa por seus restaurantes ribeirinhos, sempre lotados por clientes que pedem pintados e outros. Nenhum desses peixes existe mais no rio, por conta da poluição e da pesca predatória - dizem que agora vêm do Mato Grosso, refrigerados, onde essas espécies ainda vivem por enquanto.
Há alguns meses, o professor de educação física do colégio em que estudei ganhou uma página inteira no jornal local, pelos bons serviços prestados à comunidade. Segundo o jornal, “(…) expressiva parcela dos estudantes, para quem ele era responsável por transmitir ensinamentos, sequer imagina ter sido aluno do preparador físico responsável pelo esquadrão de 1970*". 😒
*claro que não da seleção canarinho de 1970, e sim o modesto ____ _____, da segunda divisão do Paulista à época.
O colégio das freiras espanholas continua lá, às vésperas de completar 110 anos.
Epílogo: já tive pressa
O que isso tudo significa? Não arrisco dizer. Mas tenho a sensação de que a estatística pode ajudar a dizer se essas pequenas histórias que contei aqui não existiram por acaso.
O olhar atento de estatístico (ó, ó, o apresentador loirinho vai até suspirar agora) voltaria aos números que apresentei lá em cima. Mas se não leu mais do que Harry Potter, não vai conseguir fazer associação nenhuma.
Talvez valha olhar os anos de 1989 e 2018, que são bem próximos na unanimidade em torno de um candidato específico.
30 anos depois, a repetição. Assim como o eterno ciclo do conservadorismo
Yo que crecí entre fachistas
Yo que morí en el altar
Pero a la noche estaba todo mal-Charly García, Demoliendo Hoteles, 1984