Zer ikusi, hura ikasi*
*Antigo ditado Basco (E sim, eu também não entendi porra nenhuma).
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1. Intro
Quando as placas começam a apresentar palavras numa língua que você não faz a mínima ideia do que significa, dá para saber que saiu de Castilla y Léon e entrou em praticamente outro país.
É uma das primeiras indicações de que o Euskadi, ou Euskal Herria - o País Basco - tem uma identidade diferente daquela Espanha que ficou para trás na estrada. A língua se destaca logo de cara: incluído no grupo das paleo-européias, o Euskara (ou Basco) não tem parentesco nenhum com o que é falado em volta. Na verdade, é a única língua dessa categoria paleo-tchananans que ainda é usada na Europa. Todas as demais línguas atuais são derivadas de vertentes chamadas Indo-européia ou Ural-européia. O Latim do Império Romano matou muito do que era língua ou idioma original por ali e a migração de outros povos orientais ajudou a exterminar o restante da diversidade linguística ancestral.
Talvez seja essa a birra anti-imigração de muitos europeus hoje em dia: seus antepassados, um dia, também foram imigrantes. 🤷♂️
Eu, que não sou linguista, não entendo bem dessas coisas e vendi o peixe para vocês pelo preço que paguei. Não é minha área de estudo e o que falei aqui sobre linguística foi só uma geral bem safada, para pelo menos introduzir o assunto.
O importante mesmo é saber que, por mais que você tente entender, Euskara é tão diferente para nós aqui do Bananão quanto a língua portuguesa falada por um português. Então o negócio é dar uma de Joel Santana e aprender algumas palavras básicas, para usar nos momentos certos. Pelo menos, é mais do que qualquer americano ou britânico tentariam fazer na mesma situação.
A estrada avançava e o calor e o céu azul de Madrid na primavera ficavam para trás. Tempo nublado, alguns graus abaixo do que estávamos acostumados na semana que passamos no planalto madrileño.
Entramos em Bilbao de carro, por uma marginal e um conjunto de túneis e viadutos obviamente feito por algum Maluf local e que lembravam bem as zonas industriais de São Paulo. Para quem não sabe, o País Basco é o centro da metalurgia na Espanha e virou região industrial por conta disso. Os metais das montanhas bascas sempre foram a base daquilo que seria um ABC, uma Northern England ou um Steel Belt na versão espanhola. Bilbao é a cidade mais populosa e povoada do Euskadi e, num primeiro contato, tem aquela cara meio cinzenta que imediatamente associamos a regiões com indústrias pesadas.
Paula perguntou, enquanto tentava reconectar o celular no Google Maps que seguíamos, já que perdemos o sinal do GPS em algum túnel: “Por que mesmo viemos para cá?”
Olhei para a paisagem com prédio cinzento ao lado de prédio cinzento, ruas molhadas da chuva leve intermitente, nuvens escuras no horizonte.
Fiquei na dúvida sobre o que responder.

2. A matéria do tempo
Entramos no centro de Bilbao, passamos por uma rotatória com um Cristo que parece indicar a direção para onde ir e seguimos para a rua do apartamento em que ficaríamos - cinzenta, com prédios sóbrios. Pelo menos a chuva havia parado.
Malas no apartamento e pé na rua para entender como era a vizinhança. Uma quadra e já estávamos na beira do rio Nervión, que corta Bilbao. Do outro lado o Guggenheim, na luz do final de tarde. A implantação no local exato: ao ver um mapa da cidade, o museu fica num ponto que forma o vértice de um triângulo em relação a todas as regiões interessantes de Bilbao.
O museu é bem diferente da grande maioria de espaços museológicos do mundo. Não importa onde você esteja, sempre se consegue ver o exterior pelas amplas janelas e aberturas em cada pavimento. Uma experiência museológica única: enquanto muitos museus são fechados em si, com salas em que o foco total são as obras, nesse há uma continuidade entre as obras, a arquitetura, a praça externa (que é um parque de esculturas) e até a cidade em si.
