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Preliminares.
Me:
Hello, could you explain to me who Brian Eno is, please?
ChatGPT:
Hello! Certainly, I'd be happy to explain.
Brian Eno, born Brian Peter George St John le Baptiste de la Salle Eno on May 15, 1948, is a multifaceted British musician, composer, record producer, and (…) yadda, yadda, yadda
Me again:
Great! Could you please make it shorter?
ChatGPT:
Sure! Brian Eno is a British musician, composer, record producer, and visual artist, renowned for his pioneering contributions to ambient music and his work across various genres. He started with the glam rock band Roxy Music in the early 1970s (…) yadda, yadda, yadda
Já viram que o negócio é ser educado com ChatGPT, né? Mas vamos além.
Me:
Great again! Could you please translate this to Portuguese?
ChatGPT:
Claro! Brian Eno é um músico, compositor, produtor musical e artista visual britânico, renomado por suas contribuições pioneiras para a música ambiente e seu trabalho em diversos gêneros. Ele começou com a banda de glam rock Roxy Music no início dos anos 1970, rapidamente seguindo para uma carreira solo que explorava a música experimental e eletrônica. Álbuns solo notáveis incluem "Here Come the Warm Jets" (1974) e "Another Green World" (1975). Eno é uma figura-chave no desenvolvimento da música ambiente, com obras seminais como "Discreet Music" (1975) e "Music for Airports" (1978) definindo o gênero.
Além de seus projetos solo, Eno colaborou com e produziu para artistas importantes como David Bowie (notavelmente na Trilogia de Berlim: "Low", "Heroes", "Lodger"), Talking Heads, U2 ("The Joshua Tree" e "Achtung Baby") e Coldplay. Suas contribuições moldaram significativamente o som e a direção da música contemporânea, tornando-o uma das figuras mais influentes na música e arte modernas.
A primeira versão que o ChatGPT deu para mim da biografia de Brian Eno citava em uns três ou quatro trechos ‘seminal works’.
Incomodado com tanto sêmen, pedi para resumir.
1.
Depois desse bukkake estilístico que apresentou quem é Brian Eno, já posso penetrar no assunto dessa edição do Locked Groove.
Para começar, Brian Eno é um dos caras de quem mais tenho discos.
Opa, aqui vale contexto. Vai aí o Top 5 dos artistas de quem tenho mais discos, sem ordem definida:
Sun Ra
Miles Davis
Lou Reed
David Bowie
Brian Eno
Se bobear, contando os discos que ele produziu ou nos quais tocou (John Cale, Bowie, Laurie Anderson e outros) é o ‘músico’ com maior presença em créditos na minha discoteca básica.
Músico entre aspas, porque ele sempre falou que não se considerava músico. Não no sentido mais comum do termo. Não é difícil entender o motivo: Eno não toca exatamente um instrumento específico, nem é conhecido por isso. Eno é muito mais um criador livre e não apenas na música. Se existe alguém que pode ser chamado de gênio, e não uso esse termo levianamente, é ele.
Em 2013, vi uma palestra/conversa de Brian Eno no Great Hall da Cooper Union, faculdade legal de artes em Nova York. Eno estava também com uma instalação audiovisual na cidade, chamada 77 Million Paintings, que usava tecnologia generativa para criar uma interação de pinturas, cores e música em constante mutação e criando interações e combinações novas a cada minuto.
Eu, que já era fã, fiquei fascinado, assim como todos que estavam lá. Com total domínio do público, Eno deu uma aula de criatividade, com humildade e bom humor. Parecia uma conversa com um amigo. Totalmente respeitoso, Eno respondeu pacientemente até as perguntas mais manjadas sobre sua trajetória (por exemplo, “como foi trabalhar com David Bowie?”).
O cara deu uma geral na carreira, na vida, contou histórias que eu não conhecia, falou de todos com quem trabalhou: Bowie, Talking Heads, John Cale, U2; falou das tretas com Roxy Music e Bryan Ferry, da carreira solo, do gênero musical do qual é maior expoente, Ambient Music (grosso modo, um gênero musical que se vale mais de texturas sonoras, tons e atmosfera do que de melodia ou ritmo. Pode incluir sons naturais, ruídos, imperfeições sonoras). Falou de arte, cultura, tecnologia. Falou do futuro, de novos planos. Valeu mais do que um MBA desses em que uns bocós gastam uma fortuna para ostentar no currículo no LinkedIn.
Não vou falar aqui de toda a história de Eno. Basta dizer que é um dos caras mais influentes da música e das artes em geral de 1970 para cá. E não vou fazer isso por um motivo simples: tem gente já fazendo melhor.
2.
A essa altura da vida, Brian Eno poderia ir pra casa, curtir os royalties tanto da carreira solo quanto, principalmente, da carreira de produtor (fez os discos mais famosos de U2 e Coldplay). Mas ainda tem vontade de fazer mais.
No Festival de Cinema de Sundance, em janeiro de 2024, aconteceu a estreia mundial de Eno.
