Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Essa semana, um formato diferente. Vou colocar aqui esse texto sobre 3 drinques e suas histórias fabulosas e vou fazer um crossover no meu Instagram também. Lá, vou postar os drinques que cito, com detalhes; aqui conto a história completa dentro do tema da semana. Saúde e boa leitura.
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Intro.
"Os dois minutos mais rápidos e excitantes da história do esporte", diz o superlativo slogan do Kentucky Derby, a corrida que é o orgulho de Louisville, cidade bem no centro do estado americano de Ohio, famosa também por ser “a capital do Bourbon". Outro slogan superlativo.
Louisville é bem americana. Tanto que, a exemplo de muitos outros lugares dos Estados Unidos da América, a história da cidade tem um ar de excepcionalidade bem aparente. É como um Destino Manifesto para grandes feitos: o ponto inicial da expedição Lewis-Clark de 1803 a 1806, que "descobriu" boa parte dos EUA; a base operacional com o maior número de tropas da União na Guerra de Secessão de 1861-1865; um dos primeiros lugares a dessegregar a população. E tem grandes estatísticas também: a maior e mais antiga corrida de cavalos da América; o maior número de destilarias de whiskey, no estado que tem o maior número delas no país todo; a segunda maior cadeia de Fast Food do mundo, o Kentucky Fried Chicken; e, por falar no patrono dela, Coronel Sanders, tem também o maior número de coronéis do Kentucky (esse cargo honorário é concedido a cidadãos de bem do estado desde o século XVIII e não tem nada a ver com combate ou expertise militar, e sim com hierarquia social).
É uma das cidades mais antigas do meio-Oeste americano, fundada em 1778, em homenagem ao então rei da França, Louis XVI, déspota que apoiava as 13 colônias na luta contra a metrópole inglesa. Kentucky fica bem no limite entre Norte e Sul dos Estados Unidos e foi peça-chave na Guerra Civil e na abolição da escravidão nos EUA. Ficou do lado da União na Guerra, apesar de ser escravocrata e fortemente identificado com o sul. É uma terra de uma grande classe trabalhadora orgulhosa e conservadora, mas também de grandes fazendeiros, coronéis e cavalheiros sulistas de famílias tradicionais - e ainda mais conservadores que a população média.
O Kentucky Derby é um exemplo claro da excepcionalidade de Louisville: é a maior e a mais tradicional prova de hipismo dos EUA. Disputada todo primeiro sábado de maio, ininterruptamente desde 1875 -a única mudança foi durante a pandemia, em 2020, quando foi reagendado para setembro. No próximo 7 de maio será realizada a 148ª edição, em Churchill Downs. É uma das grandes audiências da TV aberta nos EUA e atrai a mesma cobertura jornalística de eventos esportivos de massa mais conhecidos, como a prova automobilística das 500 Milhas de Indianapólis.
Nesse dia, o drinque mais consumido nos EUA é o Mint Julep, oficialmente reconhecido como o "drinque do Kentucky Derby". São 2 minutos de corrida: mas o público e, na verdade, qualquer um que esteja na cidade para a corrida, mesmo sem estar em Churchill Downs, começa a consumir Mint Juleps aos galões logo ao nascer do dia.
“That whole thing,” I said, “will be jammed with people; fifty thousand or so, and most of them staggering drunk. It’s a fantastic scene — thousands of people fainting, crying, copulating, trampling each other and fighting with broken whiskey bottles (…) Thousands of raving, stumbling drunks, getting angrier and angrier as they lose more and more money. By midafternoon they’ll be guzzling mint juleps with both hands and vomiting on each other between races (…)”
He looked so nervous that I laughed. “I’m just kidding,” I said. “Don’t worry. At the first hint of trouble I’ll start Macing everybody I can reach.”
- Hunter S. Thompson, The Kentucky Derby is decadent and depraved, 1970, Scanlan Magazine, compilado em The Great Shark Hunt, 1979.
O diálogo entre o jornalista Hunter S. Thompson e o artista Ralph Steadman é puro gonzo journalism - segundo dizem, o primeiro momento em que se materializou o estilo que tornou Hunter famoso. Em poucas páginas anárquicas e que não poupam nada nem ninguém, HST usa o Kentucky Derby e Louisville como um microcosmo dos EUA do início dos anos 1970.
Thompson, nativo de Louisville, sugere a Steadman que mergulhem nos Mint Juleps, para entrarem no clima do Derby. É a deixa para um final de semana inteiro de bebedeira e bagunça no puro estilo gonzo. Ao final, sequer conseguem assistir à corrida. E isso é o que menos importa no clássico texto de Hunter.