O ponto central do museu é uma exposição permanente, uma escultura de Richard Serra chamada The matter of time. É uma das obras mais monumentais já realizadas e foi feita especialmente para o espaço mais nobre do Guggenheim Bilbao. Uma sequência de formas concêntricas, paredes altas em formas circulares inclinadas, labirintos para se perder e fazer diferentes caminhos. A obra foi construída por Serra aos poucos, incorporando elementos com o passar dos anos. Todas as peças são feitas em Bilbao, com o aço retirado das montanhas do País Basco como acontece há milênios e que foi base da metalurgia na região desde antes de o Império Romano aparecer por ali.
O aço passa por um processo de oxidação que é importante e necessário - as formas vão mudando de cor com o passar dos anos, de um alaranjado forte até o marrom escuro, ao mesmo tempo em que o processo garante a solidez e estruturação do aço. Nada é afixado ao chão; cálculos exatos permitem a inclinação necessária das peças para que se apoiem na base horizontal de forma segura.
Talvez seja a obra mais impressionante de Serra e uma das mais importantes atualmente. Estimula reflexões sobre a arte, o tempo e, especialmente, o lugar onde se encontra, no meio das montanhas bascas, de onde vem o aço - material que sempre foi um dos eixos da vida da região.
Depois desse momento de guia de viagem mainstream, volto a pisar em terreno conhecido. Fazer um guia não é o objetivo aqui, mas foi impossível não ter esse desvio momentâneo e já explico o motivo: não dá para dissociar atualmente o Guggenheim de Bilbao. A maior atração turística da cidade (e depois volto nesse ponto) foi o ápice de uma grande mudança que transformou a cidade basca naquilo que é hoje. A Bilbao de agora é bem diferente da que existia antes da inauguração do museu, em 1997.
Devo ter aborrecido alguns leitores ao gastar tantas linhas sobre um museu, mas acredite, foi importante para trazer contexto. E aproveitando: nada me deixa mais entediado do que gente como aquele Anthony Bourdain do MBL, Pedro Andrade, que viaja o mundo todo sem compreender nada do que vê e só flana alienadamente de lugar a lugar, sem muito contexto ou reflexão.
Durante décadas Bilbao foi uma cidade operária; com indústrias metalúrgicas e estaleiros, era o centro da indústria pesada espanhola. Enfrentou tempos difíceis nos anos 1970, com a recessão europeia resultante dos choques do petróleo e uma inundação catastrófica do Rio Nervión que deixou boa parte da região embaixo d’água. Com a longa decadência dos estaleiros e da indústria pesada, que tomavam caldo atrás de caldo dos países asiáticos, Bilbao chegou a perder metade de seus empregos industriais entre os anos 1970 e 1980. A migração em massa durante a industrialização havia transformado Bilbao numa região metropolitana populosa, mas a crise fez com que a taxa de desemprego atingisse níveis mais altos do que da Espanha e causasse graves problemas sociais.
E não ajudou muito o fato de o corrupto governo Franquista tomar decisões equivocadas em urbanismo, construindo obras viárias superfaturadas que tornaram Bilbao uma cidade hostil à própria população, um pesadelo de concreto e asfalto que isolava cada vez mais os bairros operários.
A fórmula explosiva que bem conhecemos estava posta: um regime autoritário decadente, crise econômica e social que afeta especialmente o proletariado, relações trabalhistas e civis orientadas pela hierarquização e marcadas por diferenças sociais cada vez mais intransponíveis. E, para completar, a fagulha para iniciar o fogo no País Basco veio ainda de outra característica da Espanha Franquista - a repressão severa às identidades e culturas regionais, em um país que foi unificado na base da paulada. A década dos 1970, para surpresa de zero observadores atentos, foi marcada pela emergência do Nacionalismo Basco e de sua face mais extrema, o Euskadi Ta Askatasuna - ETA, para os íntimos.
3. Pátria Basca e Liberdade
Euskadi Ta Askatasuna significa exatamente isso que está no título dessa seção. Atentem para a construção da frase e dá para saber que não era apenas um movimento de independência. Liberdade aí não é posto apenas no sentido de se libertar de um “poder colonial", que era como os Bascos enxergavam Madrid. Essa “Liberdade” vem de um conceito muito mais amplo, que afirma que o oprimido só tem a perder seus grilhões, na formulação de um barbudo famoso.
