Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
Envio novamente o texto dessa semana: fiz um envio mais cedo, mas algum problema do sistema do Substack fez com que muita gente não recebesse.
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intro.
Béccar, uma pequena cidade na Grande Buenos Aires, perto de San Isidro, é onde fica a Villa Ocampo, casa de Victoria Ocampo e centro de reunião para intelectuais e artistas argentinos e internacionais durante décadas. Existe uma dualidade grande em Béccar: por um lado, sempre foi refúgio de portenhos abastados, com suas casas de campo; por outro, tem boa parte da população formada por imigrantes, principalmente na primeira metade do século XX, que iam para lá por conta da tranquilidade e dos preços mais em conta para casas de classe média baixa.
Em uma casa bem mais modesta de Béccar do que a Villa Ocampo, numa noite de inverno em 1957, apenas uma janela estava com a luz acesa em toda a rua de casas modestas, mas com jardins bem cuidados. A via estava completamente deserta àquela hora. Apesar do frio, Hector Germán Oesterheld mantinha a janela aberta, costume que sempre tivera nas longas madrugadas que passava escrevendo roteiros de histórias em quadrinhos para diferentes editoras - incluindo sua própria Editorial Frontera, aberta em parceria com o irmão, mas sem deixar de fazer bicos para editoras onde conseguira lugar cativo pela rapidez na produção, como a Editorial Abril (sim, de Cesare Civita, irmão de Victor, da Abril brasileira).
Com 4 filhas pequenas, a última nascida nesse mesmo ano, H.G. Oesterheld precisava complementar a renda e virava noites escrevendo. A janela aberta nas madrugadas, dizia, permitia que pudesse olhar para as estrelas; descansava e apaziguava o ânimo, como se escutasse uma velha e querida melodia.
Levantou os olhos do caderno em que escrevia ao ouvir o barulho na cadeira em frente à sua mesa, como se alguém acabasse de se sentar.
Oesterheld piscou, imaginou talvez ter adormecido. Só podia ser isso, um sonho: naquele momento, materializava-se à sua frente um espírito, ou algum visitante que não sabia o que poderia ser. Mas viu que era humano. Olhou para as mãos que agora eram bem visíveis, as veias nitidamente marcadas e bem reais; tateou a roupa da pessoa de olhos fechados, à sua frente, e parecia um tecido real, nada espectral, mas ao mesmo tempo, de um material desconhecido para ele. Não, não era um sonho.
Seus olhos se cruzaram com os do visitante, por alguns instantes - logo, o par de olhos à sua frente percorreu toda a sala, os móveis, os livros na estante, as fotos nas paredes. Finalmente, o visitante falou.
“Estou na Terra, suponho".
1.
Assim começa El Eternauta, história em quadrinhos de 1957, de Hector Germán Oesterheld e Francisco Solano-López, argentino de origem paraguaia, batizado com o mesmo nome que seu bisavô, presidente do Paraguai no século XIX, durante a Guerra.
De cara, nota-se algo pouco usual não só na literatura, como também nos quadrinhos: Oesterheld insere-se como personagem na própria história. O artifício é o que permite que Oesterheld conte a história de El Eternauta, um viajante do tempo que volta ao século XX para tentar mudar os rumos da destruição causada por uma tragédia de proporções planetárias.
A década de 1950 foi marcada por uma tensão cada vez maior entre EUA e URSS: a corrida espacial e armamentista e os diferentes cenários de guerra dos chamados conflitos por procuração - em que as duas superpotências se enfrentavam indiretamente, mas calculando cada movimento, para evitar uma guerra aberta - faziam com que a percepção de urgência e a escalada de tensão gerassem muitas obras. Filmes, livros, HQs e músicas tratavam desse momento pivotal na história da humanidade. Quanto não se criou na época, com a perspectiva sempre presente de um confronto nuclear entre as grandes potências, que poderia destruir todo o planeta? Ficção científica, visões distópicas e Guerra Fria: Oesterheld, atento aos temas contemporâneos, não passava ao largo desses ingredientes para as histórias que fizeram sua fama.