O Mint Julep virou tradição no final de semana do Kentucky Derby. É um drinque antigo do sul dos EUA, mas não é originário do país. O nome vem do persa gulab ou do árabe julab, de acordo com Charles H. Baker, célebre cronista de viagens e bebedeiras internacionais. Sempre composto por uma bebida forte (no caso americano, bourbon) macerada com hortelã e açúcar. No século XIX, teve a adição de gelo picado. No Kentucky, é servido em copos e taças de alumínio ou de prata. Centenas de milhares são consumidos no final de semana da corrida e, não raro, muitas das baixarias e brigas na cidade acontecem por conta do consumo excessivo dos Juleps.
Um drinque aparentemente simples, mas que tem uma certa sofisticação na forma como simple syrup, bourbon e gelo se misturam ao hortelã. Fácil tomar vários desses, ainda mais se o dia estiver bem quente, como acontece no começo de maio em Kentucky. Os Juleps originais eram feitos por trabalhadores, e eram considerados como bebida matinal. Assim como a Canchánchara dos trabalhadores escravizados cubanos, que deu origem à caipirinha segundo alguns relatos, os Juleps surgiram para animar trabalhadores frente a longas jornadas, em geral sob sol escaldante. Daí a virar o drinque oficial do Kentucky Derby e bebida elitista e preferida dos milhares de coronéis do estado, foi um longo caminho.
Após a corrida que mal viram, Hunter e Steadman emendaram bebedeiras e loucuras que, segundo HST, só não fizeram Steadman se foder em Louisville por pura sorte. Hunter, inclusive, diz que ele próprio agradece ao acaso por simplesmente SAIR VIVO de Louisville. Das poucas passagens que lembra claramente, Hunter conta que um amigo seu de infância partiu para cima de Steadman na sala de bilhar do Pendennis Club, o mais tradicional da cidade. O embebedado aristocrata kentuckiano acusou o cartunista inglês de estar num clima de paquera e azaração com sua esposa; esclarecido o mal-entendido, e com o valentão descamisado e alcoolizado contido por outros frequentadores do clube, Steadman resolveu fazer as pazes e ofereceu à moça em questão um desenho que havia feito dela, minutos antes.
Hunter e Steadman saíram em disparada pelas grandes portas do clube, perseguidos pela turba. HST nunca mais foi admitido no clube.
O Pendennis Club, fundado em 1881, é um Gentlemen Club nos moldes britânicos, como vários outros existentes no arquipélago britânico e por todo o antigo Império, mundo afora. Devidamente segregado, só permitiu a entrada de “pessoas de cor” em 2006 - na verdade, o clube era bem democrático na abrangência do segregacionismo: mulheres, latinos, católicos e, principalmente, judeus não podiam ser membros até então. Não deixa de ser uma ironia que, há alguns anos, a rua onde o clube está instalado se chama Boulevard Muhammad Ali, em homenagem ao campeão mundial dos pesos-pesados, que nasceu na cidade.
O clube, na tradição de superlativos e excepcionalidade de Louisville, clama para si a paternidade de outro coquetel, bem mais famoso que o Mint Julep: o Old Fashioned. Não é qualquer coquetel - simplesmente é o mais consumido nos EUA e no mundo. Confrontado com registros mais antigos de drinques similares, o Pendennis informa, orgulhosamente, que a fórmula que fez o coquetel ser famoso nasceu ali. E é isso - que outros busquem a verdade, se há outra.
É um drinque à base de Rye ou Bourbon, com simple syrup, bitter (Angostura ou Peychaud), um simples twist de limão e uma grande pedra de gelo. O historiador e entusiasta da coquetelaria, Robert Simonson, afirma que o drinque aparece com esse nome pela primeira vez em um livro de 1888 - mas já aparecia no livro de Jerry Thomas, de 1862, com o nome de Whiskey Cocktail. A partir daí, a fórmula foi sofrendo alterações, com adição de outros ingredientes e preparos diferentes. O novo nome apareceu, segundo Simonson, quando bebedores tradicionalistas resmungões começaram a pedir o coquetel, anos depois, à moda antiga - sem firulas, de volta ao básico do whiskey, açúcar, gelo e bitters.