O ETA nasceu em 1959, mas sua primeira ação de destaque foi o assassinato, em 1969, de Melitón Manzanas González, delegado de Donostia (ou San Sebastián, nome espanhol para a cidade a pouco menos de 100 km de Bilbao). Meio que um Sérgio Paranhos Fleury cantábrico, González era tudo o que se esperava de um policial no regime Franquista: colaborou com os nazistas para capturar judeus franceses exilados, criou um centro de detenção e tortura, implementou uma rede de X-9 dedos-duros para denunciar qualquer um que fosse contra o regime - o que incluía anarquistas, socialistas, membros de sindicatos, homossexuais ou qualquer um que ousasse falar Euskara em público.
Francisco Franco, o diminuto ditador espanhol de 1939 a 1975, definiu as regras logo ao tomar o poder - nada que pudesse ameaçar o mote fascista “una Pátria, un Estado, un Caudillo” poderia ser tolerado. A identidade Basca entrava nesse balaio. Qualquer manifestação cultural Basca era reprimida duramente e, aos poucos, a cultura da região foi mantida somente dentro das casas, onde (aparentemente) os fascistas não entravam.
O Estado policial Franquista tinha vigias em todos os lugares públicos: ruas, comércios, escolas, faculdades, estádios de futebol. Cantou hino do clube em Euskara? Muita porrada da tropa de choque na arquibancada. Falou Agur (até logo) ao se despedir de um amigo? Tapão no pé do ouvido. Fez grafite em Euskara no muro e foi pego? Spray na cara e cassetete nas costas. Dancinha típica? Vai repetir o passo na delegacia de polícia, tomar multa e esculacho. E tudo isso ainda era o mais leve: muita gente sumiu nos porões da falange franquista só por ter literatura em Euskara em casa.
O ETA era nacionalista por opressão do Estado espanhol e socialista por convicção. Inspirado pela Frente de Libertação Nacional da Argélia, levou a cabo uma guerrilha constante contra o regime fascista de Franco. Atentados a bomba eram comuns - mas, a exemplo do IRA (Exército Republicano Irlandês), que lutava o mesmo combate na Irlanda do Norte na mesma época, sempre havia antes um aviso por telefone ou por carta anônima. Vítimas civis eram o que o ETA menos queria.
Em 1973, o ETA organizou em Madrid o atentado mais famoso da história do grupo. Após meticuloso planejamento por 8 meses e organização sem igual, pôs em andamento a “Operação Ogro”. O Comando Txikia, formado por guerrilheiros bascos experientes, levou a cabo, além das fronteiras do País Basco, um atentado contra o segundo na linha de sucessão de Franco: o presidente do governo, Almirante Luis Carrero Blanco, conhecido como El Ogro, por sua truculência em servir bem, para servir sempre ao fascismo. Era quem prendia e soltava no regime e provável sucessor de Franco.
Um túnel foi construído pelos bascos do ETA embaixo da rua Claudio Coello em Madrid, ao lado da elegante Calle Serrano. A rotina de Carrero Blanco incluía uma missa matinal diária nessa rua; como acontece com todo bom fascista, Família, Tradição e Propriedade falavam ao coração do Ogro. Às 9h27 de 20 de dezembro de 1973, dois bascos disfarçados de eletricistas interromperam o trânsito com um carro. A comitiva que levava Carrero Blanco parou bem em cima do ponto final do túnel - onde o ETA havia colocado quilos de explosivo plástico, prontos para a detonação.
O carro oficial de El Ogro foi arremessado a 35 metros de altura pela explosão. Ironicamente, pousou no terraço da Igreja na qual Carrero Blanco assistia diariamente à missa matinal. Morria o sucessor não-oficializado de Franco. Foi um golpe duro na moral da ditadura, que acabou dois anos depois com a morte de Franco.
O ETA continuou sua trajetória mesmo com a redemocratização, mas com cada vez menos adesão popular e poucos sucessos, após o auge da luta armada nos anos 1970. Em 2018, o grupo anunciou sua dissolução, numa Bilbao completamente diferente do que havia sido nas duras décadas de 1970 e 1980.
4. Mucha polícia, poca diversión
A recuperação de Bilbao começou na redemocratização da Espanha e ganhou impulso com a entrada do país da Comunidade Européia, em 1986. Um plano de longo prazo de urbanismo, estímulo à cultura e a novas matrizes econômicas visou reposicionar a cidade para uma nova vocação. Em 1997, Bilbao ganhou uma disputa com outras 20 cidades espanholas para a construção do Guggenheim. Era a consolidação da Bilbao contemporânea, pós-industrial.