Há alguns anos, o documentarista Gary Hustwit procurou Eno com uma ideia para um filme biográfico. Eno topou na hora - não por ser uma forma de se eternizar na memória do público, o que não deve ser algo que passe por sua cabeça. A proposta do filme, na verdade, é o que seduziu Brian.
(Aproveitando, vai lá em https://www.hustwit.com/eno para saber mais sobre o filme.)
Hustwit tem um currículo incrível como documentarista: trata de temas como design gráfico, urbanismo, arquitetura, design industrial, tecnologia. Fez filme sobre Dieter Rams, o lendário designer da Braun que teve muita ideia surrupiada pela Apple, outro sobre a fonte Helvetica (coisa de nerd do design), produziu outros bons filmes em assunto que adora, a música (fez filmes com o Wilco e outros artistas).
Nada mais natural que resolvesse fazer um filme sobre Eno. O careca mais brilhante da música sempre teve múltiplos interesses e tecnologia, design e arquitetura sempre tiveram interseções com sua música - afinal, Eno foi quem popularizou e definiu a Ambient Music e um dos seus discos mais famosos é Music for Airports (1978), criado tendo em mente os espaços confusos, impessoais e impermanentes dos aeroportos. Na tecnologia, uma curiosa nota de rodapé: Eno compôs o tom de abertura do Windows 95. Com 3,5 segundos, deve ser a obra dele que teve mais ouvintes em toda a história.
Para começar a falar do filme, faço uma recomendação: esqueça as besteiras que falam hoje em dia sobre Inteligência Artificial generativa, em geral pelo prisma dos textos erradaços que volta e meia aparecem no ChatGPT. Confesso que eu mesmo brinco com isso. Mas de fato tem muita imcompreensão e lugares-comuns equivocados na discussão e ChatGPT é só uma das pontas da Inteligência Artificial (e, talvez, a menos interessante).
O filme de Hustwit tem um conceito que foi discutido longamente com Eno e tem tudo a ver com a arte dele. Por meio de inteligência artificial generativa, você nunca verá o mesmo filme duas vezes.
A cada exibição, a IA generativa criada especialmente para a produção reorganiza a sequência de imagens, insere novas cenas, retira algumas. Reorganiza completamente o labirinto da memória, incessantemente. A constante mudança faz com que a história de Eno seja contada, a cada vez que é projetada, de uma forma diferente, traçando um caminho diferente pela memória, criando novas associações e perspectivas sobre os fatos.
3.
Conceitualmente, esse tipo de edição para contar uma história não é exatamente uma ideia nova. O Jogo Da Amarelinha, livro do argentino Julio Cortázar de 1963, pode ser lido de diferentes formas, com indicações para onde ir se quiser ler no modo shuffle, ou então ler linearmente um número de capítulos e depois pular para outros. Outro livro de Cortázar, 62/Modelos para armar, de 1968, é derivado de um capítulo do livro original - ou seja, mais um caminho bifurcado aí.
Na literatura ainda há outro grande exemplo: The Unfortunates, livro do britânico B. S. Johnson, de 1969. Esse é mais radical. Um livro que consiste em 27 seções grampeadas individualmente e podem ser lidas em qualquer ordem, desde que a primeira e a última se mantenham nessas posições respectivas. Li os dois e posso garantir que funcionam, apesar de algumas limitações.
E isso vem de longe, na verdade: Dadaísmo, Surrealismo e outras vanguardas do Modernismo tinham métodos semelhantes, como o Cadavre Exquis do Surrealismo, que consistia em uma história que era composta a múltiplas mãos, com folhas de papel passando de um lado a outro em um café, por exemplo, e cada pessoa continuando a história a partir do ponto em que a anterior havia parado. William Burroughs, anos depois, usava a técnica do Cut-up para compor poemas e até mesmo narrativas longas - recortava papéis com seus textos e juntava-os da forma mais alucinada possível.
Eno e Bowie eram fãs de Burroughs. Usaram a técnica do Cut-up em discos, juntando pedaços de sons gravados ou, então, na própria composição, com notas musicais aleatórias.
Em 1974, Eno criou com o artista multimídia Peter Schmidt as Oblique Strategies, um set de pouco mais de 100 cartões, cada um com uma frase, um aforismo, uma dica para contornar bloqueios criativos ou, simplesmente, criar uma nova direção durante o processo criativo. Eno usou bastante durante as gravações da Trilogia de Berlim, de David Bowie (seus álbuns Low, ‘Heroes’, Lodger). Sempre que chegavam a um beco sem saída ou a uma situação com muitas hipóteses criativas, sacavam uma das cartas para ver para que lado ir. Segundo Bowie, foi o melhor método para conseguir superar o bloqueio criativo que teve por conta de um burnout que sofreu antes de chegar a Berlim.
Ao mesmo tempo, Eno valorizava acasos e coincidências no estúdio. Muitos incidentes que poderiam ser cortados na mixagem continuavam em seus discos e nos discos que produziu. Ideias apareciam nesses momentos e eram incorporadas.
