E você se pergunta: bom, como cheguei aqui?
Sempre teremos a música, quando mais precisarmos.
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1.
Saí da psicanálise - sim, apesar de encher vocês aqui com vozes da minha cabeça, eu tenho ajuda profissional também - e andei por algumas quadras, aparentemente a esmo. Meio como sempre faço nesses dias em que tenho sessão.
Cheguei naquele delta dos rios de carros que desaguam da Paulista, da Rebouças e da Consolação, sempre a pé. Ali perto, um lugar bem conhecido: o Cine Belas Artes, que está lá desde antes de eu ter chegado a São Paulo e já passou por muitas encarnações. Ainda resiste, um dos poucos cinemas de rua que ainda existem em São Paulo (e acho que quase todos ficam a no máximo 2 quilômetros da minha casa).
Olhei o que estava em cartaz. Escondido em uma única sessão, no final da tarde, estava lá Stop Making Sense (1984), de Jonathan Demme. Já vi umas cinco vezes, no mínimo (e incontáveis outras vezes em que vi trechos aleatórios). Mas não dava para perder. Não naquele momento. Comprei ingresso, sem fila, no meio da tarde escaldante de inverno. Já falei antes como ir ao cinema durante a semana, à tarde, é uma libertação - bom, aí estava, novamente, esse pequeno pedaço de papel para uma hora e meia de liberdade condicional.
Desci as escadas, entrei na sala. Outros 6 ou 7 estavam na sala. Quando as luzes se apagaram, tive um sensação boa. Em pouco tempo, os créditos iniciais com o lettering do genial e influente Pablo Ferro apareceram na tela.
2.
Talking Heads é uma daquelas bandas que não precisam voltar. Não tem nem motivo para isso. Fizeram grandes discos entre 1975 e 1991, excursionaram muito, venderam milhões de discos, tiveram hits. Irrepreensível e com o timing correto: começaram com o Punk e terminaram exatamente em 1991, The Year Punk Broke, como diz um documentário famoso dos anos 1990. Foi quando Nirvana e outros levaram o Punk rock puro, puto e esporrento para as paradas de sucesso.
A essa altura, David Byrne já navegava por outras águas e os outros três integrantes, Tina Weymouth, Chris Frantz e Jerry Harrison não queriam nem vê-lo pintado de ouro ou num terno gigante.
Stop Making Sense, o filme, é de 1984. Pega o auge da Imperial Phase da banda, quando nada poderia dar errado. Eram uma das bandas mais vendidas do mundo sem se venderem - faziam a música que queriam, em seus próprios termos, com total liberdade e sem perder a credibilidade de originais do punk. O filme é dirigido por Jonathan Demme, então vindo do cinema alternativo e pronto a estourar com Totalmente Selvagem, no ano seguinte. Depois, fez o Silêncio dos Inocentes (1991), um dos três únicos filmes da história a ganhar o Big Five no Oscar, os cinco principais prêmios, que são direção, atuação masculina e feminina, filme e roteiro.
O filme com o Talking Heads é uma colaboração. David Byrne veio com o conceito - e que puta conceito simples e bom. Um solitário Byrne entra no palco. Ao fundo, tudo está como se ainda fosse um ensaio. Paredes descascadas, escada, um monte de tranqueiras que parecem largadas lá. Byrne entra com um aparelho de som portátil com tocador de cassete em uma das mãos, um violão na outra; coloca o aparelho no chão e dá play na fita cassete. Começa um beat instrumental que ele logo acompanha no violão. É Psychokiller, sucesso da banda, em versão acústica desconstruída. A partir daí, não vou dar spoiler para quem não viu - eu, que já vi inúmeras vezes desde o primeiro VHS zoado há muitos anos, quase caio na tentação de falar o quão genial é a construção (e descontrução) do filme. Mas não vou fazer isso. Veja e depois me conte.

3.