A mudança é nítida quando se compara a cidade atual com o que era em fotos dos anos 1970. Muito mais verde, espaços públicos ampliados onde antes havia estaleiros e docas, ciclovias e espaços amplos para pedestres. Uma grande diferença para uma cidade antes orientada para o trânsito de automóveis, com fábricas emitindo constantes colunas de fumaça tóxica, o Rio Nervión completamente ocre e turvo, sem vida devido aos produtos químicos despejados diariamente pela indústria pesada. Agora é um rio limpo, naquela cor escura de rios de leito de pedra, com barcos de turismo e canoagem praticada por gente que rema constantemente por ali.
Final de tarde em frente ao Guggenheim e pegamos um simpático trem de superfície que faz sempre o mesmo trajeto fixo, ida e vinda. Passa por Casco Viejo, o centro histórico de Bilbao, e tem uma das últimas paradas no Erriberako Merkatua - ou Mercado de la Ribeira, que está lá desde os anos 1300 e é um dos mais antigos da Europa.
Voltamos do mercado à noite, com muitas lojas já fechadas, mas com os bares de pintxos y copas ainda abertos. E seguem taças e mais taças de Txakoli, o ótimo vinho branco frisante característico do País Basco, despejado com maestria nas taças de uma altura de mais de meio metro. Ou então Marianitos, um vermut preparado que não tem uma receita específica: cada bar tem uma própria, desde a mistura preguiçosa e boa dos vermut Martini e Cinzano (daí o nome: ‘Mar’ + ‘ianito’, vindo do apelido carinhoso “Cinzanito”), até os mais sofisticados, com azeitonas, angustura e um toque de Gin.
Os pintxos são um capítulo à parte: quem não come bem por ali não pode dizer que esteve no País Basco. E tudo é em cima de uma fatia de pão: em alguns casos, até mesmo um bolinho de bacalhau (!)
Seguimos noite adentro. Qual a graça de estar num lugar assim e não fazer como os locais fazem, uma constante caminhada noturna pelos bares mais queridos?As estreitas ruas medievais de Casco Viejo formam um labirinto que não parece tão diferente dos caminhos múltiplos da obra de Richard Serra. Numa esquina, ouvimos música e vozes altas. Já seguimos nessa direção - our kind of people, pensamos ao mesmo tempo.
Dois caras grisalhos com guitarras e violões e pequenos amplificadores estavam no meio de uma rodinha, em frente a um bar. Várias pessoas em volta cantando junto. Músicas do Eskorbuto, banda punk histórica de Bilbao. Reconheci na hora: já haviam feito turnês com o Ratos de Porão e Garotos Podres tocou versões de músicas deles. Primeira geração do punk, naquele padrão que se repetiu em todo o mundo: garotos da classe operária em cidades industriais, sem grana, sempre oprimidos pelo aparato policial e descontando a revolta em músicas de poucos acordes e muita urgência. Ouvimos muitas músicas de poucos minutos, naquela velocidade e fúria característicos. Clássicos em sequência: Ratas en Biskaia, Mucha polícia, poca diversión, La Increible vida de un ser vulgar.
Como se fosse para provar que essas músicas continuam atuais e necessárias, dois policiais se aproximaram e pediram para desligar o som. Mucha polícia, poca diversión. Sempre assim.
Voltamos a pé pela orla do rio Nervión, já no início da madrugada. Passamos pela famosa ponte de Santiago Calatrava. Vimos o Guggenheim de Frank Gehry à distância. Pela cidade há obras de outros grandes arquitetos: um projeto de Philippe Starck converteu um antigo depósito de vinhos em centro cultural e há também prédios de Álvaro Siza, Rafael Moneo, Zaha Hadid.
A gentrificação é bem aparente em bairros próximos ao museu, com novas torres de escritórios e prédios residenciais elegantes. Novos hotéis também. Ficamos em um apartamento em uma área que, anos antes, era bem barra-pesada, dada a proximidade com as docas e estaleiros. Hoje a cidade é plenamente “caminhável” a qualquer hora do dia ou da noite. Já vai longe o tempo em que os punks do Eskorbuto cantavam que as noites em Bilbao só tinham polícia e abuso de autoridade, ou que membros do ETA plantavam bombas pela cidade.