Talvez o filme de Hustwit tenha maior impacto para quem já conhece Eno e é fã de sua arte, ao costurar brilhantemente a suposta aleatoriedade do filme com os preceitos que Eno usa em suas obras. Se acasos são parte do processo criativo, ao final o filme se beneficia disso para manipular e editar as muitas horas de gravação à sua disposição.
Ligado na tecnologia e disposto a experimentar e conhecer, Eno sempre filmou muita coisa, documentando boa parte de sua carreira dessa forma. Seu pai também tinha essa obsessão pelas imagens em movimento: na palestra que vi, Eno mostrou momentos de sua infância na Inglaterra dos anos 1950. O software que rearranja a ordem das cenas e exclui e inclui trechos bebe de milhares de horas de material de arquivo, muitas gravadas diretamente por Eno, além das cenas feitas especialmente para o documentário.
Ainda não dá para saber se o filme de Hustwit com Eno será legendário ou se vai virar uma mera curiosidade dessa época em que ainda tateamos com a Inteligência Artificial. Mas a promessa é boa: um dos caras mais experimentais, curiosos e inovadores do século XX é retratado de uma forma que tem tudo a ver com sua obra. O próprio filme, ao final, vira uma obra de Eno.
O filme foi elogiado, mas houve críticas também - em geral, de quem viu apenas uma vez. Muita gente que já viu mais vezes garante que em nenhum momento o filme parece aleatório ou fruto uma colagem alucinada.
Talvez seja muito mais um evento do que um filme em si: fazer um filme sobre um dos artistas mais importantes do século XX, com um método que tem tudo a ver com ele. Ainda não vi e não sei se virá para algum festival de cinema por aqui. Mas, de qualquer forma, dá para saber que cumpre um papel relevante em explorar a IA com um propósito. E talvez seu maior mérito seja deixar claro que a Inteligência Artificial é um instrumento que não prescinde da criação de quem a usa.
4.
O SXSW - South By Southwest - é um festival que começou com música, cinema e mesas redondas sobre cultura alternativa e que já foi bem legal, mas que hoje em dia atrai a vanguarda do atraso - por exemplo, um monte de publicitários ou marketeiros brasileiros. Até o governo do Estado de São Paulo, atualmente uma das instituições mais medievais do mundo, montou eventos lá.
Ted Gioia, que tem um substack bem interessante, contou recentemente que uma palestra sobre IA teve o efeito contrário ao esperado. Em meio aos clichês e frases de efeito dos palestrantes (“I actually think that AI fundamentally makes us more human.”, por exemplo), uma vaia começou a se formar na platéia e tornou-se dominante no auditório. Vaia que repetiu-se, ainda, em outros eventos, onde a IA era cantada em prosa e verso por startupeiros do Silicon Valley.
Gioia sustenta que há uma mudança de percepção sobre tecnologia e inovação atualmente; todas as perspectivas de futuro e de evolução contínua, que pareciam verdades absolutas nos primeiros anos do século XXI, mudaram completamente.
No lugar de gente como Steve Jobs, agora há Elon Musk; onde antes se esperava ter liberdade de informação com uma internet descentralizada e pulverizada, agora há sistemas de buscas com resultados direcionados e altamente editados, paywalls, cookies que seguem todos os seus passos; a recuperação e disponibilização de discos e livros antigos fora de catálogo, que caracterizavam a internet de antes, deu lugar aos streamings sem alma, carregados de músicas de artistas sem rosto (muitos artistas no Spotify, por exemplo, são “criações” com músicas e nomes genéricos para se beneficiar do número de plays).
O futuro imaginado deu lugar a um presente completamente diferente. Talvez, por isso, a IA seja vista com tanta desconfiança e o temor de que algo pior venha por aí seja maior do que a expectativa de haver alguma evolução relevante.
Brian Eno é um dos raros músicos que não reciclaram o próprio passado e continua criando música nova e diferente. Sempre seguiu em frente, metodicamente, com novas ideias e novos rumos. Manteve-se relevante tanto criativa quanto comercialmente - e, afinal, quem mais consegue ter, ao mesmo tempo, uma obra experimental e de vanguarda e produzir as maiores bandas de rock da época, como U2 e Coldplay?
Um filme biográfico que nunca é o mesmo e se reedita completamente em diferentes exibições faz todo o sentido para retratar Eno. Para quem sempre esteve voltado para o futuro, em constante evolução e exploração das possibilidades, é interessante que sua própria história seja apresentada de forma aberta, com diferentes interações e edições.
Brian Eno nunca deixou de fazer o que acreditava, tem uma obra relevante e com muito a se construir ainda. Continua produzindo, milita por grandes e boas causas e continua a acreditar no futuro. Recusa-se a até mesmo deixar o passado virar algo cristalizado e rigidamente demarcado. Talvez seja o que precisamos, nessa época em que o futuro parece ser cada vez mais regressivo.