Na história que o tornou o mais famoso roteirista de HQ da Argentina, Oesterheld escuta de Juan Salvo, o Eternauta, sobre uma repentina nevasca que cai na noite de Buenos Aires, em um subúrbio com ruas e casas não muito diferentes de onde estão, em algum momento do futuro. Eternauta é o neologismo criado por Oesterheld: é um viajante do tempo, no éter, que vai e volta pelos séculos.
Um grupo de amigos de Juan Salvo reúne-se nessa noite de um futuro próximo (depois, se descobre que são alguns anos à frente do encontro entre os dois) para jogar cartas, com todas as janelas fechadas cuidadosamente para evitar a entrada do frio cortante do inverno argentino. É isso que os salva, quando a nevasca começa a cair: os flocos que pareciam ser de neve são, na verdade, um prenúncio; do que, não se sabia ainda, mas percebem que há algo errado - os flocos são levemente fluorescentes. Finalmente teria se iniciado uma Guerra Nuclear?
Em poucas horas, a nevasca matou qualquer pessoa que entrou em contato com ela. O grupo de amigos fica sabendo, pela BBC em um rádio de ondas curtas e em meio a muita estática, que toda a América do Sul está incomunicável com o resto do planeta e que há rumores de ataques a Buenos Aires e outras metrópoles do sul do globo. A hipótese inicial de guerra parece ser descartada, uma vez que não há registros de explosões nucleares. O mistério se torna maior.
Isolados na casa, os 4 amigos, a mulher de Salvo e sua filha juntam-se, cada um com seus conhecimentos, para sobreviver a esse hecatombe. Descobrem depois que há outros sobreviventes, e que a nevasca tem relação com uma nova realidade: uma invasão alienígena ocorreu em Buenos Aires, em meio à precipitação atmosférica fatal que havia sido desencadeada momentos antes.
A ficção científica distópica de Oesterheld tem todos os elementos de uma boa história de aventura típica dos anos 1950. Famoso por suas criações como Ernie Pike e outros herois de aventura nas revistas em quadrinhos e tiras da época, Oesterheld tem algo que o diferencia de outros escritores do gênero subestimado: a correlação simbólica da história do Eternauta com temas contemporâneos. Nada em Eternauta é por acaso - Oesterheld, voraz leitor de ficção científica e literatura em geral, também era um grande observador da realidade política do seu país e do mundo, no contexto da Guerra Fria. E trazia suas preocupações para o trabalho que realizava.
2.
Algumas cidades são um refúgio seguro sempre que você precisa - aquelas que, não importa quantas vezes você visite, sempre terão algo novo para ver ou descobrir; e também, paradoxalmente, sempre serão acolhedoras, com uma certa familiaridade bem-vinda. Você anda por ruas que conhece bem, onde as pequenas novidades ficam lado a lado com algo que você já sabe que está ali há muito tempo.
Buenos Aires é uma cidade assim, para mim. Já andei muito pelas ruas da cidade, já marquei viagem de última hora e de forma mais improvisada, já programei com antecedência, já fiquei anos sem ir - e descobri que a cidade “está sempre lá", que não há como se decepcionar.
É um destino turístico fácil. Em geral, um dos primeiros lugares que alguém que acabou de chegar na classe média brasileira visita e sai falando que é a “Europa na América do Sul"; o que é um clichê besta, mas é ótimo, porque mostra exatamente o que é importante em viagem: abrir uma nova perspectiva, conhecer algo novo, ter novas experiências e expandir seu repertório. Para mim, depois da primeira visita, passou a ser uma cidade para a qual sempre volto.
Li El Eternauta pela primeira vez em 2007, com a edição de 50 anos da publicação original. A fama já precedia a HQ , mas eu não sabia o quanto a história seria impactante. Primeiro, por mostrar que boas histórias, e ainda por cima, de gênero, poderiam ser feitas em qualquer lugar do mundo; que temas universais não devem ser filtrados somente por uma visão - no caso, a ficção científica é, até hoje, muito dependente da cultura norte-americana, seus parâmetros, idiossincrasias e convenções. Oesterheld, em Eternauta, não apenas toma para si com maestria um gênero que até então era considerado domínio da cultura pop dos Estados Unidos, como também, ao desenvolver a ação pelas ruas da capital argentina, cria todo um cenário para quem se acostuma à tradicional metrópole-meio-NY de inúmeros filmes ou HQs.