A poucos metros de casa, vimos uma escultura em aço feita por um artista local. Pequena e modesta, em meio a árvores e perto da pista para bicicletas. A obra chama Tuercebarras, Hombre Vence al Hierro, de autoria Jesús Lizaso, e mostra um operário com uma diminuta cabeça caricatural, torcendo no muque, com esforço imenso, uma barra de aço gigante. Como que condenado a sempre repetir o mesmo movimento, incessantemente.
Não é a arte conceitual sofisticada que se encontra do outro lado do Rio Nervión, em frente ao Guggenheim, ou as grandes esculturas brutalistas de Chilida, famoso escultor e praticamente herói local. A escultura de Lizaso, em sua simplicidade (quase simplória), pode passar despercebida em uma cidade que agora se orgulha de seu sofisticado design local e de ser um dos destinos mais procurados das artes mundiais. Mas tem um ar autêntico e retrata bem o que é o caráter de uma cidade operária que já passou por muita coisa, que ainda resiste à gentrificação e retoma cada vez mais sua identidade ancestral, mesmo com todas as mudanças das últimas décadas.
5. Gernika
Um pequeno desvio na estrada entre Bilbao e San Sebastián e chegamos a Guernica (ou, segundo as placas, Gernika, a grafia acima, que é como se escreve no País Basco). Seguimos até o centro da pequena cidade, que ainda mantém hábitos antigos: por volta de 13h, boa parte da cidade está fechada para a siesta.
Não existe muita coisa da cidade original fundada no século XIV. Não vou nem entrar muito numa história mega conhecida: numa segunda feira de 1937, a cidade foi inteiramente destruída pela Legion Condor alemã e a Aviazione Legionaria italiana. A data foi escolhida cuidadosamente: às segundas, o mercado de Gernika está sempre movimentado, com gente da cidade e dos vilarejos ao redor. A ideia era atingir o máximo de pessoas possível.
Crime de guerra eternizado na famosa pintura homônima de Pablo Picasso, o bombardeio foi uma soma de canalhice atrás de canalhice: Franco queria um exemplo para os povos que buscavam autodeterminação frente ao Estado espanhol em crise; Nazistas queriam testar suas novas táticas de guerra para usar em seus futuros planos expansionistas; italianos queriam estar do lado de quem estava vencendo (pouco importando o lado), como sempre fizeram nas guerras européias desde a queda do Império Romano.
Na terra arrasada de Gernika, uma árvore muito específica sobreviveu ao aço e ao fogo que destruíram tudo. Há milênios, o Parlamento Basco reúne representantes de todas as províncias e cidades do Euskadi em volta de uma árvore secular, no mesmo lugar, numa colina da cidade. É um dos maiores exemplos de democracia direta na Europa e no mundo. Não é a mesma árvore - à medida que uma envelhece, outra é plantada no lugar e guarda-se uma parte da antiga. A atual é dos anos 1960, mas ainda há, preservado, o tronco daquela que sobreviveu à destruição fascista de 1937.
Na praça em frente ao museu da cidade, uma exposição permanente traz fotos do que aconteceu com a cidade após o bombardeio. Ao lado, um muro com cartazes colados por conta da iminente eleição para o parlamento europeu, que aconteceriam em 9 de junho:
Orain eta beti, Euskal Herria antifaxista
(numa tradução livre, “Agora e sempre, País Basco antifascista”).
Em Madrid, dias antes, havia acontecido o congresso do Vox, do qual falei aqui, reunindo a elite da extrema-direita mundial. Franquismo segue vivo no século XXI, com gente disposta a não deixar que seja esquecido.
Caminhamos pelo Parque dos Povos da Europa, com esculturas de Henry Moore e Eduardo Chillida em homenagem à paz. A caminho do carro, passamos por uma excursão escolar que tirava foto em frente ao mural que reproduz o quadro famoso de Pablo Picasso. Gernika, hoje, é dedicada a não deixar que o horror fascista de 1937 seja esquecido.
Seguimos viagem.
6. Gringos haciendo gringuices
Donostia (San Sebastián) é considerada por muitos a cidade mais bonita da Espanha. Cidade litorânea do Mar Cantábrico, é reduto de veraneio, com sua praia principal em formato de ferradura. Prédios elegantes Art Noveau e Neoclássicos (de verdade, não aquela farsa tão ao gosto paulistano) enfileiram-se na orla e nas avenidas principais. Ao mesmo tempo, arquitetura contemporânea em prédios espalhados pela cidade. O mais emblemático é o Kursaal, complexo cultural ao lado da ponte que liga o Centro antigo com o bairro upscale de Gros.