O disco de estréia dos Talking Heads tem um dos melhores títulos da história: Talking Heads: 77, do próprio ano. Era música para o momento. Música nova, sem nada a ver com o progressivo que dominava o rock cabeção, o yacht rock que dominava as festas com muito brilho e realce, o hard rock que dominava os espinhudos adolescentes toscos. Com pegada de funk e da black music, tinha mais a ver com o pop e a nascente Disco que bombavam nas pistas de dança. Era dançante, mas de um jeito esquisito. Não é à toa que David Byrne, um dos frontmen mais improváveis do rock, poderia cobrar royalties até hoje de Arnaldo Antunes, que tem pelo menos uns 80% de sua presença de palco chupinhada de Byrne.
Talking Heads faz embaixadinha na frente das bandas de rock burro, dá chapéu nos progressivos cheios de solos longos e milhões de notas, toca de letra pelo meio das pernas da música pop safada de rádio. Junta tudo e mostra o que era o Punk de verdade: uma linha direta com a grande música negra dos EUA e do mundo, pegando referências de tudo quanto era lugar, sem complicar, sem querer ser cabeçudo, mesmo quando as referências eram mais - como se diz mesmo? - ‘artísticas’. Algum bocó inventou o termo Art Rock para definir certos artistas e bandas como Talking Heads. Pode ser. Mas é arte popular, que sabe que no rádio tem coisa boa, que está aberto a ouvir outras coisas e não precisa ter o cérebro derretido numa eterna adolescência, como os Ramones.
São herdeiros diretos de David Bowie.Tanto que seu braço direito, o ubíquo Brian Eno, o careca mais brilhante da música, produziu os três melhores discos da banda entre 1978 e 1980. Na época de Stop Making Sense, Talking Heads estava a caminho do superestrelato. Era um máquina de grooves gigantes, misturando Parliament Funkadelic, Motown, James Brown, Afropop, Salsa, Nuyorican sound e muito mais. E olha que Byrne ainda nem tinha entendido como colocar música brasileira nesse meio.
4.
A intersecção de Byrne com a música brasileira é bem interessante. Daqueles gringos que viajam o mundo caçando discos, o cara tem um conhecimento ímpar da música brasileira. Quer prova?
Byrne saiu em carreira solo antes mesmo do fim da banda e o contrato com a gravadora incluía o financiamento para seu próprio selo musical, por onde lançaria todas as suas obsessões e esquisitices que garimpasse pelo mundo. O Luaka Bop, o selo que criou, nasceu dos cassetes de Tropicália que ele gravava para amigos - se bobear, por culpa dele havia quase tanta gente na Nova York dos oitenta viciada em música brasileira do que havia de viciados em pó.
Nada mais natural do que tentar resgatar uns brasileiros obscuros, para lançar o selo com todo o impacto devido. E Byrne foi atrás de um ídolo seu que, na época, era bem alternativo.
Por meio de uma rede de contatos que começou com Arto Lindsay, o gringo mais brasileiro que existe, Byrne chegou ao número de telefone de uma vizinha de Antônio José Santana Martins. A abnegada foi chamar o esquisitão que morava ao lado. Byrne ouviu do outro lado da linha o alô preguiçoso de um cara que só conhecia por discos de vinil garimpados em viagens. Era Tom Zé.
“O que está fazendo agora?” perguntou o gringo, no sentido de tentar saber no que Tom Zé, desaparecido há tempos, estava trabalhando.
“Agora? Estou começando um picolé”, respondeu o simpático baiano.
Tom Zé até hoje tem contrato com a Luaka Bop e sua carreira renasceu por conta do fã gringo que não desistiu de ir atrás do seu ídolo sumido.
Anos depois, em 2004, Byrne estava no Brasil e alguém pensou em fazer um bem-bolado com Caetano Veloso para umas músicas no Video Music Awards da Emetevê. Foram lá os dois amigos - Caê e Byrne se conheciam já há muito tempo - e era grande a expectativa.
Posicionaram-se para começar a música e corta para o intervalo. Problemas técnicos, disse Selton Mello, que apresentava a premiação ao vivo. Na volta, nova tentativa. Nada, e mais desculpas e mais enrolação enquanto Byrne e Caetano esperavam.