Andei pelas ruas de Buenos Aires reconhecendo os marcos geográficos que Oesterheld usa: do subúrbio arborizado de Béccar, passando pela avenida Las Heras, pela Plaza Italia em Palermo, pelo estádio Monumental do River Plate, pelo porto, pela Plaza del Congreso. Mas essa geografia local não está lá por acaso, só por ser a cidade do autor, ou para gerar familiaridade para o leitor. Oesterheld tem outra pretensão com essa escolha.
O autor argentino era constantemente indagado a respeito de sua escolha por um meio tão subestimado quanto as Histórias em Quadrinhos. Falavam “mas você não gostaria de fazer literatura de verdade? Você escreve tão bem". Oesterheld respondia, com um sorriso, que gostava das “historietas", como as HQ são chamadas na Argentina, que tinha um afeto por essa forma narrativa; mas, principalmente, que sua intenção era escrever de forma simples, e levar ao maior número de pessoas a sua obra - as HQs permitiam que atingisse inúmeras classes sociais, idades, vivências, ao passo que a ‘alta literatura’ era fechada em seu elitismo, mesmo em um país que valoriza as letras, como a Argentina.
É um contraponto interessante pensar que Oesterheld vem de Béccar, a mesma localidade onde Victoria Ocampo reunia todos os grandes escritores argentinos - de seu cunhado Bioy Casares ao amigo em comum Borges - além de artistas, políticos e intelectuais, onde recebia estrangeiros como Stravinski, Ortega y Gasset, Saint-Exupéry, Graham Greene, Camus. Oesterheld, em sua modesta casa a algumas quadras da Villa Ocampo, escrevia quadrinhos e ficção científica para paperbacks baratos, vendidos em bancas, em ritmo industrial para, com suas histórias fantásticas, fazer frente aos boletos que eram bem reais.
Além da primeira camada de leitura, Oesterheld traz conceitos bem sofisticados, sem esforço e sem pedantismo. Não há um heroi, apesar de Juan Salvo, o Eternauta, ser o narrador. É antes um coletivo de pessoas comuns, que se unem contra um inimigo externo. O exército e o Estado, quando aparecem, não conseguem fazer frente à ameaça alienígena - ou sequer tentam. O homem comum é que precisa tomar a frente, e as habilidades de trabalhos manuais - Salvo é mecânico - misturam-se com a engenhosidade de um professor universitário que coloca em prática suas ideias. É uma aliança entre todos os que só têm os grilhões a perder.
E um plot twist que vou dar como spoiler (se não quiser saber, pare agora. Mas não é algo que tire a graça da leitura): ao capturarem um alienígena que está dominando seu país, a resistência humana descobre algo que os deixa espantados - o alienígena é, por sua vez, subjugado por outro povo. A tática imperialista de "dominar quem domina o povo”, usada tão bem pelos britânicos no subcontinente asiático e prática comum das superpotências da Guerra Fria, dá as caras nessa história de ficção científica que quer, na verdade, falar de algo bem mais próximo aos leitores.
3.
Hector Germán Oesterheld preocupava-se com os rumos que a Argentina tomava, após o golpe que havia tirado Perón do poder. Não por acaso, El Eternauta é lançando no mesmo período (1956-1957) em que outro escritor argentino, Rodolfo Walsh (de quem já escrevi aqui), investigava os crimes do autoritarismo em Operação Massacre, um dos precursores do Novo Jornalismo; ou, ainda, quando Antonio Di Benedetto, de quem falei na semana passada, mostrava em Zama como a hierarquia da dominação se impõe dentro de uma estrutura de poder colonial.
Todos tinham as mesmas preocupações e questionamentos e viviam na mesma Argentina que era separada por constantes lutas ideológicas. E todos tiveram sua convergência, de alguma forma, com a ditadura de 1976: Di Benedetto injustamente preso, Walsh e Oesterheld ativamente lutando contra o regime autoritário - ambos, aliás, passaram à clandestinidade ainda antes do golpe.