A nebulosa história da origem no Pendennis Club não se sustenta - mas, mesmo assim, é defendida até hoje pelos membros do exclusivo clube, largamente com base em relatos orais de garçons e ex-empregados, registrados em segunda ou terceira mão. Um livro de cocktails publicado em 1914 por um ex-head bartender do Pendennis lista o Old Fashioned entre os drinques, mas não faz qualquer menção a ter sido inventado no clube - estranho, para alguém que trabalhou por décadas no lugar e ainda ocupava a posição, quando o livro saiu.
De qualquer forma, a receita do Pendennis traz uma das formas de se fazer o drinque hoje em dia: macerar laranja, cereja e bitters com simple syrup ou um cubo de açúcar, antes de colocar gelo e whiskey, e estabelece o bourbon como a variedade adequada para o coquetel.
Essas são as discussões que mais se travam sobre o drinque hoje em dia: se as frutas devem ser maceradas, se deve ser usado um cubo de açúcar ou simple syrup, se a bebida é o Rye ou o Bourbon, se bitters se resumem apenas a dashes de Angostura ou se outro bitter pode ser usado. De qualquer forma, há tantas formas de se fazer o drinque, e todas são tão interessantes, que não é surpresa ser o drinque mais vendido do mundo.
Eu particularmente gosto da forma mais simples: sem muitas firulas como macerar frutas. No máximo, com um twist de limão ou laranja - e, uma vez ou outra, com uma cereja. Mas há outros preparos interessantes, e o que eu mais gosto, pelo ineditismo e personalidade, é o jeito dos bartenders de Buenos Aires de fazer o drinque: cobrindo diligentemente todo o interior do copo com uma pasta feita com açúcar e bitters. O sabor vai se revelando aos poucos, num drinque com muitas camadas de texturas e sabores.
Assim como o Mint Julep virou o drinque oficial do Kentucky Derby e, para muitos, foi inventada orgulhosamente por locais de Louisville, o Old Fashioned também acaba sendo um exemplo de como uma bebida simples começa a ser alvo da disputa de versões e de reivindicações de autoria. Meio como um programa sensacionalista barato ao contrário, todo mundo quer ser progenitor da criança.
Louisville, a aristocrática cidade dos coronéis e do bourbon, tem mais uma boa história nessa galeria de coqueteis: a do Seelbach, um coquetel até pouco tempo desconhecido e que confirma o Destino Manifesto da cidade para o raio gourmetizador.
A poucas quadras do Pendennis Club encontra-se o Seelbach Hotel, fundado em 1903 por dois irmãos alemães. Com mármore importado da Itália, prataria da França, madeira das Antilhas, o Seelbach era o hotel mais refinado de Louisville e, ainda hoje, recebe presidentes e milionários do mundo todo.
Em 1918, diz a lenda, um segundo-tenente de Saint Paul, Minnesota, estava aquartelado em Louisville à espera de embarcar para a Guerra na Europa. O jovem Francis Scott saiu para uma noite de bebedeiras com os amigos do alojamento - a essa altura da história, já deu para entender que Louisville é pródiga em putarias etílicas. Foram parar no bar do hotel Seelbach, e Francis Scott, com seu elegante uniforme de segundo tenente confeccionado pela Brooks Brothers, só pensava nos livros que queria escrever o quanto antes, uma vez que achava que morreria nos campos de batalha da Europa. No balcão, na velha conversa entre amigos de ocasião que tomaram one too many do Seelbach Cocktail, drinque emblemático do hotel, fez amizade com George Remus, parça de Al Capone e contrabandista de whiskey durante a Lei Seca. Foi uma revelação para o aspirante a escritor: Remus serviu de base para o protagonista de seu futuro livro e o hotel Seelbach, como locação para a cena da recepção de casamento de Tom e Daisy Buchanan, personagens importantes.
O livro? O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, de 1925.
Seria lindo, se verdade fosse.
Fitzgerald passou poucos dias em Louisville e, no máximo, registra-se que foi expulso do bar do Seelbach por comportamento inconveniente após enfiar o pé na jaca com força. Não teria encontrado Remus, gângster de Cincinnati, que só começou a ter relevância anos depois, durante a Lei Seca. E sequer havia conhecido ainda Zelda, que é a inspiração para Daisy Buchanan. É certo que o notório bebedor Fitzgerald sempre procurava bons bares por onde estivesse - e o Seelbach devia ser ótimo durante a Lei Seca, quando a venda e o consumo de bebidas alcoólicas era proibido para os simples mortais, mas nos hotéis a emenda constitucional da proibição era solenemente ignorada. Tendo em vista que o Seelbach até hoje mantém no seu site que mafiosos como Lucky Luciano, Al Capone e Dutch Schultz visitaram o bar - acho que até gostariam de ter ido ao Pendennis, mas italianos católicos e judeus não eram bem-vindos - não é de se estranhar que Fitzgerald tenha visto isso como uma chancela para ir lá em algum momento antes de partir para a Europa.