Na terceira tentativa, começa a música dos dois - e logo os amplificadores miam. Nada de som. Caetano, irritadiço e já coringando, profere as imortais palavras de sinhozinho, ao vivo: “Ô Emetevê, vamo consertar essa porra???”
5.
Talking Heads não volta mais. Byrne tem múltiplos interesses, além do Luaka Bop. Escreve, faz musicais na Broadway, tem um site/newsletter bem legal chamado Reasons to be Cheerful que só fala de boas iniciativas para manter nosso planeta funcional e operando. Já fez de tudo e não precisa voltar ao passado.
Os outros três o odeiam; Byrne, por sua vez, lhes dá razão e sabe o que fez para isso. Talvez seja a banda mais improvável para uma volta. Ofereceram agora, por ocasião do lançamento da cópia restaurada de Stop Making Sense, um troco de 80 milhões de dólares só para toparem uma tour que culminaria com um show no festival Coachella. Elegantemente disseram não.
Se ainda está lendo até aqui, já percebeu que por esses lados aqui é só fã-clube e torcida e não sou isento. Mas espero que de fato os quatro não voltem. Já realizaram tudo o que precisavam, são famosos, ricos e têm uma obra de responsa. Que fiquem quietinhos repousando nos louros da fama. O filme mostra a banda no auge, um rolo compressor de bons sons e boas ideias - para que voltar agora?
6.
Sou fã há anos, vi o filme inúmeras vezes, tenho todos os discos, ouço sempre. Mas o dia de hoje, 12 de setembro (que é quando escrevo), trouxe uma grande coincidência da qual só me toquei depois que já estava na frente do cinema.
Em um 12 de setembro como hoje, só que em 2020, minha mãe faleceu por conta da Covid. Já escrevi antes sobre isso.
Quando ela foi internada, ainda com a tosse e sintomas iniciais, era uma precaução para observarem de perto como evoluiria o quadro. Mas, naquela época (que muita gente parece ter esquecido), havia motivo para preocupação. Passei o dia sem saber o que fazer, enclausurado em casa.
Liguei a TV para pensar em outra coisa. Vi que no streaming do Belas Artes, desse mesmo cinema onde hoje vi o filme na tela grande, estava disponível o Stop Making Sense. A última vez que eu havia visto tinha sido num festival de documentários musicais bem bom, o In-Edit, alguns anos antes, na Cinemateca. Foi na parte externa, projeção num telão e o público numa grande pista de dança improvisada. Não pensei duas vezes - fui no play direto.
Sorri quando Byrne entrou no palco, ainda com umas tranqueiras de fundo, uma escada na frente da parede descascada, ele sozinho com o microfone num pedestal, um violão numa mão e um aparelho de som portátil com um tocador de cassete na outra. Coloca o aparelho no chão, aperta o play. Começa um beat que ele acompanha no violão. Psychokiller, versão acústica.
Por uma hora e meia, assisti a um filme que já havia assistido muitas vezes antes. Quase levantei para dançar, acompanhei com os pés, cantei junto. Por uma hora e meia, tive um conforto que não imaginava ter naquele dia.
Bom, como cheguei aqui mesmo? Não importa. Só sei que, sempre que precisar, terei esse filme e, principalmente, a música.
Uma volta deles seria mais um clichê pronto, à moda covers de si mesmos. Situação análoga à dos filmes ditos definitivos que por razões comerciais ganham uma (ou várias) sequências - exemplo aqui não falta, em tempos de falta de criatividade quando ficam requentando histórias pra ganhar dinheiro, Star Wars e Matrix que o digam.
Me lembro de uma entrevista de John Lennon, que apareceu no Anthology, em que ele expressa irritação com as pessoas por uma volta dos Beatles: "não entendo isso, está tudo lá nos discos que lançamos, não vai sair de lá nunca!".
Foi, não será mais. Lembrem-se disso.
David Byrne é demais. Não só ajudou a moldar a música com sua própria obra, como também ajudou artistas essenciais a fazerem o mesmo. Que cara bacana.