Além de Hector, suas quatro filhas eram militantes peronistas e, aos poucos, entraram no grupo guerrilheiro Montoneros. O pai radicalizou-se politicamente junto com as filhas: após a decepção com a volta de Perón, a família Oesterheld mergulhou de cabeça na militância. As filhas e 2 genros mudaram-se para as Villas Miseria comuns na periferia de Buenos Aires, para estarem próximos ao epicentro do que acreditavam ser a base para um levante popular contra o poder autoritário. Oesterheld, da mesma forma que Walsh, contribuía com as publicações clandestinas peronistas.
Hector Oesterheld vinha cada vez mais assumindo explicitamente a luta política em suas histórias: em 1969, revisitou o Eternauta, em uma nova versão da história, com arte de Alberto Breccia, outro peso-pesado dos quadrinhos políticos. Com o mesmo desenhista, dedicou-se nos anos seguintes a biografias de grandes argentinos notáveis por lutas populares. Sua biografia de Che Guevara tinha lugar de destaque na estante de um ministro militar na ditadura de 1976 - segundo dizem, ele mostrava o álbum de quadrinhos para reforçar o quanto era perigoso esse pessoal com quem lidavam, que tinha em mãos uma arma poderosa: a criação de histórias.
Em 1976 Oesterheld voltou ao Eternauta, com uma sequência. Mesmo na clandestinidade, mandava seus roteiros para Solano Lopez. Muito do que era sugerido na história inicial agora torna-se explícito. Juan Salvo é implacável e obstinado em sua luta contra a dominação externa; os invasores, muito mais letais e impiedosos. Uma guerra sem quartel. Mais uma vez, Oesterheld é personagem na história. Da mesma forma que, na vida real, havia passado de escritor que incluía em suas histórias contundentes observações políticas, para um agente montonero na clandestinidade, contribuindo com sua escrita para a causa revolucionária.
Os últimos quadros de Eternauta II são sintomáticos. Em uma praça de um bairro portenho comum, Oesterheld encontra-se em um banco, após viagens no tempo com Juan Salvo, pensando em tudo o que vivera até ali. Tem uma leve confusão, e olha a data de um jornal: dezembro de 1976. De repente, um rosto conhecido passa por ele. É Juan Salvo, o Eternauta.
Hector Germán Oesterheld o segue, e fala “Juan, vou com você". O Eternauta, caminhando resoluto, responde: “Sabia que viria, Germán. Preciso de você".
Foram as últimas páginas de HQ que Oesterheld fez, antes de assumir de vez seu lugar na luta da qual suas filhas e genros já faziam parte.
Epílogo.
Na pequena sala sem janelas, a 18 Km de Béccar, Germán Oesterheld aguarda. Não sabe o motivo de ter sido levado até ali - desde que fora preso, em abril, não entendia a lógica dos interrogatórios, das prisões, da espera. Aguardava alguém, era certo. Naquele final de 1977, olhava para a cadeira vazia à sua frente, mais de 20 anos depois de ter criado o ficcional encontro com o Eternauta, que dá início à obra que o popularizou e que marcou sua carreira.
A porta da sala se abre. Dois guardas de verde-oliva entram, armados com submetralhadoras. Em seguida, um tenente entra na sala, trazendo pela mão uma criança de pouco menos de 4 anos. Deixam-no ali, não se sabe por quanto tempo, com o velho Oesterheld.
Era Martín, seu neto, filho da desaparecida Estela Oesterheld e de seu marido “Él Vasco” Mórtola, assassinado pela ditadura.
Oesterheld ficou detido em El Vesubio, centro clandestino de detenção, até o começo de 1978, segundo relatos. Assim como as quatro filhas, seu nome está até hoje na lista de desaparecidos do Regime militar de 1976 a 1983.
“Nessa mesma cela esteve um velho que contava histórias"
- carceireiro de El Vesubio, para uma nova detida, Ana María Caruso de Carri, no início de 19781