O hotel Seelbach em Louisville não é, então, o berço da The Great American Novel que é O Grande Gatsby. Mas é onde nasceu um coquetel com o nome do hotel e que teria sido o legendário elo para a conversa profunda na madrugada entre Francis Scott Fitzgerald e George Remus, o contrabandista de bebida.
O Seelbach Cocktail também tem uma história bonita: em 1912, um casal em lua de mel teria pedido um Manhattan e um Champagne Cocktail. O bartender, ao abrir a garrafa do espumante, teria inadvertidamente derrubado uma parte no Manhattan e, assim, criado por pura sorte o coquetel que o hotel tomou para si. Essa história era tão fantástica que ficou durante anos perdida e foi contada pelo bartender do Seelbach, Adam Seger, que descobriu a receita nos porões do hotel.
E yadda, yadda, yadda.
Como todos os mitos de origem de coqueteis, a lenda é sempre bem diferente da verdade. Anos depois de ter deixado o hotel, Seger admitiu que havia inventado o drinque. Quando assumiu o bar do hotel, descobriu antigos cardápios e achou estranho não haver um Seelbach Cocktail em lugar algum. A saída? Criar o seu próprio. Seger mesmo diz: “Eu era um ninguém. Sabia que poderia criar um grande coquetel. E eu trabalhava no hotel com total liberdade. Por que não tentar?"
Seger nada mais fez do que aquilo que vem sendo feito em Louisville há séculos. A famosa frase do filme de John Ford - When the legend becomes fact, print the legend - casa perfeitamente com o Kentucky Derby, com a cidade, com os drinques, com Fitzgerald, com Hunter S. Thompson.
Hunter, nascido na cidade, havia convencido o editor da Scanlan a pagar bem para que ele fizesse uma cobertura do Kentucky Derby. Apressado pelo deadline que se aproximava e sem ter conseguido ver a corrida, Hunter meteu o doido e escreveu o que queria, achando que daria para enganar, mas já antevendo que não seria mais chamado para freelas. Deu certo. Como ele disse, foi como cair no fosso de um elevador direto para um mar de sereias. Gonzo Journalism nasceu por acaso, mas muito mais por necessidade do que por desejo.
O próprio Hunter desnudou, em artigo anterior, a tão falada dessegregação de Louisville, então manchete nos jornais de 1963. Escolas, comércio, transporte público e repartições públicas passaram a ser oficialmente multirraciais, mas seu artigo A Southern City with Northern Problems mostrava como o "poder branco” ainda segregava, de forma sutil. E o Pendennis Club demorou mais de 40 anos para abrir seus salões a quem não fosse anglo-saxão.
Kentucky, inclusive, é um grande exemplo de como se contam histórias fabulosas de acordo com a necessidade. Mesmo com a importância do estado na Guerra Civil e de ser o centro operacional do exército da União, ninguém era muito entusiasta da abolição da escravidão por aquelas bandas. Em 1861, o Kentuckiano Lincoln, concorrendo com uma plataforma abolicionista, teve 1% dos votos no estado, que preferiu votar num candidato escravocrata do Tennessee, ao mesmo tempo em que mais da metade dos entrevistados em uma pesquisa diziam não ver problema algum na escravidão. O Kentucky Derby ilustra isso: dos primeiros 28 vencedores, 15 eram afro-americanos. A partir de 1902, jóqueis pretos rarearam e, de 1921 a 2000, nenhum preto concorreu na prova. E, ainda assim, o Estado se orgulha de seu "papel fundamental" na Abolição.
Não é surpresa que se tente sequestrar a história do Old Fashioned, ou que um drinque “histórico" como o Seelbach não passe de armação; ou, ainda, que o Grande Gatsby não tenha tido origem na cidade. A tradição e a excepcionalidade, na cidade dos milhares de coronéis que nunca viram combate, são relativas e, ao mesmo tempo, valorizadas. Louisville, cidade batizada por republicanos em homenagem a um monarca despótico, só segue a máxima cínica tão bem demonstrada por John Ford em O Homem que Matou o Facínora: quando a lenda torna-se fato, imprima-se a lenda.