Donostia mantém o mesmo espírito de valorização da identidade Basca de Bilbao, mas sempre teve outra vocação. Turística e pesqueira, voltada para o mar, tem um festival de Cinema importante há muitos anos e outro de Jazz que já levou muita gente boa para lá. Abraçou o progresso com mudanças urbanísticas e obras arquitetônicas de peso, como o Kursaal de Rafael Moneo, mas também mantém a combatividade contra a gentrificação, com leis rígidas de urbanismo e de construção. Uma campanha cívica em curso, há anos, luta contra uma expansão do Guggenheim que havia sido planejada para uma região de preservação ambiental ali perto.
Péssima ideia ir de carro para lá. Pelas ruas, é impossível achar vaga se não for residente. É uma constante no País Basco e, possivelmente , no país todo; carros para quê, se as cidades são plenamente caminháveis e transporte público disponível e seguro? Bolsões de estacionamento e garagens subterrâneas garantem que você pare seu carro fora das ruas centrais e possa caminhar pela cidade e aproveitar outro ritmo.
Chegamos e fomos direto para a praia. Num lugar em que o pôr-do-sol acontece por volta de 21h40, era uma tarde - ou noite - para vadiar. O primeiro Txacoli na cidade foi ao no pôr-do-sol, em frente ao Mar Cantábrico.
Tudo o que nos falaram era real. A cidade é bonita, a comida é incrível, a noite é infinita. Txacoli sempre, Vermut também, pintxos diferentes em cada bar - no próprio hotel já indicam os melhores de cada lugar. Portinhas pequenas em bares sem qualquer atrativo visual escondem uma plaquinha com estrela Michelin no meio de outros avisos e adesivos. A província de Gipuzkoa, cuja principal cidade é Donostia, tem a maior concentração de estabelecimentos estrelados Michelin do planeta.
Não fomos a nenhum restaurante. Seria exagero gastar euros e horas preciosos no interior de um estrelado restaurante, contemporâneo mas formal, quando há tanta coisa a se fazer - e a se comer - pelas ruas do Centro Histórico.
Regra de ouro: bares lotados de gringos - não, obrigado. Bares com gente local se acotovelando no balcão - sim, por favor. Haizea, Borda Berri, Sports Bar - a lista é imensa, a decoração de uns é melhor do que de outros, mas cada um com uma comida memorável e zero afetação. E já falei do Txacoli?
Anthony Bourdain uma vez disse que, em uma vida ideal, teria nascido e viveria em San Sebastián. Adorava a cidade. Como um míssil teleguiado (palavras dele), fomos ao Haizea e, especialmente, ao Ganbara, seu bar preferido. Demos sorte de arranjar uma mesa e fomos nos acotovelar no balcão em meio a locais e a alguns gringos espertos. Um tiozinho no balcão, basco das antigas, daqueles que passa sempre por lá para tomar algo antes de ir para casa, reclama da temperatura do vinho. “Sempre tenho que falar para vocês que tem que ser mais gelado?” e coloca uma pedra de gelo na taça, dando risada.
Saímos dali e seguimos pelas ruas do Centro Histórico, a esmo. Ainda havia muito o que fazer. Por um momento, pensei ser um bom lugar para se viver.
Tínhamos visto que turistas haviam reservado mesas durante a tarde para o happy hour em vários bares. Eram exatamente esses que evitávamos. Mas não dava para evitar as hordas de turistas, como havia sido em Madrid e no entorno do Guggenheim de Bilbao. Em San Sebastián, estão por toda parte. Não é ser contra o turismo (inclusive por sermos viajantes em férias, como eles). Mas é aquela velha história que já cansaram de ler por aqui, do turista que só quer encontrar aquilo que já espera ver, que se comporta como se o dinheiro que traz lhe desse prioridade e yadda yadda yadda. Talvez os moradores de Barcelona que andam com pistolas d’água à caça de estrangeiros folgados, como aconteceu há algumas semanas, tenham um ponto.
À medida que a noite avança, as famílias de turistas saem das ruas e voltam aos seus hotéis - turista, como falei, tem um itinerário gravado a ferro e fogo e não pode vacilar, precisa estar em pé logo no começo da manhã para ver sabe-se lá o que tenham que ver obrigatoriamente. Jovens estrangeiros viram maioria na noite da cidade velha.
Um desbocado pós-adolescente gringo arranja treta com Paula. Americano monoglota que é, parece vir direto de um filme de adolescentes dos anos 1980. Dois amigos holandeses seguram o vacilão. Nas palavras sábias de algum britânico que entende das coisas, mais um que ‘can’t hold his liquor’. Esquecemos do episódio e seguimos.
Encontramos os mesmos moleques holandeses horas depois, na entrada de uma balada - que só toca Reggaeton; é a América Latina recolonizando a antiga Espanha. Vários gringos em frente da entrada, bebendo, conversando - e dois deles, já bem bêbados, começaram a fingir uma luta no meio da calçada. Conversávamos com o baixinho holandês de cabelos pretos que fazia parte da turma do ‘deixa disso’ algumas horas antes. Apresentou-nos para a “namorada", uma mexicana. Olhávamos todos meio entediados para os dois gringos que ainda se divertiam com a luta simulada.
“Gringos haciendo gringuices", falei. A mexicana riu alto e adotou a frase na hora.
7. Guernica
A Ikurrina, a bandeira tricolor do País Basco - praticamente uma Union Jack britânica em verde, vermelho e branco - é onipresente em San Sebastián, assim como foi em todas as cidades que visitamos no Euskadi. Desde a Constituição democrática de 1978 a região tem uma certa autonomia e se orgulha disso.
Pelas ruas, é comum ver a bandeira em frente a prédios públicos, muitas vezes em posição de maior destaque do que a espanhola. Em janelas dos prédios pela cidade, as bandeiras tricolores bascas são absolutas e parecem perenes. É uma diferença em relação a Madrid, em que as bandeiras espanholas indicavam apoio ao Vox. No País Basco, é uma afirmação da identidade local e, ao mesmo tempo, de solidariedade: em muitas das janelas, bandeiras da Palestina estavam hasteadas ao lado das do Euskadi. Iguais que se reconhecem na opressão por um poder “colonial” forasteiro.
Depois de quase uma semana no País Basco, retomamos o caminho de volta para a capital espanhola. O amigo que nos hospedou em Madrid, Gui, falou algo que não havíamos notado conscientemente: não há placas indicando a direção para Madrid até sair do País Basco. As primeiras aparecem só quando nos aproximamos de Burgos, a centenas de quilômetros de Bilbao ou San Sebastián.
De volta a Madrid, fomos ao museu Reina Sofia. Havíamos deixado propositalmente para a segunda parte da viagem. A ideia era ver a Gernika original antes de ver o quadro de Picasso.
Paula já conhecia. Eu, que nunca havia estado em Madrid, ainda não. Seguimos pelas salas do museu, inevitavelmente em direção à sala especial da obra. Um caminho que é pensado para preparar o visitante: na antessala, posters da Guerra Civil Espanhola, fotografias e contexto do que foi esse período sombrio.
Guernica, finalmente. De cara, as dimensões chamam a atenção. Os detalhes, também. Da mesma forma que a obra de Richard Serra reflete o que é o País Basco hoje, Guernica não deixa esquecer, principalmente, o que a Espanha já foi. Espera-se que não volte a ser.
Ficamos por ali, no meio de mais uma horda de turistas. Selfies sorridentes, stories, reels e tik toks em produção frenética; em um ou outro momento, o guarda sentado ao lado da obra advertia os mais afoitos, que ultrapassavam a corda de proteção.
Talvez em um golpe de sorte, descobrimos que todos faziam parte, aparentemente, de uma única excursão com guia; todos saíram juntos. Ficamos praticamente sozinhos na sala.
Por bons minutos, tivemos Guernica todo para nós, antes da nova manada turística chegar.
Zer ikusi, hura ikasi
Aquele antigo provérbio Euskara que citei lá em cima, no título. Significa, numa tradução livre, “o que você vê é o que você aprende”.
(Bom conselho para viajantes em geral).
Curioso não ter nenhuma alusão ao célebre livro do Hemingway. Fugiu até mesmo do clichê literário. Excelente texto, pra variar.